A Palavra Que Resta/Cia Atores de Laura. Daniel Herz/Dramaturgia e Direção Concepcional. Novembro/2024. Carolina Spork/Fotos. |
Transmutação dramatúrgica, sob mesma titularidade do livro de
estreia, 2021, de um cearense - Stênio Gardel - faz de A Palavra Que Resta, na passagem comemorativa dos trinta e dois anos da Cia Atores de Laura, uma
das grandes surpresas da temporada teatral carioca 2024, sempre na artesanal
maestria da proposta de seu idealizador e diretor Daniel Herz.
Inspirada pelo romance, com sua escritura diferencial num
sotaque linguístico meio roseano, aborda
os conflitos gerados pelo resiliente preconceito machista no agreste nordestino,
reprimindo quaisquer expansões dos desejos homoeróticos. Ao mostrar a súbita atração
de Raimundo, um analfabeto de 20 anos, por Cícero parceiro de labuta rural na imersiva transgressão erotizada dos “sopros de sonho arrepiando a
nuca, a realidade lambendo o desejo”...
O que para ambos, no enfrentamento do “proibido” relacionamento de identitárias sexualidades, acaba por provocar violenta reação parental, especialmente pelo lado genitor de Raimundo, diante do pânico de se repetir a necessária terminalidade, nas águas do rio, como o tio invertido e, então, vitimado em castigo por similar infração moral - “a voz que afaga, a voz que afoga”...
A Palavra Que Resta/ Cia Atores de Laura. Daniel Herz/Dramaturgia/Direção Concepcional. Novembro/2024. Carolina Spork/Fotos. |
E, assim, esta atração amorosa, ao deixar de ser apenas uma
pulsão oculta, provocando agressões brutais vindas do pai com aprovação da mãe, tornada pelo olhar deles, tão
reprovável quanto a ordem proibitiva dada a Raimundo de não se escolarizar, pela priorização
do serviço na roça, tornando-o um analfabeto por meio século.
Impedindo-o de entender as palavras da carta deixada por Cícero
antes da separação definitiva dos dois, guardada esta como um segredo
inviolável de estado por Raimundo, até que este decida se alfabetizar aos 71
anos, para finalmente resgatar o entendimento do que estaria escrito ali.
Senha condutora da versão dramatúrgica / direcional de A Palavra Que Resta, imprimida por Daniel Herz para seis convictos atores e capaz de transcender-se como tributo a uma luminosa jornada de três décadas da Cia Atores de Laura, uma vez mais ele a se destacar por seu irreprimível apuro estético no trato do ofício teatral.
Ao alternar a interpretação dos personagens sendo cada um
deles, sem distinção de sexualidade, protagonistas ora como Cícero
ora como Raimundo, estendendo-se este
delineamento performático a outros papeis sugestionados pela trama literária
original.
Incluindo-se, aí também, a fundamental intervenção do travesti Suzzanny (assumida na peça pela autencidade identitária de Valéria Barcellos) para referenciar a transfobia na
trajetória reprimida e repressora de Raimundo
: “Tu já viu que não tem jeito,
não tem, a mudança vem, ou a gente
correndo atrás dela ou atropelando a gente com tudo”...
Não há como individualizar qualitativamente nenhum dos atores
quando são brilhantes tanto na performance de qualquer uma, como revezando-se em
todas as personificações alternativas (Ana Paula Secco, Charles Fricks, Leandro
Castilho, Paulo Hamilton, Verônica Reis e Valéria Barcellos).
Estendendo-se esta entrega total à representação técnica e
artística de um espetáculo exemplar. Da concepção cenográfica e indumentária de
Wanderley Gomes, no sugestionamento da paisagem lunar/solar sobre o árido sertão
nordestino, ao simbolismo de letras do alfabeto bordadas nos figurinos.
Toda esta plasticidade pictórica, ressaltada bem a propósito pela
iluminação (Aurélio de Simoni), completando-se na funcionalidade coesiva da lírica
trilha autoral de Leandro Castilho, sinalizando alegria entre dores à causa da
sexualidade oprimida, sob sutil psicoficalidade gestual (Édio Nunes).
Da solidez arrasadora desta transposição cênica, tão consistente
quanto poética de Daniel Herz no alcance de sua contundente textualidade literária (Stênio Gardel), que ecoa no recado carismático e tão necessário a dias tão controversos e preconceituosos como os que estamos
vivendo : “Porque a ignorância faz é
isso, exclui, isola (...) como se a gente tivesse que ser o que foi criado pra
ser e pronto, sem escapar para os lados...”
Wagner Corrêa de Araújo
A Palavra Que Resta/Cia Atores de Laura está em cartaz no Teatro Correios Léa Garcia/Centro/RJ, de quinta a domingo, as 19h; até 30 de novembro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário