Peter Brook no filme-documentário The Tightrope, de 2012, com direção de Simon Brook, artista e continuador do legado de seu pai. |
"Não propomos ideias fixas nem mensagens fechadas. Somente procuramos que o espectador sinta. E quando alguém sente, compreende". (Peter Brook)
A propósito da morte, nesta data, de um mestre absoluto da dramaturgia
contemporânea, o inglês Peter Brook, de reconhecida inventividade em suas
concepções/direcionais desde o teatro à ópera. Isto sem deixar de mencionar
suas incríveis incursões pelo cinema, ora como ator, ora como roteirista e
diretor.
Relembrando aqui um de seus últimos espetáculos, sob uma montagem
original do encenador, titulada The Suit.
Apresentada esta peça em junho/2015, no palco da Cidade das Artes, e através desta crítica postada então no blog autoral Escrituras Cênicas.
"Quando num palco quase nu, vemos cadeiras de cores
diferentes (talvez para acentuar seu caráter lúdico), um tapete, algumas
armações com cabides e cortinas, servindo de portas, paredes imaginárias e
passagens, tendo ao lado três músicos que dividem a performance com os três
atores, armamos nossos olhares na exclusiva duplicidade do ver e ouvir atores.
Inspirada num conto de Can Themba, um escritor sul africano
cruelmente afetado pelo ódio e rejeição do apartheid, The Suit mereceu de Peter
Brook (na companhia criativa de Marie-Hélène Estienne e Franck Krawzyck) uma
das mais sensíveis adaptações de sua trajetória de encenador mor.
Aqui, um advogado Philomen (Jared McNeil), a partir de um
flagrante adultério de sua mulher Matilda (Cherise Adams-Burnnet), obriga-a
a conviver cotidianamente com o terno deixado para atrás pelo amante em fuga.
Como se este objeto mimeticamente fora um honrado hóspede
vivo, indo na contramão conceptiva de que o hábito não faz o monge, ela cumpre,
por ingerência do marido enganado, os afazeres cotidianos com a cumplicidade do
terno propositalmente esquecido.
Esta alegoria da repressão machista atinge seu ápice quando, numa festa com os vizinhos, ele o traído lembra em sarcástica ironia
que, afinal, temos mais um visitante, o terno. Humilhada e subjugada, ela
assumindo a culpa resolve optar por uma solução fatalista.
Em tom fabular, com um sotaque brechtiano, o texto tem uma narrativa de sequencial
linearidade a partir do original
literário, entremeada pelas canções e temas musicais executados ao vivo por um
trio integrado por violão (Harry Sankey), trompete (Jay Phelps) e teclado
(Danny Wallington), recortando um repertório que vai da Serenata de Schubert à
Paixão Segundo São Matheus, de Bach.
Completada, ainda, pelo oportuno referencial da sonoridade
jazzística de regozijo do “Feeling Good” ou da opressividade de “Strange
Fruit”. E no simbológico canto tradicional da Tanzânia – “Malaika, Nakupenda
Malaika” (Anjo, eu te amo, anjo), acentuando um sublime acento vocal da
atriz/cantora.
A iluminação (Philippe Vialatte), ora carregada de tons
crepusculares ora vazada na claridade, ressalta a adequada singeleza dos
figurinos (Oria Puppo).
E na sua culminância, o público sendo convocado a subir ao palco na
cena festiva que antecede a tragicidade final, numa celebração que une atores e
músicos em performance/ritual.
Enquanto, em compasso de despedida, anestesiado pelo
compartilhamento palco/plateia da simples/sensível proposta cênica em torno da
vingança e do perdão, sente, enfim, o sabor da verdade estética enunciada pelo
próprio Brook:
“Meu único objetivo no teatro é que as pessoas, depois de uma
hora ou duas juntas, de alguma forma saiam com mais confiança na vida do que
tinham ao chegar”...
(Como se tornam necessárias estas palavras alentadoras sobre a salvação pelo teatro, além do referencial machista ironizado na peça e muito a propósito à causa de um episódio recente em nossa já tão habitual (des)governança, diante de uma assumida postura oficial de descaso e ignomínia com a criação cultural.
Vejam a
que ponto chegamos, ao se transformar
uma tradicional comenda literária em deboche na escolha insensata de parte de
seus destinatários, numa flagrante
demonstração de que se tornaram mais urgentes os clubes de tiro que o
incentivo à palavra literária, ao gosto pela leitura e à expansão das bibliotecas)...
Wagner Corrêa de Araújo
The Suit, criação de Peter Brook. Junho de 2015. Foto/Tristram Kenton.. |
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