UM BAILE DE MÁSCARAS : NAU LÍRICA PERDIDA NO ESPAÇO VIRTUAL


FOTOS/OLAF STRUCK

No entremeio de uma crise que afetou incisivamente a já tão escassa programação lírica na cena brasileira, eis que, simultaneamente, dois teatros oficiais recomeçam corajosamente , em meio ao quase descrédito do público e da crítica do gênero, suas temporadas. Dois deles persistindo na tradição , outro no avanço estético, os três apostando em Verdi.

O Palácio das Artes de Belo Horizonte, com uma La Traviata segundo rigorosos moldes de fidelidade histórico/artística, numa mesma  versão que  se estende ao  Municipal paulista, e Um Baile de Máscaras futurista retomando as rédeas operísticas do Municipal carioca, em postura redentora assumida por seu presidente - Fernando Bicudo.

Um motivo de júbilo para os aficcionados, não importando sejam ferrenhos aliados do conservadorismo ou adeptos da modernidade, aos quais se junta a resistência do Teatro Amazonas com uma programação diversificada entre reposições barroco/românticas  (Haendel a Gounod) e a criação contemporânea , incluída uma obra inédita de João Guilherme Ripper.

A partir de uma recente criação do recém nomeado regisseur do TM/RJ, Pier Francesco Maestrini, concebida para a Kiel Opera House , do norte alemão, em janeiro de 2018 , de Um Baile de Máscaras com olhar espacial, futurista e virtualizado em sua técnica cenográfica.

Inovação que a um olhar mais aberto à contemporaneidade, prevalente hoje na maioria das grandes casas de opera européias e americanas, não há de ser incômodo e sim propulsor para uma necessária atualização estética.

Afinal, até de acordo com a própria transposição temática do original verdiano, de 1859, da Suécia monárquica do século XVIII para uma distanciada governança de uma Boston americana colonial, por imposição censória e política  da época.

E é o que propõe esta recente incursão num dos cânones da grande ópera italiana, transferindo desta vez, a narrativa melodramática do contexto bostoniano para um tempo ficcional/científico em alguma inidentificada galáxia interplanetária.

Visualizada em arrojada cenografia com efeitos computadorizados o que, se seduz pelo inusitado, torna-se arriscado pelo resultado pretendido quanto às pontuações originais do compositor, não só pelo suporte de um típico libreto verista como por uma característica partitura verdiana, que podem soar falseados sem uma bem urdida transmutação temporal/espacial.

As projeções em três planos num sugestionamento  visual 3D impressionam bem pelo enfoque diferencial de plasticidade cênica(Juan Guillermo Nova), mas ameaçam o  desvio de atenção da progressão dramática do que deve ser o verdadeiro foco – a performance musical/vocal.

Diluindo o dimensionamento psicológico dos personagens pelo carregado sombreamento do desenho de luz(Jorginho de Carvalho) e pelas visualizações numéricas e cronológicas que ora remetem, sem disfarce, aos efeitos de uma tela virtual. Com um acentuado sotaque kitsch nos traços néon da indumentária escura(Tânia Agra/Ursula Felix), lembrando ambiências de pistas clubber ou de desfiles carnavalescos. Além da desnecessária projeção de fotos faciais dos interpretes, sujeita a oscilações técnicas.

Com uma segura conduta musical de Tobias Volkman, o score sinfônico conflitua com o desequilíbrio do elenco protagonista, onde a convicta tessitura dos brasileiros, o barítono Rodolfo Giuliani (Renato) e da mezzo soprano Denise de Freitas(Ulrica) atende às exigências de seus papeis e transforma em um arremêdo o “ascensional” talento do tenor italiano Leonardo Caimi(Gustavo). Com alcance abafado, ausência de coloração, desde sua romança inicial, e sem qualquer indicio de “crescendo” nas cenas sequenciais.

Enquanto a soprano italiana Susanna Branchini(Amélia) tem elegante presencial e uma boa potencialidade tímbrica, sem culminâncias qualitativas mas de calorosa empatia com o público. Vale destacar ainda a participação com bela agilidade vocal do soprano Lina Mendes(como Oscar).

