REDEMUNHO: TRANSCENDENTE FIDELIDADE

FOTOS/SILVANA MARQUES

Um dos aspectos relevantes da transposição dramatúrgica de quatro dos contos do livro Faca, do escritor cearense Ronaldo Correia de Brito, na peça Redemunho é a perceptível fidelização à textualidade  do autor.

Assim, neste desafio do respeito absoluto à sua originalidade ficcional e no difícil  embate da eficaz teatralidade de obras literárias, transparece um raro cuidado estético sem prejuízo do diferente enunciado –livro/palco.

Sem perder em momento algum a essência do signo verbal, o trabalho diretorial de Anderson Aragón faz da sua reescritura dramática um  resultado artesanal de convicto encontro e feliz convívio de duas linguagens artísticas.

Onde o simbólico aporte cenográfico( Doris Rollemberg), com referencias a elementos da cultura popular nordestina , também incidente na indumentária (Flavio Souza), é ressaltado pela simbiose de recatados recortes do  desenho de luz (Anderson Ratto) e da  inspiradora trilha sonora de Alfredo Del-Penho.

Equilibrando  narrativa , ora descritiva ora confessional, com dialetal confronto dos oito personagens passionais em quatro quadros de dúplice caracterização , alternado por Alexandre Dantas, Ana Carbatti e Cláudia Ventura em enérgica loquacidade e sensorial fisicalidade ( Sueli Guerra).

Na prevalente  expressão de suas adversidades familiais,  em inquietas interiorizações de desejos sufocados e nas  pulsões tempestivas de  rebeldia contra os arquétipos  de um mítico regionalismo nordestino.

Introduzindo sempre a fabulação de cada uma das histórias sem revelar por inteiro sua trama em ordem sequencial  mas levando-as, em intercurso  fragmentário, ao seu epílogo.

Desde o  orgulho genealógico e sua desfeita,  no frustrado  cotidiano de mãe e filho (Redemunho),   às dúvidas do real pertencimento amoroso ao almejado consorte ou ao esposo circunstancial ( A Escolha).

Ou a trágica causa parricida no confronto materno/filial entre duas mulheres ( Cícera Candoia) e o inferno domiciliar feminino, em submissa relação conjugal, questionada na passagem de um circo (Mentira de Amor).

É na  multiplicidade das vozes narrativas assumindo  facetas masculinas ou femininas, em contumaz entrosamento, fluência, ritmo e verdade introspectiva de um elenco,  que se estabelece a cumplicidade com a plateia.
Onde o encantamento pela palavra literária e pelo  rito teatral estão, além da estimulante performance(Alexandre Dantas, Ana Carbatti e Claudia Ventura), no alcance do comando de Anderson Aragón - por um espetáculo  de transcendente libertação cênico/literária dos fantasmas do mundo interior.
                                          Wagner Corrêa de Araújo



REDEMUNHO está em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim/Ipanema,sexta e sábado, às 20h; domingo, às 19h. 80 minutos. Até 03 de abril.

O GRANDE SUCESSO : ENTRE A VIDA E O PALCO


FOTOS/PRISCILA PRADE


Fama e fracassos contextualizam tanto as incursões teatrais como as trajetórias existenciais , ora alternando êxitos,  ora pelos signos das derrotas e das decepções.

E foi ,assim, neste desvelo,  a conceitual abordagem deste tema metaforizado em relatos de vida e de arte nos bastidores de um teatro. 

Criação do dramaturgo/ encenador Diego Fortes, O Grande Sucesso reunindo, simbolicamente, uma trupe de atores, nas suas idas e vindas  , entradas e saídas, entre um camarim e um palco.

Um elenco convicto(Carol Panesi, Edith de Camargo, Fernanda Fuchs, Fábio Cardoso, Eliezer Vander Brock, Marco Bravo, Rafael Camargo) conduzido pelo seguro protagonismo de Alexandre Nero, faz  sua  entrega absoluta a um lúdico e reflexivo jogo.

Desmistificando o ilusionismo e a mágica da teatralização pelo desnudamento sensorial da psicologia confessional, no ritual  de passagem entre o ato de viver e o ato da representação deste existir.

Nesta comédia humana da vida privada de cada um o percurso, entre dimensionamentos interiorizados ou revelações explícitas, tem o auxilio carismático do score musical, sob o comando regencial de Gilson Fukushima.

Onde canções certeiras sublinham, entre acordes vocais e instrumentais ao vivo, sentimentos introspectivos e gestualidades de instintiva espontaneidade, em eficaz corporificação de vozes , gestos e máscaras direcionadas por Carmen Jorge.

