CORPO DE DANÇA DO AMAZONAS : DRAMATURGIA COREOGRÁFICA, AFETIVA E DE DENÚNCIA, PELA PRESERVAÇÃO DO LEGADO AMAZÔNICO

Corpo de Dança do Amazonas/CDA.TA - Como Ser Grande. Mário Nascimento/Direção Concepcional /Coreográfica. Junho/2025. Michael Dantas/ Fotos.


As primeiras abordagens, em dimensionamento sinfônico coreográfico, sobre a Floresta Amazônica foram de Heitor Villa-Lobos. Outros exemplos podem ser encontrados em criações posteriores de diversas companhias de dança brasileira, destacando-se, sem dúvida alguma, entre elas o Corpo de Dança do Amazonas.

No desafio artístico e no empenho patriótico pela valorização do acervo ecológico-ambiental diante de tantos atos depredatórios, às vezes permissivos por grande parte de nossos congressistas na recusa do marco legal dos povos originários. Ou, então, da irrestrita e consentida exploração devastadora de sua foz e do seu acervo florestal, com a consequente poluição de suas águas e a dizimação de suas espécies vegetais e animais.

Diante de tudo isto quando é verificada a trajetória de 26 anos daquela que é a mais importante Cia de dança da Amazônia e do próprio Norte do país, não há como ficar em silêncio mas clamar bem alto por suas qualitativas características estéticas, contando com 22 aprimorados bailarinos, todos eles autóctones daquela região, incluindo parcela significativa de indígenas, ribeirinhos, negros, além dos LGBTQIAP+.

Enquanto no seu repertório prevalecem temas étnicos e regionais voltados não só à valorização da fauna e flora, mas estendendo-se à abrangência de narrativas míticas, das lendárias às históricas, sobre aqueles tão fundamentais povos originários, os nativos, ancestrais  e primeiros habitantes do território brasileiro.  


Corpo de Dança do Amazonas/CDA. Rios Flutuantes. Rosa Antuña/Coreografia. Junho/2025. Michael Dantas/Fotos.


Contando já há cinco anos com a exímia competência direcional e concepcional do coreógrafo mineiro Mario Nascimento que enriquece o repertório com obras originais de sua lavra, estando sempre aberto a contribuições de alguns nomes conceituados da dança contemporânea brasileira e internacional. 

Priorizando temática amazônica, ao lado de coreografias inéditas ou de releituras de composições icônicas dos séculos XX e XXI, através, entre outros, de Luís Arrieta, Ivonice Satie, Luiz Fernando Bongiovanni, Henrique Rodovalho, Alex Soares, Rosa Antuña. E apresentando nesta oportuna turnê, numa bela iniciativa do Centro Cultural Banco do Brasil, cerca de seis criações que dimensionam bem a proposta da CDA (Corpo de Dança do Amazonas).

No preenchimento de uma caixa cênica minimalista, com extasiante jogo teatral de efeitos luminares (João Fernandes Neto) que alcança, no entremeio de claridades e sombras, um expressivo sugestionamento das diversas ambiências da paisagem florestal e da fluência das correntes aquáticas.

O que aparece, especialmente, na diferencial coreografia de Rosa Antuña, Rios Voadores onde a maleabilidade da corporeidade cênica e o molejo dos movimentos, com seus artifícios gestuais, alcançam uma significativa representação pictórica dos seres originários das águas. Ressaltando que há, ali, uma coesiva exteriorização sob o signo de uma tocante entrega emocional de seus bailarinos, tanto nos solos como nas formações grupais.

Enquanto sonoridades naturais ou eletrônicas, ora gravadas ora ao vivo, numa atemporal trilha do DJ Tubarão, são intermediadas com ruídos da natureza sob ritmos percussivos. Dando um toque de contemporaneidade ao gestual primitivo de corpos em conexão, sempre dialogando com o espaço cênico/visual numa envolvente fisicalidade de contrações musculares rítmicas.

Mas é em TA - Sobre Ser Grande que a CDA encontra seu momento de maior e mais surpreendente potencialidade inventiva e imersiva ao mesmo tempo. Seu simbólico titulo TA é a enunciação verbal de “grande” para os Tikunas, uma das poucas e a maior das tribos indígenas advindas dos povos originários.

