TEATRO BOLSHOI E TEATRO MARYIINSKY : DA TRADIÇÃO IMPERIAL RUSSA AO BALÉ SOVIÉTICO

SPARTACUS. BALÉ DO TEATRO BOLSHOI. Junho 2015. Theatro Municipal/RJ.


Quando o armênio Aram Khachaturian compôs, em 1954, a partitura do balé Spartacus, a era do terrorismo stalinista começava o seu epígono. Precedido por tentativas fracassadas de sua transposição para os palcos, pelas cias do Kirov e do Mosseyev, só em 1968, com o Bolshoi, tornou-se um ícone e um perfeito exemplar do novo balé soviético sob mensagem ideológica.

Através de uma estética que unia o sinfonismo musical da obra a nuances operísticas e cinematográficas, num enredo com arroubos épicos e predominância do virtuosismo masculino, Spartacus, a partir da sua première no mundo ocidental, se transformou na mais expressiva e exitosa produção contemporânea do Bolshoi.

Apostando num tema de abrangência universal, o conflito de classes sociais, através de um enredo inspirado num episódio do início da era romana, o balé conseguiu abalar a já então desgastada teorização artística do realismo socialista. Procurando fugir do engessado referencial formalista, avançou na busca de um outro realismo, mais próximo do psicológico e do abstrato na sua expressão narrativa.

Na temporada brasileira de 2015 com o Balé do Teatro BolshoiSpartacus  continuou a demonstrar sua força ainda imanente de quase meio século. Numa performance que se desenvolve num crescendo de estimulante envolvência onde todos os elementos técnicos e artísticos concorrem para uma experiência de substantivo teor estético.

A representação de seu score musical, demonstrando um nítido avanço qualitativo na execução da OSBM, (Orquestra Sinfônica de Barra Mansa) conduzida por Pavel Sorokin, mostrou-se coesa e harmônica tanto nas passagens mais rítmicas quanto nos romantizados “leitmotivs” próximos às clássicas trilhas hollywoodianas.

Na precisa caracterização dos figurinos, contrastando luxo e simplicidade ao retratar duas classes - romanos e escravos, como na tonalidade quase abstrata dos telões cenográficos, entre luz e sombras. E, especialmente, no esplêndido dinamismo do elenco, entre solos e conjuntos, com seu superlativo virtuosismo masculino nas cenas dos legionários e gladiadores.

Destacando a força dramática dos solistas, paixão e técnica precisas da frieza narcisística do general romano Crassus (Vladislav Lantratov) ao sensualismo luxurioso da cortesã Aegina (Maria Alexandrova).

E, ainda, a virtuosa pureza da escrava Prhygia  (Maria Vinogradova) com o brilho dos seus arabesques no passional pas-de-deux do 3º Ato e os recortados grand jetés do exponencial Denis Rodkin, um digno jovem sucessor dos clássicos Spartacus, de Vladimir Vasiliev a Irek Mukhamedov.

Enfim, um privilegiado e raro espetáculo, de excitação técnica e estímulo intelectual capaz, até mesmo, de conduzir a um reflexivo e simbológico conceitual político/histórico de Karl Marx :

Spartacus foi o mais distinto e mais esplendido cidadão que a Antiguidade ofereceu”.


GISELLE. BALÉ DO TEATRO BOLSHOI. Junho 2015 .Theatro Municipal/RJ. 

Enquanto Spartacus, o primeiro programa do Balé do Teatro Bolshoi, provocou um envolvimento mágico na sua convergência de técnica e emoção, Giselle ficou marcada pelo distanciamento, na concepção e releitura do original via Vladimir Vassiliev.

Na sua tentativa de dar-lhe novos retoques, ainda que sutis e perceptíveis quase que apenas para os experts na sua composição musical e proposta coreográfica, depois da energia pulsante de Spartacus, o clássico dos clássicos do balé romântico – Giselle – acabou deixando um gosto por algo a mais.

Alterações cenográficas, com telões em tons pastéis quase impressionistas, tentaram fugir da tradição realista, além de figurinos (Hubert de Givenchy) com referencial do estilismo contemporâneo, quebrando a caracterização tradicionalista de personagens, nas suas cores menos sóbrias, carregadas de exagerado  cromatismo.

