RETROSPECTIVA COREOGRÁFICA 2016: O ANO EM QUE A DANÇA QUASE DANÇOU


O Lago dos Cisnes/Balé do Theatro Municipal/RJ/Foto Sheila Guimarães

A crise, perceptível desde os primeiros meses do ano, acentuou suas temerárias consequências em todas as manifestações cênicas, do teatro à ópera. E a dança, acuada por todos os lados, na carência de espaços e patrocínios, sobreviveu ainda assim, apesar de ter, literalmente, quase dançado...

Significativamente, a temporada foi aberta com ainda alguma expectativa, na original apropriação do universo literário de Garcia Marquez pela Renato Vieira Cia de Dança, em obra inédita -  No Me Digas Que No.  

Em tempo de aniversários, recatadas foram as comemorações em raríssimas novas incursões e  sempre com obras antigas do repertório das cias. Como foi o caso do Grupo Corpo que, nos seus 40 anos, limitou-se a reapresentar a Dança Sinfônica , de 2015, ao lado de Lecuona, esta de onze anos antes.

Ou como os trinta anos da Intrépida Trupe que começaram bem com a criação de Mário Nascimento À Deriva, num mix de acrobacia /dança contemporânea explorando a tensão de corpos /pêndulos. Mas ficaram praticamente por aí .

Maior ousadia teve a Focus de Alex Neoral ao fazer varias temporadas de retomada do seu repertório de 15 anos, revisitando expressivos trabalhos exploratórios das relações da corporeidade com o tempo e o espaço, num fiscalidade reflexiva e dialogal com o mundo ao redor.

Na pegada da urbanidade, a Mimulus, com Pretérito Imperfeito de Jomar Mesquita, registrou suas trinta velas com o memorialismo domiciliar dos saraus e bailes à antiga. E na radicalização do virtuosismo clássico a partir das raízes periféricas, Thiago Soares ao lado do dançarino rapper Danilo D'Alma instaurou com Roots uma das mais incisivas experiências coreográficas de 2016.

Gramática cênica de visibilidade também nas coreografias de Mourad Merzouki em Pixel no uso conceitual de elementos etno/ecológicos com uma digitalização corporal computadorizada. E Olivier Dubois que, em Mémoires d’um Seigneur, demole a corporeidade apolínea e a técnica perfeita na incorporação de um elenco de excluídos sociais que nunca pisaram num palco.

Num mesmo diapasão dança/artes plásticas, Esther Weitzman referenciou com inventividade a “minimal dance, de Cunninghan, ao “dripping de Pollock em Dançar(não)é Preciso e Márcio Cunha assumiu a seminal brutalização da arte/vida em enérgico Céu de Basquiat.

O Que Eu Mais Gosto É de Gente, espetáculo tributo a Angel Vianna/Foto Maurício Maia

E duas companhias  mergulharam na espiritualização da fisicalidade. Sankai Juku com sua dança teatralizada com extroversão da interioridade em Meguri. E Angel Vianna com sua dança laboratorial  de revelação do auto conhecimento corporal, na vitalidade do solo autoral Amanhã é Outro Dia e no reflexo especular de seus discípulos em O Que Eu Mais Gosto é de Gente.

Da ritualização corporal à força testemunhal da tradição. O Balé do Teatro Municipal com seu Lago dos Cisnes de notável rendimento cênico, apurado senso artístico e singularizada entrega técnica /emotiva, responsabilizou-se por uma das mais exuberantes performances do ano.

Bravo, enfim, aos seus intérpretes e impulsionadores que, entre a sublimidade apolínea e a pulsão  dionisíaca, foram capazes, só assim,  de mimetizar a crise em catártico horizonte coreográfico.

                                              Wagner Corrêa de Araújo

Roots,duo Thiago Soares/Danilo D'Alma/ Foto Mariana Vianna

ÓPERA 2016 NO THEATRO MUNICIPAL/RJ: A TEMPORADA QUE NÃO ACABOU

DON QUIXOTE - FOTOS /JÚLIA RÓNAI

Quando foi lançado o catálogo, com toda programação oficial 2016  do Theatro Municipal/RJ, houve a feliz surpresa da reveladora inclusão, além das obras comuns do repertório operístico, de outras mais arrojadas, entre o  ineditismo ou a raridade,  no palco mais nobre da capital carioca.

