QUANDO INGMAR BERGMAN E MILOS FORMAN VÃO PARAR NOS PALCOS

ATRAVÉS DE UM ESPELHO. Abril de 2015. Foto / João Caldas Filho. 


Integrando a sua Trilogia do Silêncio (Luz de Inverno e O Silêncio), o filme de Ingmar Bergman – Através de um Espelho, de 1961, deu-lhe o Oscar e foi um dos maiores primeiros êxitos do cineasta.

Numa viagem ao conhecimento interior, entre os conflitos da incomunicabilidade, com corte de lâmina, atingiu a fundo o vazio, a crise de identidade, a ausência de respostas e o silêncio de Deus.

A versão teatral de Jenny Worton chega, agora, aos palcos brasileiros no seguro comando cênico de Ulysses Cruz. À base de refinada dimensão estética, mantendo as linhas mestras, entre a aspereza e a sensibilização, da trama cinematográfica original.

Retornando de uma internação psiquiátrica Karin (Gabriela Duarte) vai com o marido atento Martin (Marcos Suchara) para a casa de praia do pai indiferente David (Joca Andreazza) e do jovem irmão sonhador Max  (Lucas Sentini).

Onde o clima inicial de festa e de reconciliação vai, aos poucos, revelando a desconstrução familiar, numa ambientação fragmentária entre o real e o alucinatório, num jogo cruel face a face, de culpa, estranhamento e alienação.

Na proporção em que retornam as fantasias, produto da insanidade mental de Karin, é deflagrado um duelo de árida incomunicabilidade entre os personagens, com o simbológico referencial do espelho.

Que remete a Freud e Lacan na teorização do “eu que é um outro”, a partir do mito Narciso com o espelhar da própria imagem na superfície das águas.

Ou à epígrafe do próprio Bergman, com as Epístolas de Paulo aos Coríntios; “No presente, vemos por um espelho de obscuridade; então veremos face a face (...), então conhecerei como sou conhecido”.

A sensorial performance intimista de Gabriela Duarte atinge culminância nas miméticas cenas de visões histéricas e místicas, entre uma aranha e Deus.

Seu maior contraponto está na emotiva ansiedade assumida por Lucas Lentini, destacando-se ainda a sutileza interpretativa de Marcos Suchara e o esforço de Joca Andreazza para o alcance da exigente frieza de seu personagem.

Tem um belo impacto visual a construção do imaginário na cenografia (Lu Bueno), completada pela adequação dos figurinos (Cássio Brasil) e a precisão das luzes (Domingos Quintiliano), onde apenas a trilha sonora (Daniel Maia), com sotaque eletrônico, deixa no ar o desejo de estar ouvindo o Bach hipnótico da trilha original.

Tudo, enfim , levando a um mergulho silencioso no exílio solitário da condição humana, em que só existimos através dos espelhos, pois na lição filosófica de Berkeley, “Ser é ser percebido".

Perde-se em tempos imemoriais o procedimento humano de solução da insanidade mental com as casas de loucos e que sempre logrou impor o entendimento social de que - normais são apenas os que ficam do lado de fora.

Conceito que foi sendo dessacralizado com os defensores da antipsiquiatria onde a possível doença tem sua melhor “cura” no convívio social.

Ou nas teses de um pensamento ideológico mais libertário que enaltece a loucura por sua proximidade com a criatividade, pois enquanto estes insanos agem como pensam, a genialidade está em transmutar este impulso em obras e palavras.

Inicialmente um romance de Ken Kesey (1962), seguida de uma versão teatral (Dale Wasserman), foi através do filme de Milos Forman (1975) que Um Estranho no Ninho se tornou um fenômeno de público e de crítica.

E é a peça que, finalmente, chega ao Brasil na sua integralidade de quase três horas, com o comando de Bruce Gomlevsky, um experiente e meritório encenador de grandes e polêmicos textos universais do teatro contemporâneo.

Para escapar à condenação de trabalhos forçados, Randle McMurphy (Tatsu Carvalho) fingindo-se de alienado, espera encontrar num hospício a libertação através da liderança, como um anti-herói dos combalidos e inferiorizados pacientes.

Contrapondo-se à inflexibilidade e amabilidade calculada da enfermeira-chefe Ratched (Helena Varvaki), Randle através de jogos de cartas e de basquete, estimula a implosão de regras para quebrar o silêncio dos sufocados gritos interiores dos reclusos.

No contrassenso de pagar um preço alto por isto, consegue ser livre ao impor a verdade de um estranho, capaz de ir contra a razão dos que acham que a única razão é a deles.

A montagem enfrenta os percalços (como consequência de uma produção sem qualquer aporte financeiro) da não adequação de um palco, limitado para uma proposta cenográfica de concepção realista.

Fator que, por um lado, às vezes, interfere na expansão gestual das performances, na estreiteza de uma asfixiada ambientação única para climas emocionais diversos.

Mas que encontra sua compensação na carismática entrega de toda equipe de criação. Desde uma direção que procura superar com firmeza estes obstáculos (Bruce Gomlevsky) à esforçada coesão de um elenco qualitativo na definição de personagens, às vezes, de caracteres extremados.

Assim, este texto de incrível dimensão reflexiva no rompimento de quaisquer grades, portas, trancas ou paredes no comportamento humano, detona, sobremaneira, um questionamento filosófico/político dos controles sociais, fazendo valer mais a morte, quando a vida é nada e a liberdade é tudo.

                                             Wagner Corrêa de Araújo

UM ESTRANHO NO NINHO. Abril de 2015. Foto / Felipe Diniz.

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