O coro mais uma vez reafirma seu cativante desempenho(na preparação do Maestro Jésus Figueiredo) e à representação coreográfica ( sob o comando de João Wlamir) falta  maior unicidade estilística no contraponto crítico de linguagens gestuais. Com uma nuance mais melodramática na soturna cena do Ato II e a automatização robotizada na cena do baile, esta prejudicada, em parte, por uma menos clarificada distribuição cenográfica dos cantores, coro e bailarinos no epílogo da ópera.  

                                           Wagner Corrêa de Araújo


UM BAILE DE MÁSCARAS está em cartaz no Teatro Municipal/RJ, dias 3,4 e 5, às19h30m; dia 6, às 17h. 150 minutos, com dois intervalos. Até 06 de maio.

A MULHER DE BATH: INÓCUO ARQUÉTIPO DO DESEJO FEMININO


FOTOS/SABRINA MOURA

Geoffrey Chaucer foi o  precursor e instaurador das bases da língua e da literatura inglesa no final do século XIV, antecipando o ideal humanista da Renascença, com sua coletânea fabular “Os Contos de Cantuária(The Cantebury Tales) de 1380.

Alice é uma das personagens de sua saga medievalesca,  através da narrativa em versos “A Mulher de Bath”, destacando-se no seu comportamental libertário pelos anseios do poder feminino. Ou, não se restringindo às funções da domesticidade e da reprodução familiar, no alcance da prevalência sobre os homens  por seu exercício impositivo do desejo e da sexualidade.

Em época de rígidas regras de conservadorismo moral, obrigadas pelo predomínio político e social da religiosidade cristã, Alice ( Maitê Proença) torna-se um paradigma da mulher diferencial. Validada por seu pensar livre mesmo que não escape, de fato, aos condicionamentos das esposas prisioneiras da época.

Tornando-se viúva de cinco maridos, compensa as perdas pelo prazer da redescoberta de que novas aventuras eróticas serão propiciadas pelo consorte sequencial. E se não pode identificar-se na busca, sem compromisso, de parceiros de lubricidades como era permissivo ao sexo oposto, ela se contenta em divagar sobre as artimanhas sensuais que fazem dela uma soberana dos prazeres na cama.

Onde, se cumpre os rituais funéreos na despedida de um dos cinco esposos, arma o pensamento erótico para o próximo, não se inibindo até mesmo em fazer súplicas sexistas diante dos altares santos, no entremeio de peregrinações ao lado de outros homens.

Para fazer frente ao desafio de uma textualidade implicitamente não teatral, o comando diretorial de Amir Haddad consente em afirmar sua concepção como uma “desmontagem”, não só pela quebra total da quarta parede, como na possibilidade de uma dialetação palco/plateia, quase conferencial,  sobre as conquistas e adversidades do empoderamento feminista através dos tempos.

Se na inicialização da performance obtém este ganho, a partir da progressão da narrativa dramática vai se percebendo gradualmente uma sensível perda. Seja através de marcações que não disfarçam um artificialismo progressista, seja pela prevalência de uma oralidade textual monocórdia que soa com maior teor literário que teatral.

No recato dos recursos cenográficos(Luiz Henrique Sá) com um arremedo de uma pequena boca de cena frontal ornamentada por uma cortina onde a protagonista , vez por outra, entra e sai, havendo raros elementos materiais referenciais de época como uma cadeira nobiliárquica, mesa rústica, genuflexório  e taças de estanho.

Sob os acordes, entre o medievo e o contemporâneo, de uma  bem urdida trilha sonora executada ao vivo por Alessandro Persan, mas com desnecessária duplicidade de oficio, embora episódica, na sua interferência atoral.

Ainda que a indumentária (Angèle Froes) sugestione um sotaque aristocrático,  ampliado na  funcionalidade dos seus adereços(Marcílio Barroco), sob um apenas vazado e regular desenho de luz(Vilmar Olos).

E mesmo que o protagonismo de Maitê Proença prime por um presencial elegante, adequando-se no personagem tanto na fisicalidade como no dimensionamento psicológico, falta maior sintonização da proposta como um todo,  tanto na interatividade  dramatúrgica como na pouca adequação da abordagem temática aos avanços do feminismo na contemporaneidade.  

                                                  Wagner Corrêa de Araújo



A MULHER DE BATH está em cartaz no Teatro XP Investimentos/Gávea, sexta e sábado, às 21h;domingo, às 19h. 70 minutos. Até 29 de abril.