Como foi o caso  de Don Quixote, de Massenet, e Jenufa, de Janácek, ao lado das habituais  voltas com Orfeu e Eurídice ( Gluck) , Lo Schiavo( Carlos Gomes), O Barbeiro de Sevilha(Rossini) e La Bohème(Puccini). Mas, nos reveses da crise econômica  que assolou o Estado, sobreveio  o cancelamento definitivo de Rossini  sendo  o Puccini salvo, mas em forma de concerto.

Onde, felizmente, a decepção do público foi resgatada pela presença dos solistas originalmente contratados, todos com um eficaz desempenho vocal, além do  potencial destaque para o Rodolfo do tenor Ivan Magri.

A abertura da temporada, com a retomada do Don Quixote, em coprodução com SP(Teatro São Pedro), impressionou pela sintonia de seus recursos artísticos/musicais, da concepção cenográfica ao naipe de intérpretes, como a régie e a direção musical. Favorecendo o clima da representação e dimensionada na  memorável atuação vocal/cênica do protagonista, o baixo Gregory Reinhardt.

ORFEU E EURÍDICE/- FOTOS JÚLIA RÓNAI
A original transposição estética de Caetano Vilela, com referencial de uma arquitetura em construção, para o Orfeu e Eurídice(Gluck),  mesmo com  os intensos matizes vocais da mezzo soprano Denise de Freitas e da soprano Lina Mendes, sofreu com o desacerto dos figurinos e não combinou com o academicismo das incidências coreográficas.

O programa Ópera+Ballet ao reunir duas obras de Rimsky-Korsakov – causou estranhamento na versão em português da ópera em um ato Mozart & Salieri, cujo fraseado musical tem íntimo lastro no suporte linguístico  russo, a partir do original de Pushkin.

Embora as modulações cênico/musicais tenham alcançado unidade interpretativa no confronto das nuances vocais de baixo/ barítono( Inácio De Nonno) e tenor( Flavio Leite), num espetáculo que teve seu maior mérito no inventivo ideário da estréia operística do dramaturgo e diretor teatral Daniel Herz.

A volta de Carlos Gomes ao Municipal emprestou, mais uma vez, dignidade  à proposta do comando  diretor do teatro, não só de priorizar os compositores como os cantores nacionais.

Lo Schiavo mostrou ,assim, a competência para uma encenação dramático/musical irrepreensível do repertório histórico da ópera brasileira. A maturidade artística, o domínio técnico e a carismática representação do barítono Rodolfo Giugliani no papel título, sem desmerecer os outros intérpretes, provou que o Theatro Municipal está no caminho certo.

E que se faltou o esperado e necessário contraponto da contemporaneidade com o adiamento de Jenufa (Janácek) para a temporada 2017, a programação continua acertando neste seu investimento estético, da tradição à modernidade, pela coerente busca, enfim,  da adesão e da  cumplicidade de todos os tipos de público.
                                                          Wagner Corrêa de Araújo
                                                      
LO SCHIAVO/ FOTOS JÚLIA RÓNAI
                                                           

GRITOS: METAFÓRICOS IDEOGRAMAS CORPORAIS


FOTOS/RENATO MANGOLIN

“O pensamento visual se aproxima mais dos processos inconscientes que o pensamento verbal” . Este principio freudiano marca indelevelmente a concepção conceitual, entre a temática e a estética, da mais nova criação do teatro gestual da Cie Dos a Deux, titulada como Gritos.

O dimensionamento psicológico dos três poemas gestuais metafóricos, integrantes de sua teatralidade estrutural,   visualiza-se na relação seminal entre os atores e sua auto - direção( Artur Ribeiro e André Curti)com as insólitas e incisivas instalações cenográficas.

A aridez da  arquitetura cenográfica (ainda,na criação conjunta de A.Ribeiro/A.Curti) com seus murais divisores à base de molas de camas  , cadeiras e mecânicos bonecos humanos( Natacha Belova / Bruno Dante), potencializa-se  na  simbólica duplicação imagética de fragmentos corporais dos dois  protagonistas.

As luzes( Arthur Luanda/Hugo Mercier),sombrias e soturnas, replicando uma marca criativa da Cie Dos a Deux, apenas delineiam os traços de um figurino cinzento (Thanara Schonardie) entre penumbras.

Onde os acordes de uma trilha (Marcelo H) de sonoridades graves, em clima de uma partitura de réquiem, ritualizam a plasticidade de um  código tensional, entre uma oprimida rebeldia e patéticos gritos em silencio.

Inscritos no contraponto da enérgica fisicalidade e da introspectiva máscara dos atores/personagens , numa gramática cênica de espontaneidade autoral, nas suas referencias do teatro japonês, do expressionismo cinematográfico e da dança/teatro.

Os  três poemas plástico/teatrais , em sua corporificação cênica, estão sintonizados ,em sua narrativa dramática e na sua tematização, por uma sensorial exposição , entre o onírico e a crua verdade, da tragédia da contemporaneidade.

Ora através da dor laminar,  pelos preconceitos familiares e pelas marginalizações às sexualidades diferenciais em Louise e a Velha Mãe. Ora em clima de absurdidade,  no solitário desencontro do ser humano com seu próprio ego, pela ilusionista busca de sua cabeça no corpo do outro( O Muro).

Ou, ainda , em  fissuramentos díspares de lirismo e caos, na passagem árabe do delírio amoroso à sequência  gestacional, confrontada no enfrentamento dos pesadelos  de guerra ,separação e morte ( Amor em Tempos de Guerra).


Decifrando os significados e os significantes dos processos estéticos e de conteúdo do teatro gestual ,na eficácia de sua linguagem de ideogramas corporais, Gritos revela, enfim, convicta solidez formal , reflexiva intenção crítica.

                                                Wagner Corrêa de Araújo


GRITOS está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, de quarta a domingo, às 19h. 90 minutos. Até 16 de janeiro.
Sessões extras nos dias 26/12, 02, 09 e 16/01 (segundas), às 19h.

A VIDA PASSOU POR AQUI: E SALVOU-SE POR ALGO EM COMUM...



FOTOS/DALTON VALÉRIO

Repartindo o desalento e retomando a alegria são os elementos afetivos  que unem os dois personagens de A Vida Passou Por Aqui, peça de Claudia Mauro que compartilha sua representação com Édio Nunes, comandados por Alice Borges.

Ainda que não deixe escapar um fio de melodrama na sua abordagem de lugares comuns das condições do envelhecimento, com suas doenças , seus pesares e sua progressiva trajetória para o sentir-se cada vez mais só, até que apareça a consolação redentora de uma amizade fiel.

E é a presença do antigo contínuo, colega de repartição sem qualquer preconceito de status social , estendida num relacionamento com anos de dedicação deste serviçal Floriano(Édio Nunes) à professora e artista plástica Sílvia  (Claúdia Mauro), que restabelece para ela o sentido da vida.

Debilitada e quase imobilizada nas decorrências de uma moléstia grave, assolada pela melancolia e pelos contratempos físicos, ela destila sempre  suas amarguras e ressentimentos contra tudo, no descrédito de nunca mais perder o peso da desilusão. 

Ensinando a Silvia como poder novamente sorrir, a sonhar e a esperar por dias melhores, é como se Floriano assumisse em   sua simplicidade conceitual, o princípio aristotélico de que “a amizade é uma alma em dois corpos”.

A trama dramatúrgica de Claudia Mauro numa modulação de sutil delicadeza é estruturada, então,  na passagem e no convívio entre dois tempos narrativos  - a adversidade do presente e a felicidade do passado. 

E, assim, o equilíbrio do  domínio sensorial entre a voz e a fisicalidade na dramatização de um conflito de vontades, com interpretações consistentes e direção (Alice Borges) segura, faz com que A Vida Passou Por Aqui ressoe textual e cenicamente no que é pretendido.

O esforço  pela enérgica e instintiva amarração deste jogo teatral entre dois atores é alcançado pelo comando diretorial na prevalência de uma identidade interpretativa, com sua troca alternada de dimensionamento psicológico em situações emotivas díspares.

Édio Nunes revela cativante coragem na  luta solidária de seu personagem pelo desentorpecimento da dor em alegria , enquanto Cláudia Mauro empresta dignidade singular  às suas transmutações entre os desalentos e as redenções de júbilo.

A envolvente gestualidade imprimida por Paula Águas reflete simultaneamente amor e dor, perda e reconquista, acrescida por acordes musicais ( Cláudio Lins)  calorosos, pelo recato eficaz  dos figurinos(Ana Roque) e da climatização dos efeitos luminosos  (Paulo Medeiros) para o naturalismo verista da concepção cenográfica(Nello Marrese).

