A SANTA JOANA DOS MATADOUROS:INVENTÁRIO TEATRAL DA LUTA DE CLASSES

FOTOS BY RICARDO BRAJTERMAN

Bertold Brecht, já nas suas primeiras criações teatrais, começa a afastar o conceito expressionista de que o homem/personagem encontra o seu significado na individualização heroica e abstrata de seu destino.

Afinal, em suas tramas dramatúrgicas, são as injunções sociais e econômicas que determinam a trajetória de seus protagonistas, num processo dialético com o fato histórico/ político.

Em A Santa Joana dos Matadouros ( 1930) esta reciprocidade cênico/filosófica vai longe ,conceitualizada pela ambiência   caótica da Alemanha pré-nazista.E transmutada na “Selva” ( no referencial ao romance do americano Upton Sinclair )dos matadouros de Chicago ,  numa concepção,inicialmente ,  de grandiloquência  operística.

Que, através da eficiente habilidade  técnica da  dramaturgia de  Diogo Liberano , concentra o elenco original de 40 integrantes em oito personagens,  numa apurada  adaptação  textual,  mantendo  a essência e a  integridade do pensamento teatral brechtiano.

Em sua falaz idealização missionária de que princípios religiosos e a caridade podem atenuar o opressivo status dos operários de Chicago diante dos patrões, Joana Dark (Luisa Arraes) ,a militante dos Boinas Pretas , assume um papel messiânico.    
                                                                                                
E confiante no  resgate pela palavra cristã, enfrenta a cínica indiferença do discurso capitalista dos mercadores de carne, Mauler( João Velho) e Slift( Leonardo Netto).

Mas sucumbe, fatalmente,  na impotência de seus argumentos evangélicos, incapazes de sustar a liberdade comprada dos miseráveis "obreiros" (Adassa Martins,Gunnar Borges, Leandro Santanna, Savio Moll e Vilma Melo).

A direção de arte (Bia Junqueira) é arrojada na simbológica singularidade de seus elementos cenográficos, ganchos de açougue, engradados, e um solo à base de camisetas, numa sutil  memorização da cruel indústria contemporânea das confecções  asiáticas .

Além da incisiva   provocação das luzes( Paulo Cesar Medeiros), quase faróis ,voltadas para os espectadores violando seu apático conforto por uma postura de reação.Incluidos os achados musicais ao vivo de (Arthur Braganti) ,nas  espontâneas  interferências do score sonoro com Rodrigo Marçal.

E intensificada, no exponencial comando , a quatro mãos( Diogo Liberano/Marina Vianna), acentuando na sua solidez estética, um teatro de  tensão , verdade e  denúncia.

Onde a ingênua piedade da protagonista contrapõe –se ao seu sofrido desalento diante dos irônicos desaforos do patronato brutal (João Velho/Leonardo Netto) . Completado,ainda, pelo domínio de uma convincente unidade interpretativa do elenco(Adassa Martins,Gunnar Borges,Leandro Santanna,Sávio Moll e Vilma Melo).

Configurando ,enfim ,um raro momento inventivo da arte de representar , de intensidade expressiva capaz de chegar à plateia  sabendo,antes de tudo,  como afastar do palco as emoções ilusionistas , no seu compartilhamento ideológico com Brecht:

“Nós os convidamos para que venham aos nossos teatros e lhes pedimos que não se esqueçam de suas ocupações, para que nos seja possível entregar o mundo e a nossa visão do mundo às suas mentes e aos seus corações, para que eles modifiquem o mundo a seu critério”.

A SANTA JOANA DOS MATADOUROS está em cartaz no Teatro Gláucio Gil, Copacabana, de quinta a segunda, 20h. 120 minutos. Até 21 de dezembro.

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