Fatores que, mal ou bem, chegaram a afetar o confronto da nuance realista do 1º Ato e a essência romantizada do Segundo, mais do que algumas ligeiras interferências no desenvolvimento narrativo da trama coreográfica, não tão rigorosamente fiel às versões originais de Coralli/Perrot,1841, e Petipa, 1887.

Quanto ao desempenho técnico foi coeso e dinâmico no ato da aldeia, tanto com as cenas de conjunto, solos e duos, quanto nas danças características, apesar da prejudicial e incomoda tonalidade aquarelada dos décors.

Com um preciso diferencial na interpretação de Ivan Vasiliev  (Conde Albrecht), ainda que este não tenha um tão destacado porte físico no confronto com a esguia figura de Maria Vinogradova no papel titular, esta responsável pela primeira explosão entusiasta da plateia, na sua dança - pantomima da alienação direcionada à morte.

No Ato II, o chamado balé branco perdeu, em parte, a atmosfera do efeito sedutor soturno, entre névoas e túmulos sob o luar, com uma iluminação menos precisa na sua climatização, enfatizando uma não consonância temática com a cenografia.

Foi digna, em sua discrição, a performance juvenil de Yuri Baranov (Hilário,o camponês), até a sua saída de cena. E a entrada de Maria Allash (Myrtha), circundada pela expressividade plástica do séquito das Willis, alcançou as exigências de frieza e altivez do personagem .

Na convicta entrega de Vinogradova ao sotaque etéreo exigido e o superlativo vigor e timing de Ivan Vasiliev, no contraste orgulho e fragilidade e na dualidade corpo e espírito, estabeleceu-se, enfim, a densidade necessária e o permanente encantamento deste exemplar drama - balé.

O Corsário é uma das obras básicas do repertório dos balés russos, de 1868 aos nossos dias, tendo chegado a montagens integrais fora dali, apenas em 1992, com a versão do American Ballet Theatre, sempre precedido pela popularidade do célebre pas de deux, habitual em espetáculos clássicos de divertissements.

Ao contrário de outras criações do balé imperial russo que se celebrizaram pela sua unidade estética como o Lago dos Cisnes e A Bela Adormecida, O Corsário não é uma partitura especialmente brilhante.

E atravessou os anos como um mix musical de trechos de AdamPugni, DelibesDrigo e Oldenburg, mantendo uma maior fidelidade à linha condutora da coreografia original de Petipa, no caso das versões russas, desde a era soviética até o terceiro milênio.

Inspirado num poema de Lord Byron, com um enredo de amor, intrigas, raptos, fugas, em tramas paralelas ambientadas nos embates entre gregos e otomanos, escravos e piratas, usa seus extensos três atos para a exibicionismo da técnica clássica, ao lado de danças a caráter e muita pantomima.

Na turnê 2014 do Balé do Teatro Mariinsky, há que se notar a fidelidade absoluta ao acadêmico tradicionalismo do período soviético, com seus cenários e figurinos com um sotaque de cinema technicolor e uma companhia que ainda traz a nostálgica lembrança de anos em que o governo soviético investia pesado no balé como sua arte maior.

Se houve um deslize nas apresentações cariocas, foi a presença de uma orquestra sinfônica provinciana e sem a maturidade suficiente para dar peso a uma partitura de vários compositores com acordes específicos, embora próximos pela identificação com a  linguagem clássico/romântica.

Um desequilíbrio que prejudicou nos andamentos técnicos dos bailarinos, tanto nas variações como também nas cenas de conjuntos, roubando boa parte do brilho necessário à performance.

Por outro lado, uma certa frieza da plateia só foi resgatada com o Grand Pas de Deux a Trois (particularidade da tradição russa), onde houve linearidade perfeita e elegância dos movimentos dos bailarinos Konstantin Zverev e Oxana Skorik .

E em maior nível, com a notável plástica das mãos sobre os ombros e a altivez escultórica na tessitura estética do bailarino Vladimir Shklyarov, sem dúvida a grande surpresa do espetáculo.

                                            Wagner Corrêa de Araújo


O CORSÁRIO. BALÉ DO TEATRO MARIINSKY. Novembro 2014. Theatro Municipal/RJ.



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