Tudo , enfim, concorrendo para o rendimento harmônico e reflexivo de uma temática tão despretensiosa mas capaz de fazer rir e de provocar uma lágrima furtiva em seu contraponto afetivo com cada de um nós.

                                           Wagner Corrêa de Araújo


A VIDA PASSOU POR AQUI está em cartaz no Teatro Café Pequeno, Leblon, de sexta a domingo, às 20h. 90 minutos. Até 18 de dezembro.

LEITE DERRAMADO: UM INSTANTE FEROZ DA CONSCIÊNCIA COLETIVA

FOTOS/EDSON KUMASAKA


Desde as suas primeiras resenhas críticas  Leite Derramado, o romance de Chico Buarque, não sem evitar prós e contras, foi comparado pela sua estrutura temática às Memórias Póstumas de Brás Cubas

O toque machadiano estaria no seu tom confessional, de ressentimento e  amargura , onde um moribundo quase centenário , num infecto hospital público, relata à enfermeira, das glórias da ancestralidade familiar às decepções e percalços da sua  trajetória final.

Uma narrativa que acaba se confundindo com a de um  Brasil sem saída ,miserável, corrupto, criminalizado,  com suas podres  elites e no descrédito absoluto em seus valores morais e suas instituições políticas.

O personagem/narrador torna-se assim a própria consciência metafórica de seu país ao descrever fatos de seu domiciliário existencial transfigurados nas mazelas de uma história/pátria, cinco vezes centenária.

Na sua transposição à teatralidade, Roberto Alvim ressalta esta nuance desde a emblemática frase inscrita sobre o palco – “Nossa tragédia é toda sua”. E  afasta, assim, a prevalência do personagem feminino Matilde, priorizando uma pulsão coletivista no lugar dos perigos do psicologismo personalista.

E ao escolher uma atriz ( Juliana Galdino) para assumir o personagem masculino do velho Eulálio imprime um sotaque de simbológica ambiguidade a uma identidade genética da cidadania - que pode ser a de qualquer  um de nós.

Dentro do seu conceitual de teatro noir,  Alvim explora as presenças do elenco(Caio D’Aguilar/Diego Machado/Luiz F. Pasquarelli/Marcel Griten/Nathalia Manochio/Renato Forner/Taynã Marquezone) com uma formalização imagética de efeitos plásticos quase espectrais no desenho de luz(Domingos Quintiliano)entre sombras.

E é este contorno de rigorosa expressão corporal , conciso e ao mesmo tempo tenso, que estabelece uma contundente linha dramática. De força interior e envolvência sensorial na equilibrada sintonia do carisma de Juliana Galdino com a elegância interpretativa  dos outros sete atores.

A incisiva concepção cenográfica(também de Roberto Alvim)com seu referencial nativo dos figurinos(João Pimenta) e da natureza,em desenhos primitivos, destaca-se pela pigmentação aquarelista em irradiante poetização  visual de nossa terra, nossa gente.

Onde o postural hierático ritualiza  a palavra e o gesto numa estética entre o imaginário barroquista e o sensualismo tropicalista, acentuada pelas rompantes incidências sonoras(Vladimir Safatle) de cantos de samba, ritmos de candomblé e hinos ufanistas.

Incômodo na sua opção pela oralidade seca e direta do textual literário, instintivo na exploração do onírico e do pesadelo, veemente por seu contraponto crítico, Leite Derramado é uma surpresa artística e um testemunho dramático irrepreensível. Que chega, neste caos nosso de cada dia,  com hora e alvo certo.

                                         Wagner Corrêa de Araújo


LEITE DERRAMADO está em cartaz no Teatro Ginástico, Centro/RJ. Quinta a sábado, 19h. 70 minutos. Até 18 de dezembro.

O ESCÂNDALO PHILIPPE DUSSAERT: NO EPÍLOGO DA REPRESENTAÇÃO PICTÓRICA


FOTOS/PAULA KOSSATZ

No ápice da revolta estudantil de 1968, as inscrições murais de Paris replicavam : a arte está morta, criemos nossa vida cotidiana. Um apelo  que ecoava  as      palavras precursoras de Marcel Duchamp em 1915 –“A pintura acabou. Quem faz melhor esta hélice”?