A criação de Mário Nascimento estabelece exemplar ressonância do ideário estético/coreográfico de um corpo-linguagem ecoando uma mensagem de esperança, entre reflexos especulares da luta pela sobrevivência de um povo originário e de uma raça indígena, mais os tipos identitários da região, frente às adversidades sob irrefreáveis pulsões de avanços urbanos exploratórios.

A convicta adesão de seu energizado e técnico cast de bailarinos, a vigorosa autenticidade da assinatura corporal imprimida por  Mário Nascimento, indo da brasilidade musical e indumentária ao recado de sua tão oportuna temática, fazem, afinal, deste TA pelo Corpo de Dança do Amazonas, um transcendente instante da arte coreográfica em moldes brasileiros...

 

                                       Wagner Corrêa de Araújo


CDA - Corpo de Dança do Amazonas está em cartaz no Teatro I / CCBB/RJ, em horários diversos, até o próximo domingo, 8 de junho,  às 18hs.

OS MAMBEMBES : DE VOLTA À TRADIÇÃO DO TEATRO ITINERANTE, SOB CONEXÃO METALINGUÍSTICA DIRECIONADA À CONTEMPORANEIDADE


Os Mambembes. Arthur Azevedo/Dramaturgia. Emílio de Mello e Gustavo Guenzburger/Direção. Maio/2025. Annelize Tozetto/Fotos.


Original de 1904, numa diferencial concepção do dramaturgo e escritor Arthur de Azevedo, junto a outro maranhense José Piza, esta peça tornou-se um clássico do chamado teatro itinerante, idealizado inicialmente para ser representado, na genuinidade de seus ingredientes, em praças  ou quaisquer espaços públicos ao ar livre.

Mas acabou ficando praticamente esquecida até que se tornar um marco histórico do teatro brasileiro meio século depois, na sua marcante performance para um palco italiano, daquela vez no Theatro Municipal do RJ, como um tributo ao seu cinquentenário e ao responsável pelo seu projeto, o próprio Arthur de Azevedo.

Numa noite memorável de 1959, em que o espetáculo Os Mambembes foi apresentado como ponto de partida do “Teatro dos Sete”, na concepção de Gianni Ratto, reunindo nomes icônicos em seu elenco, entre estes, Sérgio Britto, Ítalo Rossi, Napoleão Muniz Freire e Fernanda Montenegro.

O êxito da peça incentivou outras sequenciais montagens, ora no formato itinerante em praças do Brasil, ora em variadas e livres releituras, nos palcos em adaptações próximas à proposta cênica de seu criador ou avançando em experimentos, entre uma burleta a um teatro especificamente musical.

Depois da turnê em cerca de nove espaços urbanos externos, no entremeio de capitais e no interior, esta presente montagem de Os Mambembes,  abrindo em grande estilo o último Festival de Curitiba, repete a dose longe da urbanidade dos ambientes públicos e apresenta-se, agora, preenchendo um palco carioca de teatro, pelo ideário tríplice de sua versão dramatúrgica  por Daniel Belmonte, Emílo de Mello e Gustavo Guenzburguer.  


Os Mambembes. Arthur Azevedo/Dramaturgia. Emílio de Mello e Gustavo Guenzburger/Direção. Maio/2025. Annelize Tozetto/Fotos.


De certa maneira, numa possível recorrência à lembrança da histórica noite, em 1959, ao apostar também num elenco de craques atorais da atualidade (Camila Boher, Claúdia Abreu, Deborah Evelyn, Julia Lemmertz, Leandro Santanna, Orã Figueiredo e Paulo Betti), sob um acurado e dúplice comando direcional (Emílio de Mello e Gustavo Guenzburguer), em concepção estética móvel capaz de se adaptar tanto às ruas como aos palcos italianos.

Mesmo que, para quem tenha tido a chance de assistir aos dois formatos, possa causar um estranhamento e talvez uma menor aproximação ator/espectador esta última se comparada à primeira proposta, mantendo em parte os mesmos elementos cenográficos minimalistas, ainda que, aqui, prevaleça todo o empenho do cast artístico e técnico.