FAUNO: COM O OLHAR ARMADO NA CONTEMPORANEIDADE


FOTOS/SERGI ARBUSÀ

Faunos, também conhecidos como sátiros, eram seres metonimicamente meio homens, meio animais, com suas orelhas e caudas de asno, que habitavam os bosques. Onde, de acordo com as narrativas fabulares greco/latinas, sempre  bêbados e sob o som de suas flautas  perseguiam lascivamente as ninfas.

O que, a partir de um  poema de Mallarmé, L’Aprés Midi d’un Faune,  musicado por Debussy, inspirou a performance autoral de Nijinsky, abrindo as portas para a modernidade da dança, em 1912. Afinal, ele “fez o público salivar, engolir em seco e estremecer” com sua progressão dançante carregada de sensualismo.

Segundo Gustavo Gelmini , o idealizador e diretor da atual concepção-  titulada Fauno - frente à sua Cia Gelmini, se aproximação existe com Nijinsky “é  a do diretor como espectador profissional, como Grotowski costumava apontar, ou de um dj de movimentos, trabalhando as intenções psicológicas dos intérpretes e costurando frases coreográficas e deslocamentos”.

Dando continuidade a um acurado trabalho investigativo sobre as perspectivas do universo coreográfico contemporâneo no encontro com outras linguagens artísticas, a Cia Gelmini, em apenas três anos, vem mostrando uma incisiva continuidade do processo criador dentro da trilogia do homem contemporâneo, inicializada em 2017.

Diversificado na rejeição da espetacularidade dos efeitos cênicos, no intimismo envolvente, sujeito/objeto, espectador/bailarino, dos requintados fraseados musicais/corporais de Toque, com Renato Cruz e o performer/percussionista Cyril Hernandez. 

E que é retomado na essencialidade da instalação cenográfica(Sergi Arbusà) deste Fauno, de funcional aporte técnico/artístico, do desenho de luz (José Geraldo Furtado), particularizado na imagística cinética entre sombras, à tessitura plástica de um inflável cuja transparência favorece, sobremaneira, as relações espaciais palco/plateia.

Na imanente  fisicalidade conectada a uma dramaturgia de subjetivação através dos bailarinos/criadores(Mônica Burity/Tiago Oliveira)  em potencializada performance de significado gestual, desde sutis referenciais ao ser mítico como no jogo de desnudamento da máscara humana, nas expressivas contrações e relaxamentos de  tronco e membros.

No entremeio de envolvente score musical/sonoro(Cyril Hernandez/Gustavo Gelmini), indo  de acordes  com prevalência de cordas, entre temas para cello de Jordi Savall a Bach, alterativos com equilibradas passagens de pausa e silencios.

Na singularidade de um suporte ritualístico laico, seguindo Grotowski, para um resultado estético que surpreende, em sua despretensão, fazendo fluir energizado psicologismo social em suas mobilizações físicas.  Tal como na lição antropológica de Bruno Latour : “Ter um corpo é ter disponibilidade para afetar e ser afetado”.

                                            Wagner Corrêa de Araújo    

                                                        
FAUNO está em cartaz no Espaço Sesc/Copacabana/RJ, de quinta a sábado, às 19h; domingo, às 18. 55 minutos. Até 29 de abril.

INSETOS: COM NOSSAS MESMAS MAZELAS


FOTOS/ELISA MENDES

As doutrinas anímicas acreditavam que as potencialidades espirituais não eram exclusividade dos humanos mas de todos os seres vivos povoadores dos espaços terráqueos.

Enquanto mergulhados nos delírios e fantasias da meninice resistimos, sempre, acreditando na identificação com bichos e plantas em diálogos imaginários, alimentados pelos contos infantis e pelas animações dos quadrinhos, das projeções nas telas e das representações teatrais .

O ficcionista britânico George Orwell transmutou em anseios políticos e de afirmação de classes sociais a insurreição anímica contra os donos de um granja inglesa, nos anos 40, em sua Revolução dos Bichos.

Mais recentemente, em 2009, um espetáculo do Cirque du Soleil titulado Ovo, concepção coreográfica de Deborah Colker, sob a marca da biodiversidade,  colocava em cena bailarinos-ginastas atuando como uma comunidade de acrobatas-insetos.