O apurado décor cenográfico é de Marco Lima, reproduzindo a ambientação backstage,ao privilegiar o desordenamento de roupas e objetos espalhados, espelhos , instrumentos musicais. Tudo aguardando a sua hora e a sua vez , na unicidade  matéria e carne, pequena magia na grande verdade do universo cênico.

Enquanto as mutabilidades de adereços e figurinos (Karen Brusttolin)  vão se incorporando às sucessivas personificações de tipos e estados de ser, os  efeitos de sombra e luz  (Nadja Naira) sugestionam os contrapontos afetivos e comentam as ações dramáticas.

Mesmo com ocasionais quebras de ritmo com a constância da uniformidade narrativa e na reiteração das entradas e saídas de cena, a performance  equilibra bem  incidências corriqueiras ,de queixas financeiras a desabafos  cotidianos, com   recortes líricos autorais ou a livre apropriação poética  de Fernando Pessoa.

O lance de dados pirandelliano na concepção dramatúrgica a quatro mãos(Alexandre Nero e Diego Fortes) de O Grande Sucesso foi visionar ,através do teatro dentro do teatro, o eterno  ir e vir entre  o eu e o  seu reflexo especular.

A  identificação metafísica,  enfim ,com  os personagens que todos nós, atores e espectadores, representamos  no  palco da vida.

                           Wagner Corrêa de Araújo


O GRANDE SUCESSO está em cartaz no Teatro do Leblon, sexta e  sábado, às 21h;domingo, às 19h. 105 minutos. Até 30 de abril.

UBU REI: E VEIO A NÓS O SEU REINO...


FOTOS/CARLOS CABÉRA

Foi ainda em seu período escolar que o francês Alfred Jarry começou os esboços para sua futura e única obra registrada na história mundial do teatro. Titulada inicialmente de Os Poloneses, chegou a ser publicada e teve boas referências criticas como as de Apollinaire.

Mas foi na sua  versão definitiva como Ubu Rei que a peça estreou, no final de 1896, causando uma das maiores polêmicas e um escândalo tal que nunca voltou aos palcos na curta vida do autor (1873/1907).

Por outro lado, apesar das suas duas diferenciais retomadas, prevaleceu a inicial como marco precursor de alguns dos mais significativos movimentos estéticos  das primeiras décadas  do século XX – o dadaísmo , o surrealismo, o futurismo, com incisivo reflexo especular na conceituação do teatro do absurdo.

Concebido, originalmente,  como uma forma de protesto contra  os desmandos de seu professor ginasial de física, o extravagante , insensato e imoral personagem do Pai Ubu (Marco Nanini) sob as ingerências maléficas da Mãe Ubu( Rosi Campos) se transforma no anti-herói mau caráter e  assassino, além de  usurpador do trono polonês.

Na sua trajetória grotesca e insana vai eliminando,  sem quaisquer remorsos, todos com que  se defronta , da família real aos representantes dos poderes instituídos de ministros a juízes, como no desprezo pelo povo, em atos  de fria vileza e sempre com intuitos de luxúria e proveito personalista.

E se na sua época teve um forte referencial nas vilanias  dos shakespearianos Macbeth, Ricardo III, Hamlet e Julius Caesar, tornou-se uma metáfora ridícula dos grandes ditadores. De Hitler e Stalin aos seus atuais paradigmas e na farsa democrática das classes políticas ,  como a brasileira chafurdada em lama até a cabeça.

Imprimindo ao lado do sombrio surrealismo um toque de cáustico humor, a concepção de Daniel Herz ,em mais um de seus habituais desnudamentos inventivos diretoriais, foi longe no espelhamento de universos artísticos paralelos para expressar a domesticidade bestial do Ubu Rei.

Das citações cenográficas(Bia Junqueira) e indumentárias(Antonio Guedes), entre a estética antropofágica / surreal às remissões dadaístas de paródias de ingênuo e lúdico apelo infantil. Tudo sublinhado pelas sutis intervenções luminares (Aurélio De Simoni) e pela enérgica e percussiva música ao vivo (Leandro Castilho).

A prevalência do irrepreensível desempenho, de protagonismo absoluto tanto de Marco Nanini como de Rosi Campos, é  alternada pelo desafio de segurar  entradas episódicas dos outros nove e competentes atores(Ana Paula Secco,Leandro Castilho,Márcio Fonseca, Paulo Hamilton , Verônica Reis, ao lado do elenco mais jovem-Cadu Libonati, João Telles, Tiago Herz e Renato Krueger), em performances e papéis , às vezes,  mais propícios.