Fazendo esta outra opção cênica não perder seu encantamento plástico com a manutenção de seus escassos recursos cenográficos (Marcelo Escañuela) pensados para um teatro popular simbolizado pelo teor itinerante e para inusitado público de rua que, certamente, há de se surpreender ao tomar contato com os mágicos artifícios  de uma criação teatral. 

Claro que a infraestrutura de um palco de teatro possibilita tornar mais expressivos os efeitos luminares  (Nadja Naira), mas não deixando de brincar com  lanternas na escuridão ou com a simbiose de figurinos cotidianos sinalizados por caracteres de sotaque burlesco (Marcelo Olinto).

Sempre nesta assumida proposição do improviso, tornando espontânea a corporeidade gestual (Cristina Moura), na pulsão de uma trilha sonora autoral à base de temas e ritmos nordestinos, interpretada ao vivo pelo instrumentista e diretor musical Caio Padilha.

Sete atores e um músico imersos em cativante trama farsesca, dando uma lição teatral de improvisação paralela à fidelidade quanto a narrativa dramatúrgica, numa linguagem fluente e irônica em seu sotaque folhetinesco e melodramático. E por uma gramática cênica com preciso domínio de sua direção, num correspondente e coeso desempenho coletivo de intérpretes mais que especiais.

Irradiando humor e ironia, ao avançar em temas sociais caros aos nossos dias, enquanto retrata e reflete bem os desafios e as adversidades do teatro de ontem e de hoje, em moldes brasileiros a partir de um pertinente conceitual “mambembe”, atemporal ao sintonizar a tradição e a modernidade, resultando, afinal, em espetáculo que deve ser obrigatoriamente conferido...

 

                                                  Wagner Corrêa de Araújo

 

Os Mambembes está em cartaz no Teatro Casa Grande/Leblon, de quinta a sábado, às 20h; domingo, às 18h, até 22 de Junho.    

O MERCADOR DE VENEZA : CLÁSSICO SHAKESPEARIANO EM VERSÃO CÊNICA SOB INSTIGANTE CONTEMPORANEIDADE

 

O Mercador de Veneza /William Shakespeare. Daniela Stirbulov/Direção Concepcional. Dan Stulbach/ Protagonista. Maio/2025. Ronaldo Gutierrez/Fotos.


Muitos dos especialistas na obra teatral e no legado  dramatúrgico de William Shakespeare ressaltam o quanto sua comédia dramática O Mercador de Veneza tem se tornado problemática aos tempos atuais, especialmente desde o Holocausto nos anos da Segunda Grande Guerra, pela forma estereotipada como sempre foram conceituados os judeus pela civilização cristã.

Havendo um recente avanço, neste preconceituoso tratamento, à causa dos permanentes conflitos enfrentados pelos palestinos, com a prepotência de um sionismo radical ao não aceitar em qualquer hipótese que eles ocupem, como nação soberana e independente, um território vizinho de Israel.  

Com perceptível predominância na modernidade destas encenações, de personagens da peça conservando suas denominações originais mas com menor ambiguidade que na trama original. Sendo dimensionadas num mesmo plano as contradições do conservadorismo e a defensiva postura entre um lado e o outro.

Acentuando ainda temas bastante pertinentes em nossos dias, da intolerância religiosa com o antissemitismo, a discriminação racial, a misoginia e a homofobia, a ascendente violência e um prevalente interesse do lucro num capitalismo dominante, sempre  em detrimento dos menos favorecidos na escala social.


O Mercador de Veneza /William Shakespeare. Daniela Stirbulov/Direção Concepcional. Dan Stulbach/ Protagonista. Maio/2025. Ronaldo Gutierrez/Fotos.


Referenciando concepções mais recentes onde o papel do agiota Shylock ora é interpretado por uma mulher, ora por um negro, numa ambientação linkada com  toda esta sombria problemática. O que não fica longe da mais ousada concepção brasileira realizada  até hoje,  a partir de uma artesanal adaptação de Bruno Cavalcanti e de uma instigante direção de Daniela Stirbulov.