E, agora, Jô Bilac retoma o tema ao apresentar sua mais recente incursão dramatúrgica – Insetos – estabelecendo uma travessia orgânico/cênica comparativa com as mazelas da nossa contemporaneidade, sem distinção se entre bichos ou para homens.

Que vem muito a propósito para celebrar os 30 anos da Cia dos Atores, onde houve por bem a envolvente montagem de outro Jô Bilac – Conselho de Classe, em  2014. E, aqui, dentro de uma proposta de criação coletiva com a participação dos atores fundadores da trupe –Cesar Augusto, Marcelo Olinto, Marcello Valle e Susana Ribeiro - e com a convocação de um comando diretorial da hora - Rodrigo Portella.

Diante de um caótico sistema de vida universal, quase já insustentável, sujeito a lutas territoriais e êxodos entre os povos, desrespeitador do equilíbrio ecológico, especular no próprio conceitual das relações humanas e da preservação da natureza como um todo, homens e insetos se identificam nas mesmas adversidades e nos mesmos desafios.

Como num holocausto, baratas sucumbem em ações de extermínio por gazes, ou são extirpados os que são mais frágeis, como as borboletas, pelos mais fortes - besouros guerrilheiros, gafanhotos terroristas ou um louva a deus tirânico. Enquanto as abelhas expulsas de seus habitats voam sem rumo, outros insetos sonham com o paraíso português e aí qualquer analogia brasileira não é mera coincidência.

Inventiva ambiência cenográfica (Beli Araújo/Cesar Augusto) numa instalação plástica à base da mobilidade de pneus, se integra aos figurinos lúdicos(Marcelo Olinto) com leves traços de atributos referenciais destes micro seres(entre asas e antenas), sob luzes entre sombras(Maneco Quinderé). Aos quais se juntam os enérgicos acordes da trilha de Marcelo H e as sutilezas gestuais miméticas de Andréa Jabor.

A tamanhos e tantos ingredientes, acrescente-se a força de performances empenhadas na entrega à unicidade de uma ideia dramática diferencial: Cesar Augusto, Susana Ribeiro, Tairone Vale e na alternância entre os Marcelos, Valle e Olinto, o último em incisivo molejo de sua físico/emotiva corporeidade como homem/inseto.

Mas apesar de tantos atributos técnico/artísticos que fazem sobressair o esforço comum de elenco e direção por um produto bem acabado fica, ainda assim,  uma sensação de certa incompletude nas intenções textuais/dramatúrgicas deste Insetos

Que não se expande totalmente em cena e não alcança um retorno mais cúmplice do público, ampliado pelo estranhamento de um espaço improvisado e com pouco favorecimento para a percepção teatral.

Faltando, enfim, um tom acima na convicção de uma boa ideia temática que fica, em meios vôos,  na dosagem entre o irônico e o ingênuo, carecendo de maior avanço em seu contraponto crítico e no investimento estético/ideológico pelo desentorpecimento em tempos tão teimosos como os nossos.

                                         Wagner Corrêa de Araújo




INSETOS está em cartaz no CCBB/Centro/RJ, quarta a sexta, às 19h;sábado, às 17h e às 19h;domingo, às 19h. 80 minutos. Até 6 de maio.

MORDIDAS : UMA COMÉDIA SELVAGEM

FOTOS/CRISTINA GRANATO

A dramaturgia argentina contemporânea, com Mordidas (Tarascones), do conceituado autor, ficcionista e compositor Gonzalo Demaria, traz outro exemplar de sua mais recente safra aos palcos brasileiros. Desta vez com um inusitado sotaque de comédia absurda, tanto pela mordacidade em sua abordagem temática como por seu ironizado revestimento linguístico em versos rimados.

Original de 2016, Prêmio ACE(Asociácion de Cronistas del Espectáculo) como melhor texto , em menos de dois anos tornou-se um fenômeno de público e de crítica. E que chega entre nós, em versão de Miguel Falabella, com um olhar diferenciado da montagem platina pela visão concepcional do diretor Victor Garcia Peralta.

Na sua teatralidade cômico/burguesa de sintaxe poética, Mordidas vai desnudando, na sua progressão dramática, um humor áspero e grotesco. Inicializado no entremeio de falsas aparências de refinamento, em alienados encontros de quatro amigas ricas que gastam suas tardes entre carteados, vulgaridades estéticas e  maus dizeres.

