Diário de um Louco. Bruce Gomlevsky/Direção Concepcional. Agosto/2023. Fotos/Priscila Frade. |
Há uma conotação referencial do Diário de um Louco ser obra dramatúrgica de meta linguagem, a partir de um conto de Nikolai Gógol (1809/1852), tendo uma singularidade e um simbolismo transcendentes, muito além de seu contexto literário, ao configurar um retrato visionário de uma Rússia Czarista a caminho da Revolução Socialista.
A propósito também de ser mais uma montagem teatral
dimensionada, aqui e agora, por uma releitura sob o habitual signo inventivo de
Bruce Gomlevsky. E dando, assim, sequência a uma trajetória histórica marcada
pela icônica criação do papel por Rubens Correa e, mais tarde, também por
Diogo Vilela. E, desta vez, direcionada a ser o primeiro monólogo do potencial
ator paulista Milhem Cortaz.
Em personagem identitaria com reflexo especular/existencial de seu
próprio criador (Nikolai Gógol), ambos
conturbados pelos recalques e pela postura comportamental ensimesmada, como
auto defesa psicológica, a usar do riso sarcástico para ironizar a vida, o meio
social e a moral de seus contemporâneos.
Numa caracterização transubstancial do tanto que representa esta obra ficcional, a partir de uma inspirada textualidade do russo-ucraniano Nikolai Gógol (1809/1852), no surpreendente significado de sua versão dramatúrgica. E em sua proposta cênica de personificação sub-humana de patéticos títeres sempre nas mãos de um implacável destino.
Diário de um Louco. De Nikolai Gógol. Com Milhem Cortaz. Agosto/2023. Fotos/Priscila Frade. |
Remetendo metaforicamente, por trás das frágeis aparências,
ao escárnio de um homem que acorda, assustado, sem o seu Nariz ou ao simplório status burlesco daquele outro que se disfarça
embaixo de um caro Capote, mesmo com
custo da própria vida.
Ou ao relatório confessional cotidiano deste Diário de um Louco, dividindo-se entre
seu miserável quarto e o medíocre oficio burocrático de apontador de lápis numa
repartição pública. Indo parar, em processo de delírio esquizofrênico, no
confinamento de uma cela manicomial.
Para compensar tamanhas frustrações, no entremeio de tudo, a
insistência em sonhar com o amor impossível pela filha de seu chefe, figurada no substitutivo
de um cão de estimação ou achando-se ungido como o Rei da Espanha.
Prevalentemente sitiado na surreal ambiência cênica (Nello
Marrese) de um quarto/hospício preenchido em sua frontalidade por arruinadas armações metálicas de
guarda chuvas, onde uma mesa/cama sugestiona
uma plataforma de tortura.
Transmutando-se na tragicomicidade do instigante complemento
pictórico, camisa de força ou manto real, da insana mendicância indumentária (Carol Lobato), sob sombras e luzes discricionárias no conciso ideário luminar de
Elisa Tandeta e nas subliminares provocações
sonoras da envolvente trilha autoral de Marcelo Alonso Neves.
Milhem Cortaz dando uma exemplar lição atoral na sua completude
de incorporação psicofísica, com sangue e alma, de um estado mental de alienação conectando riso
e lágrimas, por intermédio de tocante
alcance nas modulações vocais, no gestualismo nervoso e na expressão facial de
espanto, dor e desalento.
Em espetáculo que estabelece uma empatia palco/plateia através
de refinado apuro estético do comando concepcional de Bruce Gomlevsky, imprimido com um sotaque artaudiano de
crueldade e sinalizado por sutis traços
do absurdo beckettiano.
Sendo ainda capaz de evocar o necessário pensar psicanalítico da Dra. Nise da Silveira :
“Quem sabe o que
acontece no imenso mar do inconsciente? Quem dizer que sabe, este sim é louco”...
Wagner Corrêa de Araújo
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