Mas em Ubu Rei há que se reconhecer o difícil exercício  cerebral de um texto cuja implosão rebelde contextualiza-se em sua historicidade, obrigando-o a exigir sempre uma radical nuance de contemporaneidade a superar seu tempo de emblemático factual.

E se esta montagem apresentou uma perceptível riqueza imagística e delirante teatralidade, faltou-lhe apenas ser levada às suas últimas consequências .

Pois o seu  desabuso temático e sua irreverencia moral  tem antíteses tão próximas  às de  “certa república”, que poderíamos, aí então, gritar, em rascante  empatia, Ubu  Rei “veio a nós o seu reino !!!”...

                                    Wagner Corrêa de Araújo


UBU REI está em cartaz no Oi Casa Grande, Leblon, de quinta a sábado,às 21h;domingo,às 20h. 90 minutos. Até 30 de abril.

GISBERTA: EPITÁFIO POR UM TRÁGICO (TRANS)DESTINO


FOTOS/ELISA MENDES

Num recorte , de amarga poesia, a trajetória do ser “transgênero”,no “entre lugar” a que é relegado pela postura social preconceituosa , representada aqui por um transexual  brasileiro – Gisberta.

A comoção nacional pelas circunstancias de sua trágica morte na cidade do Porto, fez Portugal  impulsionar novos  direcionamentos contra a onda transfóbica , com atitudes de reconhecimento jurídico pelas causas da diversidade sexual.

Simultaneamente, o tema chegou aos palcos lusitanos contando sua estória pelo olhar materno, além de ter inspirado um documentário austríaco. E, também, ao  chegarem  a hora e a vez pátrias num espetáculo/tributo  teatral :  Gisberta , texto de Rafael Souza-Ribeiro, na direção de Renato Carrera e no protagonismo  de Luis Lobianco.

Onde Luís Lobianco revela, em sensorial performance solo, um estreito relacionamento com  uma sofisticada trilha musical/autoral ao vivo  (Lúcio Zandonatti, piano e composições, Danielly Sousa, flauta e Rafael Bezerra , clarineta, na organicidade de um tríduo  de acordes vocais/instrumentais).

A trama dramatúrgica  misto de  narrativa/ documentário/musical, ainda que fragmentariamente, faz um esboço biográfico desde as primeiras auto manifestações comportamentais de descoberta da real identidade sexual de Gisberta.  De um retrato confessional e intimista do personagem na sua lenta tortura cotidiana e no sádico assassinato, em 2006,por um bando de adolescentes de um reformatório na cidade do Porto.

Atravessando sua perigosa inicialização como travesti pelas ruas paulistas e sua gloriosa década europeia como one woman show transformista, até a miserável decadência , como objeto sexual, entre drogas, surtos depressivos e aids.

Numa atmosfera híbrida , entre a  euforia e a comoção,  o riso irônico e a dor atroz, conduzida com raro brilho por uma convicta direção( Renato Carrera) e por uma admirável interiorização e entrega  à representação por  Luís Lobianco.

No uso de um figurino solene ( Gilda Midani), quase ritualístico, com sua túnica integrada às  sombreadas luzes (Renato Machado) e cinzenta ambiência cenográfica(Mina Quental).

Mas  capaz de se transformar subitamente ,  entre sedas e paetês, em incisivo manifesto crítico aos clichês e  estereótipos  das postulações transfóbicas e em referencial contraposição a todas as formas de seu deboche e marginalização.

Num enaltecimento da criação trans, no favorecimento de seu resgate social e pelo alcance de seu valor artístico, construindo, assim, um digno personagem.Perceptível na autenticidade  de uma performance  capaz, entre tantas adversidades,  de emotivo reflexionar  e coloquialista adesão palco/plateia.

                                               Wagner Corrêa de Araújo


GISBERTA está em cartaz no Teatro III do CCBB/Centro/RJ, de quinta a domingo, às 19h30m. 90 minutos. Até 30 de abril.
EM NOVA TEMPORADA , no Teatro Dulcina/Centro/RJ, sexta a domingo, às 19h30m. Até 02 de Julho.

GOLDEN GATE: RISÍVEIS PULSÕES SUICIDAS


FOTOS/ DIVULGAÇÃO

Se considerado um delito  contra a própria vida, o suicídio tem um singular conceitual – é o único ato criminoso que não propicia nenhuma forma posterior de culpabilidade ou de arrependimento. Também pode ser a mais cabal demonstração de derrota ou fragilidade diante dos reveses da vida.

