ANTES QUE A DEFINITIVA NOITE SE ESPALHE EM LATINO AMERICA : ALEGÓRICA REAÇÃO À DISTOPIA


FOTOS/ FLÁVIA CANAVARRO E MAURÍCIO FIDALGO

“Tudo que tem um tempo de esplendor tem também um período de decadência mas, ao mesmo tempo, tudo o que tem um tempo de decadência tem um tempo de esplendor”.

Emblemáticas palavras, do escritor argentino Pablo Katchadjian, capazes de decifrar ou responder à desalentadora pulsão que desarma o olhar poético e conduz o pensar filosófico / ideológico a um tempo de distopias na América Latina.

Acentuado pela desilusão e pelo descrédito no projeto esquerdista que foi tornando mais prevalente a perpetuação do poder político que a, até então potencializada, progressividade social. Dando no que  se deu do outro lado e vem se espalhando linha abaixo do equador.

Numa retomada obscurantista do preconceito e da resistência feroz a qualquer pensar diferencial, com maior alcance e sensitividade, além da crise econômica que trava os financiamentos, no perigoso desprezo aos mentores da liberdade de criação artística.

E foi no encontro dialetal de duas pirâmides  cênicas que o coletivo Ultralíricos, sob o artesanal comando do dramaturgo e diretor Felipe Hirsch, idealizou uma proposta dramatúrgica para estabelecer incisivas pontes palco/plateia, ator/espectador, sujeito/objeto, do verismo ao alegórico, entre o subvertimento  da ordem natural das coisas e o impulso lúdico/orgíaco.

Transmutando, com denúncia e delírio em compasso ritualístico/teatral, o grito de protesto por uma contemporaneidade em estado de pânico. E, com esta  bandeira, convocando à inédita escrita dramatúrgica alguns significativos representantes da intelectualidade latino americana.

Para se expressarem, do farsesco à irônica risibilidade, com armado espírito crítico capaz de ser absorvido reflexivamente pelo público destinatário, mesmo que subliminarmente lograsse funcionar apenas como um recado de advertência.

O que, num espetáculo de longa duração, funciona mais a contento na primeira parte, com seu direcionamento de uma abordagem mais inclusiva das ambiências e das decorrências do exercitar-se no ofício artístico. Desde a cena inicial (a partir do sugestão textual por André Dahmer) exibindo o patético legado de artistas esquecidos por sua obra mas lembrados por seus dentes cariados.

Ou de uma quase marchand (Debora Bloch) na sensação de inutilidade de seus tantos quadros, enquanto é ridicularizada por um deles (na voz e na fisicalidade em suspensão da atriz Renata Gaspar). Incluindo-se, ainda, o esquete (de Pablo Katchadjian) do poeta e seus perseguidores homicidas e o chamado para que a plateia ocupe o palco, em circuito de oralidade ancestral numa teatralidade de fabulação.

Em paisagem cênica recoberta por colchões solares, frontais e laterais (na dúplice concepção cenográfica de Daniela Thomas e Felipe Tassara), com proposital e referencial (pela própria tematização) instabilidade postural para o elenco. Com figurinos (Marina Franco) em tons ocres/negros, sob as variações luminares de Beto Bruel e trilha incidental de composição coletiva.

Perceptível, aqui, um primeiro ato que dá maiores chances para interatividade e torna mais espontânea e energizada a representação dos atores, em especial do trio Debora Bloch, Guilherme Weber e Renata Gaspar. Tendo ainda, no elenco, Jefferson Schroeder e, em episódica atuação, Nely Coelho e Blackyia. Diante de uma segunda parte de menor concisão, perdendo o ritmo por uma loquacidade discursiva, de substrato  quase grandiloquente, nas passagens autorais de Guillermo Calderon e Manuela Infante.

Apesar deste conflito de conectividade e uma reiterativa quebra do avanço dramático entre os dois momentos, com iminentes riscos de desvio da atenção focal, não deixando invalidar, como um todo, esta proposicão dramatúrgica.  Capaz, sobretudo, de fazer do palco um irradiador de visceral experimentalismo e de contestadora estética em torno de um convicto ideário.

                                              Wagner Corrêa de Araújo


Antes que a Definitiva Noite se Espalhe em Latinoamerica está em cartaz no Teatro Oi Futuro/Flamengo, de quinta a domingo, às 20h. 150 minutos. Até 24 de março.

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