Até que, numa destas vesperais de chá, jogos e futilidades, caiam no estranhamento pela descoberta de um estupidificado crime doméstico cometido pela criada de uma delas(no caso, Raquel). No retirar friamente a vida de inocente ser feminino nominado Bola de Neve e, indo além na brutalidade, ao deflorar seu hímen com intermitente derrame sanguíneo .

Aprisionada num dos cômodos da casa da madame Raquel (Regina Braga), a desprezível serviçal aguarda por uma resposta jurídica a partir da falaz simulação de tribunal doméstico. Integrado, além da patroa, por suas três amigas Stela(Luciana Braga), Martita(Zélia Duncan) e Zulma(Ana Beatriz Nogueira).

Mas é quando começa o veredito, precedido pela entrada do cortejo funéreo sala a dentro, que se revela enfim a verdade sobre o corpore victimis exposto numa caixa de sapatos de grife: trata-se não de uma menina mas da cachorrinha de estimação de Raquel.

A partir daí, cada uma delas assumindo o papel jurídico que lhe coube começa um jogo de manipulação das duplicidades faciais. Mascarado nos súbitos depoimentos sem escrúpulos e de ímpio riso, tanto pelo nojo às classes sociais inferiorizadas como na revelação de almas ressentidas por sua vulgaridade e vilania.

E onde as quatro atrizes, em sintonizada pulsão performática entre a fisicalidade naturalista(Márcia Rubin) e o dimensionamento psicológico dos personagens, fazem uso dos mecanismos grotescos/risíveis a que conduz uma particularizada narrativa em palavra versificada. Com carga de maturidade e carisma que faz também resgatar o potencial de celebrada cantora (Zelia Duncan) com um convicto domínio dramático do palco.

No contraponto crítico de um absurdo velório canino ao comportamental histriônico pós uso de máscara, com  insólita exposição de um  incomodo factual de verdades e mentiras. Contextualizadas na elegância quase kitsch da ambiência cenográfica(Dina Salem Levy) e da refinada indumentária(Carla Garan), sob vazamento luminar(Wagner Azevedo).

Em segura amarração desta gramática cênica assumida pela direção de Victor Garcia Peralta, numa comédia selvagem, de verve lúdico/policialesca, fazendo rir apenas por sua absurdidade ingênua. Mas com carga de sarcástico verismo em sua denuncia comportamental  de podres poderes que, na sua descompromissada dramatização de um conflito de vontades, ainda assim pode fazer reflexionar em tempos também de tantas impossibilidades... 

                                               Wagner Corrêa de Araújo 


MORDIDAS está em cartaz no Teatro Fashion Mall/São Conrado/RJ, sexta e sábado, às 21h; domingo, às 19h30m. 70 minutos. Até 27 de maio.

YANK! O MUSICAL!: CELEBRANDO A RESISTÊNCIA AO PRECONCEITO


FOTOS/ CAROL PIRES

Um dos fetiches do universo gay é a ambiência militar com seus uniformes, banhos coletivos e o convívio próximo de uma fisicalidade jovem submetendo-se aos jogos hierárquicos do domínio e da submissão nos acampamentos  e quartéis.

Que se faz presencial na literatura e no cinema, com exemplificações  que vão do romance O Bom Crioulo do brasileiro Adolfo Caminha, no final do século XIX, à celebrada criação ficcional de Jean Genet – Querelle -  e na sua transposição cinematográfica por Fassbinder , com o olhar armado na contemporaneidade.

E, pela primeira vez, abordado como uma temática de enfrentamento pelo musical americano do terceiro milênio por iniciativa autoral de dois irmãos de sangue, assumidamente homossexuais, David(escritor e libretista)e Joseph Zellnik(compositor) em “YankUma História de Amor da Segunda Guerra Mundial, original de 2005.

Onde onze personificações masculinas servem de esteio para uma narrativa dramatúrgica no front americano dos anos quarenta da II Guerra Mundial. Partindo da descoberta, por um jovem de San Francisco, do manuscrito/diário de um soldado americano - Stu(Hugo Bonemer) - integrante de um pelotão de 1943 -  com intimistas revelações de sua atração sexual por um colega de farda – Mitch(Conrado Helt) - de irrestrita postura hétero .

