O HÓSPEDE : TRANSGRESSÃO LIBERTÁRIA


Quase próximo de completar meio século, Teorema, o emblemático filme de Pier Paolo Pasolini, continua sua trajetória metafórica e mítica de desestabilização da resistência cultural/ideológica  de raízes burguesas.

Passível na inesperada vinda de um enigmático visitante/hóspede , uma espécie de anjo exterminador, portador de poderosos e inexplicáveis atributos físicos e espirituais.

Sedutor, convincente, conciliador , de misterioso envolvimento, entre o poético e a erotização, devassando  mentes e corpos no avassalador domínio da integralidade de uma família, incluída a criada.

No plano conceitual, um questionamento metafísico, das utopias políticas, das sacralidades religiosas , dos moralismos sociais. Aqui representados pelo frívolo convencionalismo e pelas aparentes certezas de um núcleo doméstico capitalista.

Tema de duas versões livres simultâneas, na cena carioca e paulista, sob os títulos respectivos de O Hóspede e Teorema 21. A do Grupo XIX de Teatro( SP) sob o ângulo exclusivo da ideologia politica e a  de Francis Mayer(RJ) na desintegração  pela prevalência da  sexualidade.

Ficando visível em cada uma delas, a livre inspiração sem rígido  compromisso de fidelidade à proposta original de Pasolini, mas conservando a incisiva imanência de seu  pensamento,via um teorema a ser decifrado.

Francis Mayer, dramaturgo e diretor de O Hóspede, transmuta a ambiência italiana num universo burguês carioca, na sóbria arquitetura cênica em dois planos. Através de um recatado desenho de luzes e interferências precisas de um score sonoro de predominância techno/pop.

Com um elenco homogêneo  , bem articulado , na sua correta linearidade com que tira partido de seus personagens. Com ressalva,apenas, na desnecessária exacerbação  da ingenuidade  infantilizada da adolescente  Ornella( Izabella Guedes).

Destacando-se , na sintonia de sua linguagem cênico/ corporal ,de convincente entrega ao protagonismo/titular , Lucas Malvacini  . No seu confronto físico/textual com Antero, o acomodado patriarca( Regis Farah), a insatisfeita esposa Laura(Flávia Santa Maria), o jovem e inseguro primogênito Michel (Felipe Salarolli) e  a fragilizada empregada Elisa ( Luciana Albertin).

Quanto ao papel de Diego Rosa (garoto de programa), caracterizaria  bem a  visão peculiar   do próprio Pasolini na sua única visita ao Rio(1970) , “à altura dos michês mais bonitos (...) existe um anjo que que não sabe nada, sempre debruçado sobre seu sexo”.

A presença cênica, irônica e audaciosa, de um narrador (Vinicius Vommaro) conduz e interioriza, sob preciosas inserções de Rimbaud,  com mão de anjo rebelde, a transgressão libertária da trama dramatúrgica.  No alcance referencial , enfim, do sonho mistificador de seu   inventor  primeiro   -  o    poeta/cineasta : 

“Pecador não é de modo nenhum aquele que faz o mal: não praticar o bem, eis o verdadeiro pecado”.




     O HÓSPEDE está em cartaz no Espaço Tom Jobim / Jardim Botânico, sexta e sábado 21h; domingo, às 20h. 90 minutos .Até      31 de Janeiro.

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