CARMEN, de Antonio Gades. Em processo de ensaio no palco. Foto/Fundación Antonio Gades. |
Considerada tecnicamente uma das mais difíceis danças
populares do mundo, o flamenco é a
manifestação mais autóctone da alma espanhola. Exigindo dedicação absoluta e
muito folego para dar vazão a toda sua força energética.
Som e suor, cor e ritmo vibrante são as marcas registradas e os prevalentes caracteres deste tradicional
gênero coreográfico que, nos últimos anos, surpreende inclusive por suas
releituras à luz da contemporaneidade. Cultivada em compasso ancestral sob
bases folclóricas teve nomes exponenciais como Paco de Ronda, Elvira Real, Carmen Amayo, Jose Greco,
La Argentinita e sua irmã Pilar Lopez.
E foi como discípulo de Pilar Lopez, integrando sua Cia, que surgiu Antonio Gades, o seu maior fenômeno de critica e de público de todos os tempos, estendendo este prestigio ao cinema. Reconhecendo-a sempre como “a minha mestra”, inclusive dando-lhe esta alcunha nas tomadas iniciais (maquiando-se no camarim) do filme de Carlos Saura – Bodas de Sangue, de 1981.
Ainda no caminho aberto por ela, entre os anos 50/60, Gades encontrou seu original estilo,
tornado universalmente célebre, através de trilogia clássica complementada por Carmen, 1983, e El Amor Brujo, 1986. Sabendo com maestria técnica e inventiva unir a dança flamenca
à representação dramática e, assim, nesta conexão dança-teatro, alcançar
expressão ímpar, como coreógrafo, bailarino e ator, muito além de uma mera
transposição estilística das raízes populares do flamenco.
Em Bodas de Sangue,
ele mostra, dançando e atuando como personagem, a alma dilacerada de uma Espanha
de contrastes e conflitos, a partir de peculiar ressignificado imprimido a um dos mais conhecidos textos teatrais de Federico Garcia Lorca.
Em El Amor Brujo, penetra dramaticamente na ambiência pitoresca dos ciganos da Andaluzia, num clima naturalista de superstição e magia. E em Carmen, livre versão cinematográfica mais próxima da novela de Prosper Merimée que da ópera de Bizet, provoca uma espécie de possessão de seus intérpretes pelos personagens.
EL AMOR BRUJO. Antonio Gades e Cristina Hoyos. Cena do filme de Carlos Saura,1986. |
Em todas estas incursões coreodramáticas
no cinema, Gades teve a privilegiada
câmera inventiva do diretor Carlos Saura, não só valorizando estilisticamente o
seu trabalho com as possibilidades expressivas que o cinema oferece nos
detalhamentos de primeiro plano, como também por seu incrível resultado
estético potencializado na conquista global de público.
Mas o Gades do
palco, pelo exemplo de sua Carmen, é bem
diferente daquele que aparece na tela. Mas, antes, é preciso conhecê-lo melhor como o
esteta apaixonado pelo colecionismo de inúmeros Picassos e Mirós, todos
com efusivas dedicatórias pessoais. Sendo também um fiel praticante de esportes como
o iatismo e um expert nas conquistas amorosas.
Mas, por outro lado, rigoroso em suas posturas políticas,
recusando-se sempre a exibir sua arte na Espanha franquista como um convicto
membro do Partido Comunista Espanhol. Alimentado pela revolta contra o sangue
da ditadura franquista que, entre suas inúmeras vitimas, levou seu poeta favorito - Federico Garcia Lorca.
Em 1988, tive o privilégio de acompanhar, a convite de sua
Cia, um de seus agitados e exigentes ensaios, desta vez na plateia do Municipal
carioca, sujeito a acessos imprevistos de cólera, numa experiência tão ou até mais
fascinante do que o próprio espetáculo final, no caso Carmen, pela completude integrativa de
uma aula viva de dança e de teatro.
Na época, comentei em análise crítica da performance:
Na plateia, Gades grita, gesticula, ameaça, comanda com disciplina militar o seu grupo de bailarinos. O espetáculo parecia ter que estrear naquela noite como uma peça inédita no repertório de seu grupo. Tantos os mínimos detalhes discutidos e inúmeras as repetições das passagens do balé, como se para todos eles (dos bailarinos e músicos aos técnicos de sonoplastia e iluminação) fosse a primeira e não a centésima representação de“Carmen”.
Depois de cerca de duas
horas, em que eram passadas e repetidas, à exaustão, danças com acompanhamentos
de guitarras ao vivo, de seguidilhas a bulerias, alternadas sempre pelas explosões
nervosas de Gades, começava outro desafio, com os efeitos luminares.
O que sempre levava a resultados brilhantes em seus
espetáculos, onde recortes cênicos de grupos e solistas, transmutados em
verdadeiros estudos de claro/escuro, sob esboços de sombra e luz, lembravam, em
processo quase especular, telas de Velásquez,
El Greco e Goya.
Ao final, uma constatação curiosa. No caso específico do
ensaio geral de Carmen, segundo o
olhar de Gades para o palco,
criava-se uma maior proximidade com a versão cinematográfica, talvez pela presença,
ali, do coreógrafo, bailarino e diretor do espetáculo atuando, simultaneamente,
como o personagem do filme. Enquanto, em paralelo, pouca afinidade seria
encontrada no espetáculo definitivo, relativamente comparado ao que se viu na tela.
Questionei o próprio Gades
sobre isto, que por sua vez explicou :“O filme trata de uma assimilação ou quase
possessão dos intérpretes de Carmen pelos personagens. Mas, para o teatro, eu
quis uma coisa totalmente distinta: projetar a essência desta Carmen no que há de
mais fundo e autêntico na cultura espanhola”.
Mesmo com esta justificativa, pelo menos para um ensaio, não
foi possível escapar da sensação mágica de ver, de repente, em processo
metafórico, as câmeras de Carlos Saura rodando, em meio à escuridão da plateia vazia...
Wagner Corrêa de Araújo
BODAS DE SANGUE. Antonio Gades e Cristina Hoyos. Cena do filme de Carlos Saura, 1981. |
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