Diante de tais especulações morais ou filosóficas , o documentário A Ponte,  de 2006, do americano Eric Steel registrou, com uma câmera fixa, um fluxo sequencial de suicidas no mais atrativo point mundial  para se atirar mortalmente em águas profundas – a Golden Gate Bridge, em San Francisco.

Inspirado pelo verismo dramático das imagens fílmicas e seus depoimentos de amigos e familiares dos suicidas, o jovem  ator Igor Cosso partiu para a sua segunda incursão autoral. Que  , no desvio de uma previsível expectativa temática, com um irônico , crítico e risível  olhar, resultou numa gratificante surpresa da nova dramaturgia carioca – "Ponte Golden Gate”.

Frente a carência de recursos financeiros, ele  reuniu uma convicta equipe técnica e artística de amigos numa proposta despretensiosa, em formato de esquete,que lhe conferiu  inúmeras premiações e participações em mostras e festivais.

Animado, recorreu, então,  ao profissionalismo de Wendell Bendelack para imprimir–lhe um direcionamento mais ousado mas de funcional descontração. Onde as nuances de  comédia dramática e a fluência textual aparecem no eficaz uso de mecanismos do humor para explicar situações de grave introspectividade.

Perceptível no domínio das passagens cênicas de três duplas de turistas brasileiros transitando numa ponte / cartão postal de vida e morte. Onde , sequencialmente,  vão aderindo, entre prós e contras, risos e tragédias,  à aventura de um jogo suicida.

Com um elenco de jovens mostrando-se, todo o tempo, seguros no naturalismo de suas falas coloquiais e com um relaxamento gestual sem quedas no histrionismo gratuito.

Da máscara acre do personagem dark de Alexandre Barros às intervenções quase ingênuas da baiana Janete(Mariana Cerrone). Nos arroubos ciumentos de Suzana(Thais Belchior) confrontando as supostas traições do companheiro Geraldo (Rael Barja, este ainda com pequenas oscilações em papel recém-assumido).

E, finalmente, nos sustos do guia turístico Beto(Léo Bahia), diante de uma iminente perda afetiva do namorado Rael (Igor Cosso), com a referencial e divertida irreverência  da canção (Léo Bahia,a capela) Poeira, de Ivete Sangalo.

No capricho e  na simplicidade eficaz da cenografia(Marcella Rica),figurinos(Maria Thereza Macedo),desenho de luz(Frederico Eça) e score sonoro(Flávia Belchior), aliados ao uso diretorial e à entrega do elenco ao vigor do texto, é alcançada a merecida cumplicidade da plateia. 

                                           Wagner Corrêa de Araújo


PONTE GOLDEN GATE está em cartaz no Teatro Ipanema, quartas e quintas, às 20h. 55 minutos. Até 06 de abril.

4 FACES DO AMOR :CAMALEÔNICAS PAIXÕES MUSICAIS



FOTOS/ROBERTO IKEDA

No amor não existe “tu” nem “eu”. Poder-se-ia , a partir deste pensar filosófico de Krishnamurti, encontrar um mote reflexivo para o original conceitual mix das relações afetivas, no roteiro dramatúrgico/musical de 4 Faces do Amor.

Em sua narrativa de nuances confessionais, inspirada no cancioneiro de Ivan Lins, a proposta autoral de Eduardo Bakr , com o comando artesanal de Tadeu Aguiar e um elenco de craques do musical brasileiro, um casal de enamorados se desdobra em outros 3, numa metafórica fusão hetero/ homossexual.

E é assim que os personagens se caracterizam ora pelos apelidos de Duda que se estende, simultaneamente, a Eduardo e Eduarda, ora Cacau, servindo ainda, metonimicamente  , a Cláudia e Cláudio.

O que possibilita com lírica sutileza a passagem  , sem muros e preconceitos, dos encontros apaixonados às inseguranças  e conflitos, dos adeuses aos epílogos, não importando  a prevalência ou especificidade de  quaisquer sexualidades opostas ou homônimas.

Com todas as pulsões do desejo comunizadas em seus singulares direcionamentos  sentimentais  , num reflexo especular, entre a unicidade e a diversidade, da universalização do romantizado, mas sábio,  enunciado lítero /filosófico  de Stendhal :  “o  amor  nada pode recusar ao amor”.