Com o olhar armado nesta visceral aventura estética em torno da nova gramática do quadro sem os freios do pictórico, o dramaturgo e ator Jacques Mougenot assumiu cenicamente seu texto autoral O Escândalo Philippe Doussaert, numa das mais profícuas carreiras nos palcos franceses  desta década.

No formato de uma palestra, o personagem deste monólogo, de inteligente ironia e mordaz espírito crítico, é um hipotético pesquisador (Marcos Caruso) mais curioso que especialista na obra polêmica de um obscuro pintor, confrontando seu solilóquio na provocação dialogal com a plateia.

Desiludido com os caminhos tomados pela criação artística diante dos seus desvios na pulsão mercantilista e nas falácias intelectualistas , seu conceitual cênico é o da total efemeridade do quadro com seu suporte imagético.

Onde os abusos vanguardistas estão no convite ao público consumidor, ora numa vernissage de encantamento na presença do nada ou ao regalo do apetite estético frente a um prato de excrementos humanos.

Fundamentando-se , ainda,  na dessacralização dos signos históricos - ( da  Mona Lisa, com um bigode e cavanhaque,  ao Vermeer da Menina do brinco de pérolas,  confundida pelo  turbante da Madonna pop-star) - o personagem/protagonista acredita,então,na saída pela transposição estética da ancestral teoria filosófica do vacuísmo.

A beleza e a valoração da arte estariam, assim, na releitura de pinturas clássicas sempre com a descoberta do que existe,por trás e entre duas imagens .Ou em sua  culminância transgressora no “escândalo” político/cultural da aquisição pública do vazio/vácuo plástico, transubstanciado na invisibilidade metafórica/realista de um quadro do nada.

E se é o discurso pelo nada que vai no crescendo desta teatralidade narrativa de questionamentos ,a minimalista concepção cenográfica e seu recatado figurino ( na dúplice idealização de Natália Lana), o essencialista desenho de luz (Vilmar Olos) e som(Maíra Freitas)aliados à transparência das projeções documentais ( Rico e Renato Villarouca) , conduzem à inesperada surpresa conclusiva.

As singularizadas e seguras  marcações diretoriais (Fernando Philbert) favorecem a vigorosa  representação de Marcos Caruso, de verdade interior e irrepreensível entrega da palavra e do gesto, na divertida visibilidade  dramatúrgica  dos  delírios estéticos  à desmistificação do  papel da criação plástica na contemporaneidade.

Num espetáculo  de convincente acabamento artesanal , ao qual nunca falta uma eficaz dose de entretenimento . Capaz de alcançar tanto a risível cumplicidade com a crise da arte hoje, como uma possível adesão reflexiva  de cada espectador à referencial resposta do nosso poeta e esteta mor Ferreira Gullar:

A obra de arte está dentro e fora de nós, ela é nosso dentro ali fora”.

                                         Wagner Corrêa de Araújo 


O ESCÂNDALO PHILIPPE DUSSAERT está em cartaz no Teatro Maison de France, Centro, RJ.Quinta e sexta, às 20h; sábado, às 21h;domingo, às 18h. 80 minutos. Até 26 de março.



DEPOIS DA TERCEIRA ONDA: O RISCO DA PULSÃO IDEOLÓGICA


FOTOS/PAULA KOSSATZ

Se nada vale mais  a pena  e se já não há perspectivas geracionais futuras... Se a  ação e o  pensar se alienam pelas superficialidades tecnológicas/virtuais e pelo descrédito nos mecanismos político/sociais, a percepção é de que os irracionalismos ideológicos não morreram e que estão à espreita. Aguardando apenas que estas luzes se acendam para sua entrada em cena, como  personagens portadores das saídas e soluções.

E que os fantasmas nazi-fascistas, stalinistas, maoistas, franquistas, militaristas afro/asiáticos/latino-americanos, se escondem atrás dos fundamentalismos religiosos, das marginalizações raciais, sexuais, culturais , do terrorismo e de todas as formas das descrenças civilizatórias na contemporaneidade.

Onde a maior ameaça está no convencimento e no  resgate “carismático" pelos   salvadores da pátria. E que é este o discurso que inspirou um romance (Todd Strasser), replicado em dois filmes , do americano Morton Rhue e do alemão Dennis Gansel, sendo,agora, retomado na versão dramatúrgica do diretor Jarbas Albuquerque sob o titulo “Depois da Terceira Onda”.

