TEATRO DE TESE : DO ATO PSICANALÍTICO SOB O DESCOMPASSO DAS IDENTIFICAÇÕES INCONSCIENTES E DO ESCAPE DIGITAL

O ATO - VARIAÇÕES FREUDIANAS 2, de Antonio Quinet/Regina Miranda.

Espetáculos em cartaz no Rio refletem, dentro da proposta de um teatro didático, a relação entre as teorias psicanalíticas de Freud e Lacan com o individualismo autista das redes sociais.

Das teorias do inconsciente e dos sonhos como reflexos do desejo sexual reprimido, disseminadas por Freud entre os anos vinte e trinta, aos consultórios psicanalíticos como refúgios e almejada saída para as insatisfações existenciais, a distância de um século conduziu aos desmandos da cultura tecnológico / digital.

Como se esta tornasse mais visível e próxima do homem contemporâneo, a tese freudiana do mal estar da civilização. Estes temas atravessam, de maneira envolvente, as peças O Ato - Variações Freudianas 2, de Antônio Quinet, e Vertigem Digital, de Alexandre Elias.

Em forma de docudrama o psicanalista Quinet, dublê de autor e ator, vem fazendo uma rica e original proposta dramatúrgica com a Cia Inconsciente em Cena, inclusive com o teatro/dança, em parceria criativa junto à coreógrafa Regina Miranda. Nesta sua última realização - O Ato - Variações Freudianas 2, eles trazem o sofá da análise para um programa de auditório na televisão, utilizando-se dos inúmeros recursos tecnológicos do veículo.

Através de um talk show conduzido, com bom ritmo, pela atriz Aline Deluna, tendo seu ponto alto na forte presença cênica do ator Samir Murad (como Freud) incluindo, ainda, com teatro dentro do teatro, a dramatização fílmica de casos clínicos clássicos.

Sob o comando seguro de Walter Daguerre, onde o único senão é quando o psicanalista entrevistado (Antônio Quinet) não consegue assumir uma fala mais teatral, revelando uma fluência vocal muito próxima do tom clínico / professoral.

Não estaria estabelecido, hoje, um jogo psicanalítico na interação solitária do homem do terceiro milênio, tentando uma cura, ao projetar o seu personalismo, através da parafernália tecnológica, nas chamadas redes sociais? Este é o ponto que aproxima o texto de Antônio Quinet na versão teatral dirigida, com indiscutível empenho, por Alexandre Elias.

Inspirada no livro homônimo de Andrew Keen, a peça Vertigem Digital não deixa de lado seu propósito como referência do pensador Michel Foucault sobre os perigos da afirmação do individualismo através das redes sociais:

"A visibilidade é uma armadilha e, em nossa era de hiper-visibilidade, ela é uma hiper-armadilha".

Esta incursão psico-dramática revela fluente performance cênica, sob irônico e subliminar humor, acentuada pelo substrato estético das projeções dos meios digitais, quando seus cinco personagens/atores imprimem postura provocadora na reflexão sobre estes novos consultórios psicanalíticos de nosso tempo.

Onde, mesmo com o seu enfoque lúdico/critico, não deixa escapar um flagrante retrato sem retoques desta geração internauta. Que, viciada em recursos digitais, não passa de tripulação prisioneira numa solitária nau virtual tendo o culto do auto exibicionismo como seu único valor existencial.


VERTIGEM DIGITAL, de Alexandre Elias. Foto/Janderson Pires.

IDENTIDADES INCONSCIENTES NA CENA TEATRAL

Dois outros textos teatrais, um drama inglês e um monólogo brasileiro discutem, com raro brilho emocional, o conturbado universo de pais obrigados ao convívio de filhos com disfuncionalidades e transtornos de personalidade.

Inicialmente, o caso específico da expectativa feliz de uma gravidez transformada em dor e decepção, com o nascimento de um bebê com Síndrome de Down, exposta com maestria no monólogo O Filho Eterno, sucesso permanente, há mais de dois anos, pelos mais diversos palcos brasileiros, em suas idas e voltas ao cartaz.

Adaptada do romance de Cristóvão Tezza, com direção de Daniel Herz, a peça surpreende pela vigorosa interpretação solo, aliás a primeira da Cia Atores de Laura via um de seus atores mais expressivos - Charles Fricks.

Através de apenas uma cadeira no palco, o intérprete faz um energizado tour de force, na nervosa movimentação cênica que torna visual esta aflição de um pai perturbado com as limitações mentais e físicas de um filho único, no qual depositara toda a esperança e expectativa dos seus sonhos.

De outro lado, O Estranho Caso do Cachorro Morto, do inglês Mark Haddon, com adaptação de Simon Stephens e que chega ao Brasil depois de vitoriosa trajetória pelas melhores premiações do teatro londrino.

Tendo como tema uma das manifestações da psicopatia autista - a Síndrome de Asperger, que leva uma criança a um equilíbrio emocional oscilante entre o desprezo no convívio social, por seus gestos repetitivos e atitudes incomuns, na incontida pulsão de preencher seu mundo solitário apenas com a prevalência de interesses personalistas.

A acertada direção de Moacyr Goes tem sua maior força nos embates entre a figura do pai (Thelmo Fernandes) e do filho Christopher (Rafael Canedo), sem duvida destacando-se ambos pelo coeso presencial cênico em convicta representação chegando, no caso do personagem conflituado, a uma envolvente e emotiva performance de um jovem ator de revelador e ascendente talento.

E que só tem seus momentos de fragilidade quando dispersa a concentração dramatúrgica em excessivos personagens acrescentados à versão teatral, de pouco sustento dramático e quase fora do contexto emocional da trama, mesmo sendo inspirados na narrativa original, um romance em forma de monólogo confessional.

Só os pais que passam pela atroz experiência de terem as chamadas crianças diferentes, aquelas que estão nos limites entre a razão e a insanidade, sabem o que significa esta insana batalha. Um tema exemplarmente abordado por estas duas imperdíveis montagens.

Levando, afinal, a uma oportuna reflexão comparativa destes seres marginalizados por suas atitudes comportamentais diferenciadas mas tão próximas dos indefesos, dos ingênuos, dos puros e dos idiotas, os eleitos de Deus no evangelizado universo ficcional de Dostoiévski.

                                         Wagner Corrêa de Araújo

O ESTRANHO CASO DO CACHORRO MORTO. Direção Moacyr Goes. 
(Estas quatro peças estiveram em cartaz nos palcos cariocas, entre abril e maio de 2014).

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