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“Alabama me perturbou tanto / Tennessee me fez perder o sossego / Todos
sabem do Mississipi maldito“... (Nina Simone / Mississippi Goddam).
Foi através destes versos de protesto que a cantora Nina Simone se tornou uma das mais
engajadas ativistas pelos direitos civis a favor da causa negra nos Estados
Unidos, num eco libertário que chega ao Brasil de hoje com suas demandas contra
o racismo orgânico que, como lá, ainda teima em resistir.
Sendo mais que oportuna e necessária esta incursão dramatúrgica
feminista titulada como Ninas, em
precisa textualidade de Joaquim Vicente, sob a acurada direção concepcional de
Édio Nunes, apresentando um bravo quarteto de atrizes/cantoras dividindo-se no papel protagonista.
Inspirada na trajetória artístico / biográfica de Eunice Waymon, conhecida mundialmente como
Nina Simone, que desde a infância dedicou-se
à música. Indo de suas experiências como pianista clássica (ela inclusive foi a
primeira negra a cursar a Julliard School
of Music) à sua particularizada integração como vocalista do jazz, blues, gospel,
folk e pop.
Tornando-se continuadora do legado artístico/político negro em suas lutas de poder contra o domínio do acirrado preconceito branco norte-americano. Que ela expressou em canções de rebeldia num repertório que incluía hits pela negritude, como sua regravação de Strange Fruit (um signo musical de Billy Holiday) ou sua resposta a um atentado brutal num culto religioso, em 1963, através de Mississippi Goddam. Além de seu lendário sucesso popular com Love You Porgy (ária da ópera Porgy and Bess, de G. Gershwin).
Ninas. Joaquim Vicente/Dramaturgia. Édio Nunes/Direção concepcional. Setembro/2023. Fotos/Claudia Ribeiro |
O espetáculo em seu prólogo trazendo os acordes impressionistas
do Claude Debussy de Clair de Lune, em expressiva
interpretação ao vivo pela pianista Kathlen Lima, como um alter ego de Nina Simone, no seu referencial de
acordes clássicos que tanto fascinaram a também exímia pianista/cantora, levando-a à definitiva opção pelo jazz e suas decorrências estéticas cantantes e instrumentais.
A entrada inicial das quatro cantoras, fazendo soar suas vozes
sob dimensionamento coral, tem um emotivo impacto pela força vocalista e pelo
envolvente apelo gestual / facial da black
fisicalidade de cada uma delas (Cyda Moreno, Anna Paula Black, Roberta Ribeiro,
Tati Christine). Ficando dificil destacar a atuação individualizada de qualquer
uma delas diante da surprendente unicidade performática com que se
apresentam.
Sempre acompanhadas por um brilhante duo instrumental – Kathlen Lima
(piano) e Regina Café (percussão) desfilando uma antológica seleção de alguns
dos maiores hits de Nina Simone. Sempre sob o artesanal comando
musical de Wladimir Pinheiro e o apoio certeiro da preparação vocal por Jorge
Maya para graves vozes femininas, identificando-as com as tessituras de contralto
das grandes jazz singers.
Havendo ainda as intervenções básicas e quase incidentais de
um ator (Fábio D’Lélis) caracterizando funcionalmente
papéis masculinos (empresários, líderes negros, partners amorosos) na arte e na
vida da personagem titular.
Onde a provocação de um qualitativo resultado artístico é alcançada, sob
as tonalidades luminares (Fernanda Mantovani) e o requinte habitual da indumentária
de Wanderley Gomes, no preenchimento minimalista de um espaço cenográfico (Doris Rollemberg) que
remete à ambientação intimista de um traditional
jazz club.
Cabendo à afinada e convicta direção de Édio Nunes imprimir um perceptível e elogiável desempenho do elenco e músicos, com um belo retorno reflexivo no recado de sua incisiva dramaturgia.
Via singular e despretensiosa montagem de teatro musical, com
assumida proximidade da realidade brasileira,
na sua abordagem temática dos embates de afirmação da cultura negra norte
americana, em processo conceitual, estendendo - se ao hemisfério sul.
Não deixando também de fazer um justo tributo no epílogo, por intermédio
do desafio de estampar faces negras nos figurinos, numa alusão a algumas das mais aguerridas
e exponenciais personalidades brasileiras desta luta ancestral que, aqui e lá,
parece nunca ter fim...
Wagner Corrêa de Araújo
Ninas está em cartaz na Sala Multiuso do Sesc/Copacabana, de
quinta a domingo, às 19h. Até 08 de outubro.
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