Na progressão dramático/musical da narrativa cênica, o conflituado embate mental de Stu , no aceitar de sua sexualidade nesta entrega a uma paixão "proibida", vai se transformando num jogo arriscado diante do preconceito dos colegas e da pulsão conservadora e punitiva das patentes superiores como o Sargento ( Bruno Ganem).

Na alteridade das cenas com os camaradas de armas, em rápidas entradas e saídas, a única representatividade do feminino através de uma show woman, na linha Betty Grable, com suas performances de animação dos recrutas, interativa com certa referência lésbica em outro papel. Em potencializada energia vocal e elegante atuação pela atriz/cantora Fernanda Gabriela.

Até a chegada do fotógrafo gay Artie provocando Stu a ser repórter da revista Yank, de destinação lúdica para os soldados, ao mesmo tempo, em que o incita a dar um basta a qualquer repressão sexual. Na autenticidade de afetado gestual enunciativo da irrestrita postulação pelo amor entre iguais, na bem humorada performance de Leandro Terra.

Apesar da ameaça de um certo assédio nas insinuações eróticas do partner de imprensa, o soldado Stu torna cada vez mais ousada sua relação afetiva por Mitch, superando a ilicitude e perversão apontadas pelos camaradas de farda.

Numa produção cenográfica recatada, sujeita às adversidades da falta de patrocínio, e quase sugestionando uma obra em construção, cada um faz o melhor que pode para o alcance de um objetivo teatral comum, através do seguro incentivo diretorial de Menelick de Carvalho. 

No minimalismo dos materiais de palco(beliche, cadeiras e pequena mesa) e na adequação da indumentária militar, tudo com sóbria direção de arte(Vitor Aragão) e prevalência luminar mais vazada (Daniela Sanchez).

Ao lado de um dedicado grupo instrumental com sonoridade camerística, entre cordas e teclados, sob o habitual apuro do comando musical de Jules Vandystadt, com sutis ecos do musical anos 40/50 em frases de proximidade nostálgica a la Hartz/Hammerstein, em versão das canções com dúplice autoria - Menelick de Carvalho / Vitor Louzada. 

De bom alcance em episódicas sequências coreográficas com uma pincelada tap dance por Clara da Costa, no compartilhamento do elenco principal em coadjuvância coral/gestual  com os demais atores(Dennis Pinheiro, Leonam Moraes, André Viéri, Alain Catein, Robson Lima e Rhuan Santos). 

E, em convicta química nas cenas de protagonismo, de artesanal tessitura vocal/dramática, tanto as de Hugo Bonemer como as de Conrado Helt, tornando verista e de um naturalismo isento de estereótipos a cumplicidade, num permissivo sensorialismo físico/psicológico, que parece se estender além da quarta parede.

E que, neste Yank!O Musical!, não importando qualquer restrição como resultado artístico e imune a qualquer acusação degenerativa, valida-se por sua celebração dramatúrgica da resistência pela  liberdade de opção sexual.

                                         Wagner Corrêa de Araújo


YANK! O MUSICAL! está em cartaz no Teatro dos Quatro/Shopping da Gávea/RJ, terça e quarta, às 20h. 130 minutos. Até 2 de maio.

BALLET DU CAPITOLE DE TOULOUSE: DISTANCIANDO-SE DE NUREYEV




Da viagem natalícia(1938) num  trem transiberiano à sua morte parisiense (1993, vítima do  HIV) , Rudolf Nureyev foi talvez o mais emblemático símbolo da dança masculina clássica russa no século XX, na mesma linhagem que consagrara seu antecessor Vaslav Nijinski. Tendo, ainda, inicializado a trilha dos bailarinos desertores da então União Soviética, na Paris 1961, seguido, entre outros, por Mikhail Baryshnikov.

Com seu talento instintivo, depois de rápida ascensão da dança folclórica ao grande repertório clássico do  Kirov Ballet ele foi, ao mesmo tempo, se caracterizando por uma personalidade impositiva, ora pelo caráter egotista/vaidoso, ora por seu orgulho carregado de extremada arrogância.

Da sua consagração no ocidente europeu, com o mesmo patamar de fama de um pop/rock/ star, dos anos 60 até a proximidade de sua morte. Quando, mesmo debilitado, ainda surpreendeu com suas derradeiras performances e com a despedida de coreógrafo e diretor do Balé da Ópera de Paris, em La Bayadère.