Ao escolherem juntos, alunos e professor, um tema para discussão em sala de aula , a opção coletiva é por autocracia. Já acostumados ao espírito libertário e sem governo de anarquizadas mentes jovens, respondem assim ao apelo do inusitado , da surpresa  e da  aventura por trás do que lhes é desconhecido.

Por seu experimento didático em torno do significado de autocracia (do original grego, auto: próprio e kratia: poder) é, assim , que o professor Ron Jones(Ignácio Aldunate) sente-se,então, na auto suficiência da vitória personalista  de exclusivo formador de uma consciência coletiva na mobilização de seus alunos (Adriana Perin, Daniel Bouzas,Henrique Guimarães,Lu Lopes,Maíra Kestenberg, Samuel Vieira).

Onde a eficaz proposição simulatória da prática de atos físicos e digressões  verbais  é enfatizada por uma cenografia minimalista(Gregório Rosenbuch/Mariana Meneguetti) , pelo  recato das luzes  (Elisa Tandeta)e do incidental score sonoro(Federico Puppi), com identidade gestual ( Paula Barbosa) e  funcional similaridade de figurinos/uniformes(Henrique Guimarães).

Com um elenco jovem sintonizado em sensorial e convicta entrega a este jogo de manipulação, o seguro e criativo comando diretorial (Jarbas Albuquerque) desperta  um reflexivo alerta em cada espectador  sobre o mau uso da psicologia  das  massas.

Em que toda e qualquer manipulação de mentes fragilizadas na desorientação das crises sociais,  pode conduzir   à tragédia da ascensão  de absurdas irmandades  políticas. Na impulsiva prevalência dos seus extremismos individualistas padronizando, como  único e absoluto desejo coletivo, a sua própria verdade.

Por isto mesmo, muita atenção, é tempo obrigatório para se conferir Depois da Terceira Onda. E todo cuidado é pouco, o perigo ali exposto pode estar morando muito perto...Então, que tal repetir a emblemática lição final daquele professor Ron Jones ? :

O fascismo não é uma coisa que outras pessoas fizeram. Ele está aqui mesmo em todos nós...O que faz um povo renegar sua própria história? Pois é assim que a história se repete...


DEPOIS DA TERCEIRA ONDA está em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal/Cinelândia/RJ, quarta e quinta, às 19h. 75 minutos. Até 22 de dezembro 

A PAZ PERPÉTUA: ANTROPOMÓRFICA REFLEXÃO SOBRE O TERRORISMO



FOTOS/NIL CANINÉ

Considerado um do mais originais criadores da dramaturgia espanhola contemporânea, no  seu olhar atento à pulsão conceitual do teatro como arte política, Juan Mayorga tem A Paz Pérpétua qualificada entre suas mais polêmicas e instigantes peças, já na sua similaridade nominativa metaforizando um livro de Kant .

Estreada em 2008, num mundo tragicamente conturbado com a implosão da onda terrorista, a partir do episódio WTC, nela as personalidades humana e canina se confundem e se completam através da ambiguidade de quatro personagens nas suas dúplices digressões por um ideário pacifista para cidadãos e animais.

O rottweiler Odin( João Velho), frio e mercenário; o cão policial  de  raças cruzadas John-John(José Loreto) com sua ideal aptidão física e postura submissa; e o pastor alemão Emanuel ( Cadu Garcia) , sensibilizado  por sua aculturação kantiana quando foi guia de uma cega , estudante de filosofia.

Aos quais se juntam a liderança de passado canino do agora fraturado Cassius ( Alex Nader), na responsabilidade de ensino, no esteio de sua maturidade guerreira , das provas e entrevistas psicotécnicas para os colegas genéticos.

Todos em fase de adestramento, sob o automatizado  comando mor do treinador humano( Gillray Coutinho), para o alcance da coleira branca – o distintivo maior para o  eficaz combate às  células degenerativas em atentados à  perpetuação da paz .


Na organicidade performática de um elenco personificando, com vigorosa energia, sua entrega ao humano/anímico , ora expresso em sutis  atos olfativos ora em sensoriais posições quadrúpedes,mas sem nunca escorregar no grotesco imitativo.

Numa ambientação cênica( Aderbal Freire-Filho) neutra de um lugar nenhum qualquer, somatizada nos resultados da não invasiva luminária(Maneco Quinderé)  paralela às incursões sonoras(Tato Taborda), entre silêncios cronometrizados, ruídos eletrônicos e acordes mozartianos.

