EUGÊNIA. Abril de 2015. Foto / Thiago Sacramento
Na breve passagem que antecedeu a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil começou a aventurosa trajetória amorosa, sujeita a muitos percalços, de “Eugênia”, com sobrenome José de Menezes e filha de um governador mineiro da colônia.
Em tempos de árida situação imposta à condição feminina, com
a exclusão social e o preconceito contra as índias e as escravas sob as duras
regras domésticas dos valores patriarcais para as mulheres brancas, Eugênia, por trás dos panos, armou, em
Lisboa, um perigoso jogo de amor e poder.
Grávida do Príncipe Regente D. João VI, ela transgrediu a
ordem masculina da sucessão, enfureceu sua mulher Carlota Joaquina e trepidou
as aparências morais e religiosas do palácio real. Atribuindo-se a outrem a
paternidade do nascituro (uma menina), armou-se, então, o seu exílio para
terras distantes.
Entre as suposições e a verdade histórica a dramaturga Miriam Halfim, numa sucessão de cenas, parte sempre do referencial do não esquecimento do primeiro homem que desvendou para Eugênia os segredos da alcova amorosa.
Num texto ágil e anticonvencional onde as liberdades
cronológicas, ora comportamentais, ora gestuais, ora musicais induzem, isto
sim, a uma envolvente atemporalidade de sua encenação.
Que, pelo dinâmico comando de Sidnei Cruz, é enriquecida
sobremaneira, na mobilidade dos elementos cenográficos (José Dias), com a sutil
arquitetura plástica de suas instigantes caixas "de Pandora", plenas de surpresas e de males secretos.
Completada na nuance aquarelista dos figurinos (Samuel
Abrantes), na condução climática das luzes (Aurélio de Simoni) e no sotaque
galhofeiro do score sonoro (Beto Lemos).
Além, é claro, da sedutora expressividade corporal da atriz
Gisela de Castro, aliada às suas instintivas modulações vocais, convergindo
elementos da comédia, do teatro de revista, da chanchada, da bufonaria, sem
cair nunca na tentação do riso fácil e dos clichês.
Pelo contrário, mesmo com sua estilização histórica, entre o
circense e o fantasioso, conseguindo manter o refinamento reflexivo sobre a
eterna condição da mulher.
Onde, evocando Balzac :
“O texto da vida feminina será sempre igual! Sentir, amar, sofrer e sacrificar-se!”.
Uma bela confluência de formas estéticas, numa múltipla fusão
de linguagens criativas, faz de A Rainha
e o Lugar um dos mais originais espetáculos-performance da temporada.
O solo coreográfico de Andrea Jabor, dando continuidade às
suas inventivas pesquisas na Cia
Arquitetura do Movimento, impressiona
especialmente pelo componente plástico/dramatúrgico no envolvente mix de
projeções cinéticas, movimento gestual e score sonoro/musical, sob o artesanal comando mor de Ana Achcar.
O carismático despontar de luzes (Renato Machado) e cores
fílmicas interferindo sob o espaço cênico, numa superlativa concepção de
Gustavo Gelmini, tem seu ponto alto na interativa simbiose entre as imagens
projetadas e o corpo da bailarina/coreógrafa.
Num espaço vazado, com uma minimalista interferência de
objetos cênicos, o jogo lúdico se estabelece através da simbologia dos
nobiliárquicos figurinos (Flávio Souza) que remetem, com categoria ímpar, à
titulação da proposta em seu tributo ao poder matriarcal.
Esta inserção do sedutor corpo feminino no espaço social cotidiano traz desde uma grande dama, de trajes solenes, integrada à natureza sob tons impressionistas, ao despojamento vestal sob efeitos líquidos de águas reais ou imagéticas.
A sequência que passa, ainda, pelo referencial de rainhas de
passarelas do samba e dos terreiros de candomblé às soberanas malvadas do
universo da fantasia, incursiona, singularmente, pelo pictórico retrato
ancestral de castas mulheres à beira de fontes portando bules /cântaros à
cabeça, quais velhas iconografias de tempos idos.
Ou avançando nos territórios das colmeias no questionar da perda da polinização dos
girassóis, sugestionando as abelhas em nervosa dança circular, mas permitindo
ao público, simultaneamente, uma mágica sensação olfática de perfumes dos favos
de mel.
Completando esta “arquitetura do movimento”, a construção
sonora (Rodrigo Marçal) reúne acertadas inserções musicais, de sons ambientais
e ecos percussivos a pontuações da Sonata Patética (Beethoven).
Intermediados por preciosas pausas de silêncio que
impulsionam os olhares da plateia a uma maior percepção do expansivo tônus
respiratório, entre o gesticular ora intimista ora expansivo da protagonista.
Diante de um espetáculo que não se circunscreve à rigidez
literal do traço coreográfico e promove certamente, mesmo no repetir diário da
performance, um diferente fraseado afetivo - palco/plateia, com sua múltipla
convergência de composições artísticas, são mais que referenciais as palavras de
Kandinsky:
“A repetição é um modo
poderoso de intensificar a emoção interna e, ao mesmo tempo, criar um ritmo
primitivo que é, por sua vez, um modo de chegar a uma harmonia primitiva em
toda forma de arte”.
Wagner Corrêa de Araújo
A RAINHA E O LUGAR. Março de 2015. Foto / Rodrigo Castro.
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