E foi neste Corpo de Baile onde começou a trajetória do bailarino de ascendência árabe Kader Belarbi que, anos depois, a partir de 2012 torna-se o responsável artístico pelo Ballet du Capitole de Toulouse. Que faz a presente tour pelo Brasil, coincidentemente com um programa/tributo ao seu antigo mentor coreográfico ,  na titularidade de Nos Passos de Nureyev.

Mas, enquanto era promissora a expectativa por seu conceituado trabalho autoral, de prevalente originalidade no La Bête et la Belle em Dead Queen ( já lançados inclusive em dvd), ficou  em compasso de dúvida o programa trazido ao Brasil. 

Anunciado como uma retomada de alguns momentos capitais da trajetória de Nureyev, cada número dando esperança de que , certamente, haveria ali uma memorável representação. Mas questionada já na abertura como um contraponto a uma afirmação do próprio Kader Belarbi : “Como dar o ato das sombras de La Bayadere se eu não conseguir alinhar 32 dançarinos de alto nível ?”.

Não havendo em cena menos da metade das personagens, entre as (Sombras) bailarinas, descendo por minimalista rampa, num sequencial  sem nenhuma sugestão do clima diáfano pela deficiente iluminação. Com interpretação correta do naipe feminino e uma ajustada dupla protagonista, com um não tão convicto personagem masculino (Solor , por  David Galystan).

Mesmo com certa pureza de linhas, sem rigorismo absoluto na repetição dos códigos originais, a culminância com o Adagio, no Pas de deux(Tiphaine Prévost/Phillipe Solano)do Ato III da Bela Adormecida, marca carismática de Nureyev, soou fria e não empolgou o público. Seguindo-se a  cena de amor , ato I, de Romeu e Julieta, com maior élan emotivo e convicta técnica, no duo de mais inspirado retorno da performance como um todo(Alexandra Surodeeva/Rouslan Savdenov).

Quanto ao Pas de Trois do Lago dos Cisnes(Ato III), teve expressivo alcance na agradável revelação das variações de Rothbart por um bailarino brasileiro solista e  boa cria da Escola do Teatro Bolshoi em Joinville, o gaúcho Norton Ramos Fantinel.  

O epílogo – a cena 2 do Ato III de Don Quixote – e  único quadro com uso de elementos cenográficos, funcionou na plasticidade rítmica da dança típica espanhola(fandango) e na envolvência presencial de  jovens solistas, um cubano(como Basílio(Ramiro Gómez Sámon) e uma Kitri (Julie Charlet) francesa que, enfim,  fizeram por merecer os aplausos .

Sem servir de autenticado referencial, mesmo com seu belo propósito/tributo,  a um dançarino apolíneo, padrão entre a fisicalidade masculina erotizada e uma sensitiva gestualidade quase feminina, o Ballet du Capitole de Toulouse tornou pálida a lembrança dos passos de Nureyev. Deixando distanciar-se da nuance especular do legado deste criador tão grande quanto narcisista mor. 

Artista ímpar, difícil gênio.  E, enfim, capaz de recusa até por Balanchine : “Quando você  cansar da brincadeira de ser um príncipe, venha até mim”...
                                     
                                                Wagner Corrêa de Araújo


BALLET DU CAPITOLE DE TOULOUSE em turnê nacional, Rio de Janeiro, dias 5 a 7(Theatro Municipal), São Paulo, dias 10 e 11(Teatro Alfa) e Curitiba, dia 14(Teatro Guaíra). 120 minutos. Até 14 de abril.

ROMEU E JULIETA: UMA APOSTA ACERTADA


FOTOS /  CAIO  GALLUCCI

A mais popular obra de William Shakespeare, com sua pulsão poética, de tragicidade e paixão, em torno da impossibilidade de uma delirante relação amorosa entre dois jovens de famílias rivais. Do amor ao ódio, é um exemplar puro e absoluto de vitalidade como criação dramática e de irretocável empatia por seu dimensionamento psicológico atemporal.

Capaz de atravessar séculos e empolgar quaisquer gerações, no seu extremado desafio pela afirmação corajosa de um casal proibido por conveniências político/sociais de duas clãs inimigas –  Montecchio e Capuleto – da Itália renascentista, arrastando  a um pacto de paixão e morte os enamorados adolescentes.Assim é, e sempre será , Romeu e Julieta, icônica dramaturgia em temática extensível e interativa às diversidades comportamentais e conceituais sobre o amor entre  povos e nações.

