TRUPE AVE LOLA / CÃO VADIO : ABISSAL IMERSÃO DRAMATÚRGICA NO REALISMO FANTÁSTICO



Cão Vadio/Trupe Ave Lola. Ana Rosa Tezza/Dramaturgia/Direção Concepcional. Setembro/2024.Fotos/Rafaela Scremi.
    

Desde sua criação em 2010, sob o ideário de Ana Rosa Genari Tezza, a Trupe Ave Lola tornou-se uma das mais inventivas cias teatrais curitibanas por seu propósito  múltiplo no encontro de diversas linguagens artísticas, em quase quinze anos de ininterrupta atividade, mesmo no biênio pandêmico.

Tendo já se firmado por sólida trajetória que a levou, inclusive, além das turnês brasileiras, a países como o Chile e a Dinamarca, culminando no convite para  integrar a Quadrienal de Praga, República Tcheca, espaço que reune o mais avançado da performance e do design cenográfico em termos mundiais.

Com o desafio de enfrentar os riscos ainda remanescentes da Covid-19, a Cia estreou através da Tenda Ave Lola montada ao ar livre em conexão com a natureza, nos arredores de Curitiba, seu espetáculo Cão Vadio, em outubro de 2021. 

E que, a partir dali, vem se apresentando como uma de suas criações mais referenciais em diversas cidades brasileiras, alcançando indicações a prêmios, em eventos da importância do paranaense Gralha Azul, mais as versões paulistas e cariocas,  do  Shell ao Cesgranrio.


Cão Vadio/Trupe Ave Lola. Ana Rosa Tezza/Dramaturgia/Direção Concepcional. Setembro/2024. Fotos/Rafaela Scremi.


A dramaturgia de Cão Vadio, por Ana Rosa Genari Tezza, tem, como substrato inspirador, a corrente literária conhecida pela dúplice denominação de realismo mágico ou também como realismo fantástico, sendo ela também responsável pela direção concepcional do espetáculo, dando uma abertura ao processo de uma livre criação coletiva. 

Estendendo-se esta tendência, de grande relevância entre a segunda metade do século XX e o início deste,  a outros segmentos da criação artística, seja às artes plásticas  (a mexicana Frida Kahlo ou o argentino Antonio Berni) ou mesmo a um gênero cinematográfico muito específico, na obra de cineastas como Guillermo del Toro. Tendo seus precursores brasileiros na literatura o escritor mineiro Murilo Rubião e o goiano J. J. Veiga.

O conceitual narrativo e cenográfico da peça apresenta um subliminar referencial imaginário de autores latino-americanos - Borges, Garcia Marquez, Vargas Llosa, mas sem deixar de sugestionar um pouco dos universos de Shakespeare e de Tchekov, no dimensionamento metafórico tanto de temas como de seus personagens.

Trazendo sempre um incisivo recado político, Cão Vadio se insere na realidade insólita de um mundo contemporâneo que, cada vez mais, estipula muros contra as correntes migratórias, promove a exclusão violenta pelos preconceitos raciais, tanto numa falsa religiosidade ou contra a livre identificação da sexualidade.

Aqui, todos são relegados à intolerância numa ambientação cenográfica de teatro cabaré com sotaque surrealista, extensiva aos figurinos (no dúplice imaginário de Eduardo Giacomini), amplificados nos efeitos luminares (Beto Bruel/Rodrigo Ziolkowsky) e na trilha sonora ao vivo (Arthur Jaime/Breno Monte Serrat) sustentada com nostálgicos acordes latinos ou energizada por ritmos brasileiros.

Onde o caos e o pânico, entremeados por um singular  apelo melancólico/poético, são marcados pela simbologia de bonecos e na mascaração facial e gestual de seres humilhados em busca de abrigos inacessíveis, na corporificação alegórica e solitária dos que vivem à margem de tudo, pela performática representação coesiva de  oito convictos atores.

Enquanto o artesanal comando de Ana Rosa Genari Tezza transita numa formatação que se equilibra, da representação naturalista à sua transmutação no mágico encamentamento do realismo fantástico em espetáculo que estabelece pontes carismáticas entre o elenco e a plateia.

E surpreende como um teatro antenado com a problemática de seu tempo, num inventário dramático aparentemente despretensioso mas, antes de tudo,  capaz de transformar o palco, sob  contraponto critico, em núcleo circulador de idéias...

 

                                          Wagner Corrêa de Araújo

 

                 

Cão Vadio/ Trupe Ave Lola está em cartaz no Teatro Nelson Rodrigues da Caixa Cultural/Centro/RJ, de quinta a domingo, às 19h. Até 29 de setembro.

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