Numa minimalista ambientação cenográfica (Edward Monteiro) , figurinos cotidianos(Ney Madeira/Dani Vidal) e recatadas luzes(Rogério Wiltgen) ambientais, 4 Faces do Amor tem seu dimensionamento psicológico na  teatralização  sensibilizada das canções de amores partidos( estilístico signo da obra de Ivan Lins), ponteando organicamente os  versos musicais e os diálogos dramatúrgicos.

Destilando sua habitual autoridade cênica, Tadeu Aguiar estabelece seguras marcas sensoriais e estéticas na simbiose e no contraponto de afetos em percursos sexuais diferenciais. Embora, mesmo explorando a fundo estas mudanças de contornos dos personagens, não consiga evitar um quase fastio na constância, em idas e voltas sequenciais, da troca de identidades, climas e situações amorosas.

Contando, ainda, com a sólida estrutura interpretativa de experientes nomes do teatro musical (Amanda Acosta/Sabrina Korgut, alternando-se o naipe masculino - Carlos Arruza, Cristiano Galda e Raul Veiga) e de um elegante suporte instrumental de nuances camerísticas (violino-Anderson Pequeno,violoncelo-Fábio Almeida e no piano, acumulando com seus sofisticados arranjos, Liliane Secco).

Nos sortilégios do palco uma fórmula mágica em quarteto – dos Pontos Cardeais da canção de Ivan Lins aos quatro atores no quadrilátero de situações amorosas- a montagem 4 Faces do Amor se distingue pela teatralidade espontânea, pelo relevo de sua trilha musical e da maturidade de seu elenco, que vem lhe garantindo, enfim,  sua longa trajetória em cartaz.

                                       Wagner Corrêa de Araújo


4 FACES DO AMOR está em cartaz no Teatro Gláucio Gil, de sexta a segunda, às 20h. 90 minutos. Até 3 de abril.

MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA: LÚDICO JOGO TEATRAL


FOTOS/JOÃO CALDAS

Dario Fo caracterizou seu inventário teatral com a  exploração diferencial de recursos dramatúrgicos afinados, sempre, na prevalência de um complexo  de experimentações cênicas, privilegiando a  interatividade palco/plateia.

Convergindo todas elas para uma espécie de “canovaccio”, herança das soluções de alcance  popular  da “commedia dell’arte”. Numa empreitada estética claramente delineada no seu “método de sondagem, aproximação e ligação” ator>personagem>espectador  , no seu quase  códice  “Manual Mínimo do Ator”.

Sem nunca deixar de lado o desmonte conceitual dos mecanismos sociais/ políticos, com perspicaz ironia e riso sarcástico, numa reflexiva e mágica ritualização do ofício teatral.

A partir de um momento trágico de conflito na vida política italiana dos anos 60, quando uma série de cinco atentados num mesmo dia, em Roma e Milão,  deixa inúmeras vitimas , as manipulações em torno da detenção de  um dos supostos responsáveis pelas ações terroristas – o ferroviário e anarquista Giuseppe Pinelli, causam inusitada polêmica.

Aumentada na suposição de que ele  teria se atirado do quarto andar do prédio, onde ocorria o interrogatório policial,  gerando neste gesto súbito uma onda opinativa de dúvidas e suspeitas sobre a real veracidade do ato.

Dario Fo, protagonizando este acusado como o personagem guia de sua peça, de 1970, Morte Acidental de um Anarquista, transcende seu status como um louco, capaz de assumir, além de presumido algoz e vítima, outras identidades, ora um juiz, um capitão  ou um bispo, questionando “anarquicamente” a própria razão do processo investigativo.

Esta mutabilidade de personagens atua como um tributo à contumaz função representativa do humano pela teatralidade. E, no contextual temático, numa postura crítica sobre as controvérsias dos julgamentos das causas e dos movimentos político/sociais de quaisquer ideários  e condutas.

A organicidade da presente performance do original dramatúrgico, sob a direção  de Hugo Coelho, estabelece marcações de incisivo histrionismo no protagonismo laminar de Dan Stulbach, com veemente exploração dos contornos e inflexões  gestuais / emotivos dos papéis e mascarações em que é direcionado.

Com espontânea adesão , em variáveis gradações, num elenco de perceptível empenho coletivo destacando , especialmente, a convicção de  Henrique Stroeter  e as estripulias sonoras  do músico/ator Rodrigo Geribello. Equilibrada em postulações consistentes de Riba Carlovich e Marcelo Castro e mais discricionária em Maíra Chasseraux.

A cenografia (Marco Lima) de alusões burocratizantes, a informalidade da indumentária cotidiana ( Fause Haten) e a atmosfera de luzes vazadas( na duplicidade funcional do diretor Hugo Coelho)completam o alcance da montagem.

Que, no comando diretorial de Hugo Coelho, na desconstrução da quarta parede, estabelece um lúdico  jogo com o público em enérgica interatividade acional com o palco.  

Ainda que esta livre exteriorização da trama original incida, por vezes, no iminente risco da mordaz reflexão política autoral  dar  concessão ao superficialismo de um risível deleite.

                                             Wagner Corrêa de Araújo


MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA está em cartaz no Teatro dos Quatro/Gávea, sexta às 21h;sábado, às 19h30m e 22h;domingo, às 20h. 80 minutos. Até 2 de abril.


LOVE, LOVE, LOVE : QUANDO SÓ O AMOR NÃO BASTA


FOTOS/ LEEKYUNG KIM

Amor , amor, amor/ Não há nada que você possa fazer que não possa ser feito/Não há nada que você possa cantar que não possa ser cantado/Nada que você possa dizer, mas você pode aprender a jogar/ É fácil”.

Versos de John Lennon  através da canção All You Need Is Love, como mote inspirador para o primeiro circuito transmissor mundial televisivo(25/06/1967). E que, decisivamente, referenciou, como um hino libertário  comportamental e político,  toda uma geração.

Pois, emblematicamente, são as suas primeiras palavras Love, Love ,Love que titulam o texto dramatúrgico de Mike Bartlett , um dos mais inventivos e promissores nomes do teatro inglês contemporâneo. E que, agora, chega aos nossos palcos , com um elenco de craques  numa incisiva  e reveladora direção de Eric Lenate.

Onde a organicidade do elenco explora, potencialmente, os caracteres  e contornos dos personagens, com especial apuro na espontaneidade de Rafael Primot, na contundência certeira de Yara Novaes e na sensibilização e no  folego rompante dos transes dramáticos de Debora Falabella.  

E no alcance maior das passagens de época, pela eficácia do substrato técnico/artístico. Na mobilidade dos aportes cenográficos(André Cortez), na individuação dos figurinos(Fábio Namatame) e na ambientação climática das luzes( Gabriel Fontes Paiva) e incidências sonoras(L.P. Daniel), sob o comando do mistificador/ mor  Eric Lenate.

Como outras duas criações de Bartlett, já aqui apresentadas  (Cock, Briga de Galo e Contrações),mais uma vez, prevalece o paradigma de conflitos posturais e morais, da insegurança dos relacionamentos afetivos às atitudes de contraponto crítico diante do espaço domiciliar e social.

Mas, em Love, Love, Love num tríptico formato, transcendente  em seu recorte geracional de quatro décadas, no desnudamento  de um mesmo núcleo familiar, da sua inicialização  (1967) ao epílogo (2011) .

E com um cáustico olhar e um sotaque de humor negro, descontextualizando em corte laminar, o explosivo boom em torno das conquistas “anarquistas”, entre o sexo, drogas e rock”n’roll, de uma juventude no apelo redentor do apenas - “tudo que você precisa é de amor”.  

Através de um trajetória narrativa impulsionada no desordenamento das atitudes , entre o descompromisso total e a “porralouquice”  da universitária Sandra ( Debora Falabella) em seus jogos sensuais e lisérgicos com os jovens irmãos Henry(Mateus Monteiro) e Kenneth(Rafael Primot).

No descompasso sequencial da progressiva disfuncionalidade destas viagens pelos espaços siderais da mente quando, ainda os mesmos Kenneth( agora , por Ary França) e Sandra( na performance de Yara Novaes), formam um casal  egoísta. Acomodado, entre álcool e cigarros, e alheio a reais concessões aos filhos adolescentes – Rose(Debora Falabella) e George(Rafael Primot).

E que, entre ressentimentos e num quase fluxo  vingativo à sua personalização livre dos anos 60, ostensivamente, quatro décadas após, isenta-se  , com cínica indiferença, das vicissitudes  dos filhos (a reclusão de George e a aflição financeira de Rose) culpando-os, metaforicamente, por não saberem, enfim, que o sonho acabou.

                                          Wagner Corrêa de Araújo   



LOVE, LOVE, LOVE está em cartaz no Oi Futuro/Flamengo, de quinta a domilngo, às 20h. 110 minutos. Até 12 de março.



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