AMARGO FRUTO: LADY SINGS THE BLUES

FOTOS/CLÁUDIA RIBEIRO
Infância conturbada, traumas familiares, estupro,prostituição, alcoolismo, drogas pesadas,preconceito racista. De outro lado, um talento único, intérprete refinada com seu timbre vocal singular,foi a primeira e única  a alcançar  o reconhecimento como a mais mítica "jazz singer" de todos os tempos.

Mas isto não foi capaz de deter sua trágica trajetória , com casamentos infelizes , prisão e dependência da cocaína , que abreviou sua vida em apenas 44 anos (1915/1959). Ficou o legado em inúmeros registros fonográficos clássicos, ainda que nas últimas vivências artísticas tenha sofrido críticas pela utilização de cordas,  como acompanhamento de uma vocalização já limitada e sem o apuro das épocas precedentes.

Sua carismática performance, de uma beleza original e elegância ímpar para os padrões,  de então , na música negra norte-americana, fizeram com que lhe fosse atribuído o título de Lady, pelo saxofonista Lester Youg. Foram muitos os hits musicais de sua breve carreira, como God Bless The Child, Solitude,My Man, Don't Explain, Mandy is Two, Speak Low  e, especialmente seu ácido grito  de revolta anti-racista, Strange Fruit.

É esta última que inspirou o título da peça , da autora e diretora Ticiana Studart , junto com Jau Sant'Angelo , Amargo Fruto - A Vida de Billie Holiday . E é a única canção  a não ser apresentada em sua versão original, mas em português, como um poema declamado por Lilian Valeska( Billie Holiday), com sua simbologia cruel -  "As árvores do Sul dão um fruto estranho/Sangue nas folhas e sangue nas raízes/Corpos negros balançam na brisa do Sul/ Um estranho fruto pendente dos choupos..."

Com uma requintada produção , caprichados figurinos (Marcelo Marques) e  um cenário simples mas funcional ( Aurora dos Campos), ressaltados sob o efeito de  luzes moduladas ( Paulo Cesar Medeiros), o espetáculo tem seu maior mérito no score musical preciosista ( Marcelo Alonso Neves) . Expresso em envolvente acompanhamento de um quarteto de jazz digno de nota -  Berval Moraes(baixo acústico),Gabriel Gabriel(saxofone)Rodrigo de Marsillac( piano) e Emile Saubole( bateria).

E que alcança na refinada interpretação vocal de Lilian Valeska  seu correspondente , em exponenciais momentos, com o brilho tanto da presença marcante  como de sua originalíssima tessitura vocal, nunca cedendo à mera imitação de Billie, mesmo que  os figurinos e a inolvidável
gardênia levem quase a senti-la  fisicamente no palco.

Mas o grande equívoco , para não fugir a uma expansiva e já gasta tendência do musical biográfico brasileiro, é o uso do cancioneiro como pretexto para contar, linearmente , a trajetória existencial , quase que à maneira documental, sem  qualquer preocupação por outra abordagem ( e poderiam ser várias no caso de Billie Holiday) . Mais uma vez,  o cerne dramatúrgico é perdido pela prevalência de um concerto cênico , ficando  evidente a superioridade de uma cantora arrebatadora duelando com  o menor fôlego de uma atriz.

Assim, a essencialidade do dimensionamento teatral fica representada , com força maior, pela sensibilidade da total entrega de Vilma Melo, na alternância de  vários personagens. O que não acontece   no caso de  Milton Filho, em menor relevância  nesta  mesma troca de papéis.

Se uma das fontes em que se baseou o texto foi a autobiografia de Billie Holiday - "Lady Sings The Blues", mas sem se ater exclusivamente ao depoimento da cantora que, muitas vezes, é fantasioso e fugidio,é perceptível  a preocupação de se confrontar o tom confessional do livro com uma extensa bibliografia sobre a cantora.

Mas se não houve, ainda,  a ousadia para superar a trivial fórmula da biografia musicalizada, o reencontro do público com um repertório tão significante através da superlativa vocalização da protagonista, certamente faz  alcançar o reflexionamento poético/filosófico sobre um gênero  ,assumido por Billie como seu, e desvendado, em tons  tragicômicos ,  nas palavras do escritor negro Ralph Ellison:

"O blues é um impulso para manter vivos na consciência dolorida da gente os detalhes penosos e os episódios de uma experiência brutal".

 Enfim, tudo a ver, com a Lady Blue.



AMARGO FRUTO -A VIDA DE BILLIE HOLIDAY EM NOVA TEMPORADA ,NO TEATRO CARLOS GOMES, CENTRO, DE QUINTA A SÁBADO, 19H30M;DOMINGO,ÀS 18h. ATÉ 25 DE SETEMBRO.





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