Com um incisivo direcionamento  de Aderbal Freire-Filho(dublê numa preciosa tradução) à indução do  espectador  ao auto questionamento instintivo diante deste discurso político e filosófico do antropomorfismo ; no seu  trato , com tragicidade de mordaz ironia, de uma das mais complexas questões da contemporaneidade.

Ecoando a postulação filosófico/política do dramaturgo espanhol ao polemizar ,nesta híbrida teatralidade da rejeição antiterrorista, o “discurso político e moral de legitimação da tortura como um mal necessário”, pela  radicalização transformadora onde:

Só há uma forma de fazer justiça às vítimas do passado - impedir que haja vítimas no presente”.

                                               Wagner Corrêa de Araújo


A PAZ PERPÉTUA , em nova temporada,  no Teatro Dulcina, de quinta a domingo, às 19h. 90 minutos. Até 19 de fevereiro.


OS CADERNOS DE KINDZU: COSTURANDO SONHOS EM TERRA MORTA

FOTOS/ DANIEL BARBOZA

O que andas a fazer com um caderno?/Nem sei ,pai./ Escrevo conforme vou sonhando./E alguém vai ler isto?/ –Talvez./É bom ensinar alguém a sonhar”...
É, assim,  a partir da segunda parte do romance Terra Sonâmbula, de Mia Couto, celebrado escritor moçambicano, que se estrutura a narrativa teatralizada pelo Amok Teatro na sua última concepção, titulada como Os Cadernos de Kindzu.
Escrito em 1992, o livro mostra uma terra devastada por uma década(1965/75) de guerras civis, capazes de tornar todos , vítimas ou carrascos, uma massa humana informe e desmemoriada.
E onde, na tragicidade da inexorável predestinação de  efeitos “sonambulizantes” , a única perspectiva de “futuros e felicidades” seria o visceral mergulho nos sonhos.
Sentindo-se estrangeiro em sua própria nação, Kindzu((Thiago Catarino), com as raízes familiais dizimadas, inicia sua trajetória de exilado em país de ninguém.
Cruzando, na sua  sonhada costura de desejos reprimidos, com o fantasma do pai (Sérgio Loureiro) e com as áridas lembranças da irmã de desterro Farida(Graciana Valladares). Remetendo-se, ainda, às presenças femininas maternais ou prostituídas (Luciana Lopes e Vanessa Dias) e às personalizações masculinas do indiano rejeitado (Stephane Brodt) ou do português dominador (Gustavo Damasceno).
Adaptar dramatúrgicamente o purismo de um texto literário de perceptível inventividade  , com seus neologismos e suas nuances de poética oralidade, é um desafio à não perda de sua intrínseca substancialidade.


Retomando o nativismo mítico da peça anterior “Salina - a Última Vértebra”, a presente concepção diretorial/cenográfica de Ana Teixeira e Stéphane Brodt revela,outra vez, um privilegiado alcance do substrato de sensorial esteticismo,  no dimensionamento psicológico dos personagens e em sua pulsão de emotiva interatividade palco/plateia.
Tanto na apurada  austeridade plástica  dos elementos cenográficos e dos figurinos, como na instauração de um clima de mágico realismo na execução de música autoral pelos atores e nas filigranadas modulações do desenho de luz( Renato Machado).
O elenco ,na sua irrestrita entrega à performance ,tem tal exaltação e organicidade em suas linhas dramáticas que  quase impossibilita destaques individualizados na segurança coletiva da construção de seus papéis.
Mas, diante da potencialidade carismática no protagonismo titular de Kindzu  na condução da trama, não há como cada espectador escapar de ser cúmplice da espontaneidade gestual e da força interior de seu intérprete( Thiago Catarino).
No reflexivo propósito de Mia Couto  “para que cada homem fosse visto sem o peso de sua raça”, Os Cadernos de Kinzdu ressoam, enfim, na triste paisagem da contemporaneidade, olhando a vida pelo sonho  com transcendental  “ousadia  para levantar asas pelo azul”.

Wagner Corrêa de Araújo




OS CADERNOSDE KINDZU , com o Amok Teatro, em cartaz no Teatro III do CCBB, Centro/RJ, de quarta a domingo, às 19h30m. 120 minutos. Até 18 de dezembro.

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