A partir da trama original alcançando celebradas versões, da ópera ( Bellini e Berlioz) à música sinfônica e à dança(de Tchaikovsky a Prokofiev). E no universo cinematográfico, entre inúmeras outras de fidelidade rigorosa ou não, a campeã ,na preferência do público, no ideário estético de  Franco Zefirelli.

Além do teatro musical( Bernstein e sua West Side Story) e de outras releituras inventivas, com o olhar armado na contemporaneidade, como as do teatro brasileiro, com Antunes Filho e o Grupo Macunaíma  e a de Gabriel Vilella e o Galpão, com forte aporte circense e com lastro de mineiridade .

E é neste seguimento de representação investigativa que se insere a acertada aposta dramatúrgico/musical de Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche, em descortinadora visão concepcional /diretorial de Guilherme Leme Garcia, para este Romeu e Julieta em compasso carioca.

Que não inviabilizou o discurso shakespeariano ao adotar uma trilha com o repertório composicional e interpretativo de Marisa Monte e seus parceiros, mantido no seu contextual, tanto nas harmonias como no suporte lírico das canções, em alterativa identidade com o desenvolvimento narrativo/teatral.

Sublinhando a ação através de apurada percepção sonoro/musical( sob o comando de Apollo Nove), sem confronto radical,  da trama renascentista do bardo inglês diante dos acordes sambistas do repertório da compositora/cantora. Aqui, potencializado no dinamismo de vozes, irretocavelmente preparadas por Jules Vandystadt, na envolvência unificada de um afinado grupo instrumental.

A direção de Guilherme Leme Garcia se equilibra como um jogo cênico descontraído, mas sem nunca avançar demais desqualificando o esteio clássico da obra, sabendo dosar os recursos histriônicos, com sutis avanços de comicidade, paralelos a elegante postural dramático.

Apenas com um tom acima na exploração de um clima farsesco na cena do baile com seu referencial drag/funk  e na estilização glitter do personagem Mercuccio, embora Ícaro Silva dê uma lição de instintiva espontaneidade na sua linguagem corporal e nas variações de sua tessitura vocal. Não deixando de ter um certo eco, inconsciente talvez, do comportamental de rebeldia punk do mesmo personagem na versão 1984, de Antunes Filho.

Com incisiva exploração dos contornos bem humorados de seu papel, Stella Maria Rodrigues é uma Ama que alcança a cumplicidade da platéia. Enquanto Cláudio Galvan(Frei Lourenço) surpreende pela convicção com que assume ora um traço de compreensiva afabilidade ora uma expressão de solene autoridade religiosa.

Os protagonistas titulares – Thiago Machado(Romeu) e Barbara Sut (Julieta) revelam-se como interpretes quase inteiramente prontos para o carisma de seus personagens, com seus belos timbres juvenis, em adequada e elegante fisicalidade gestual/coreográfica (realçada por Toni Rodrigues). Onde a contínua busca de intensidade nas suas performances, por vezes, mostra lances de timidez e alguma insegurança que, certamente, serão superadas no desenrolar de uma longa temporada.

Quanto ao resto de um elenco dedicado, vale mencionar , entre outras, a competência de Kacau Gomes, Marcello Escorel, Pedro Caetano e Bruno Narchi, de maior ou menor evidência de acordo com suas entradas, falas  e cenas.

No aporte de uma  artesanal criatividade , entram os figurinos ( João Pimenta) que, mal dosados na cena do baile, são compensados em visível bom gosto nas cenas intimistas do quarto de Julieta e das cenas de amor e, exponencialmente, na sacralizada cena do casamento com suas ritualísticas capas.

Sugestionando com o desenho luminar(Monique Gardenberg/Adriana Ortiz) uma rica imagética amplificada na sua expressiva identificação com a imponente arquitetura cenográfica móvel(Daniela Thomas), num sotaque operístico a La Fura dels Baus. Integralizando, enfim, uma diferencial gramática cênica para o musical de concepção pátria.

                                                Wagner Corrêa de Araújo


ROMEU E JULIETA está em cartaz no Teatro Riachuelo,Centro/RJ, sexta , às 20h; sábado, às 16h e às 20h; domingo, às 18h. 120 minutos. Até 27 de maio.

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