Onde propositadamente se confudem e se cruzam, subliminarmente, a ambiência temática no final da era quinhentista e uma realidade anos 90 quase atemporal, direcionada a tempos futuros. Em funcional minimalismo cenográfico (Carmen Guerra), extensivo à  indumentária e ao visagismo (Allan Ferc), conectando sutis traços característicos de personagens shakespearianos com um assumido sotaque de contemporaneidade.

Não deixando de ressaltar a envolvência dúplice de efeitos digitais (André Voulgaris) e luminares (parceria Wagner Pinto/Gabriel Greghi) em projeções num painel de Led. Completadas por sensoriais sonoridades percussivas (Caroline Calê) repercutindo o gestualismo psicofísico dos personagens (Marisol Marcondes).

Em síntese a narrativa dramatúrgica, desenvolvida no entremeio de doze atores em diferentes performances, confere um peso maior de humanismo ao agiota judeu Shylock (Dan Stulbach), no seu confronto com o mercador Antônio (Cesar Baccan), quando este solicita um empréstimo para auxiliar o amigo Bassânio (Marcelo Ullmann) em sua pretensão amorosa relativa a Pórcia (Gabriela Westphal).

Tudo convergindo para um polêmico julgamento quando o mercador, na inadimplência da dívida, tem que se submeter à insólita e cruel fiança contratual de entregar a Shylock uma libra de sua carne, com risco da própria vida.

Neste coeso e qualitativo elenco ficando dificil ressaltar a atuação personalizada de cada um deles em papéis de importância sequencial e alterativa, mas não há como deixar de destacar a estelar atuação de Dan Stulbach em seu convicto tom confessional, pleno de verdade interior e de consistente intensidade performática no domínio do palco.

Entre muitas subtramas vale indicar a espontaneidade dos atores Cesar Baccan e Marcelo Ullman no equilibrio expressivo entre suas ambições mercantilistas e egocêntricas e a ligeira conotação de um relacionamento gay, inédito na textualidade da peça. Além do cast  feminino, com seguras atuações de Gabriela Westphal, Marisol Marcondes e Rebeca Oliveira.

Mas é a irrepreensível direção concepcional de Daniela Stirbulov que faz deste Mercador de Veneza um espetáculo revelador, por sua potencial transposição cênica de uma clássica comédia dramática, entre a tradição e a modernidade. Que pode até não agradar aos irredutíveis puristas por sua proposta inovadora mas  que, através de seu alcance carismático palco/plateia, simboliza, sem dúvida alguma,  um investimento estético capaz de dignificar o atual panorama do teatro em moldes brasileiros...  

 

                                           Wagner Corrêa de Araújo


O Mercador de Veneza está em cartaz no Teatro Nélson Rodrigues/Caixa Cultural/RJ, quinta às 19h; sexta às 20h; sábado e domingo, às 18h, de 22 de maio a 15 de junho/2025.

O SOM QUE VEM DE DENTRO : SOB UMA INTIMISTA CONEXÃO ENTRE A FICÇÃO LITERÁRIA E A VERDADE TEATRAL

 

O Som Que Vem de Dentro. Adam Rapp/Dramaturgia. João Fonseca/Direção Concepcional. Maio/2025. Cláudia Ribeiro/Fotos.

 

O escritor Adam Rapp com nove romances publicados, roteiros para a televisão e adaptações cinematográficas, chegou à Broadway em 2020 com O Som Que Vem de Dentro, peça que teve seis indicações para os prêmios Tony e que, agora, chega aos palcos brasileiros.

Com artesanal direção de João Fonseca, a partir de acurada tradução de Clara Carvalho, tendo a participação de dois atores de gerações diversas. Além da presença da maturidade atoral de Gláucia Rodrigues, quem contracena com ela é um surpreendente ator jovem André Celant.

Em completa sintonia com uma dramaturgia reflexiva ao mesmo tempo plena do compasso psicofísico de um thriller, sob o metafórico sotaque de um enigmático silêncio, como se os espectadores estivessem ali absortos apenas para  escutar a leitura de uma narrativa ficcional, pontuada pela melancolia e pela solidão de seus dois personagens autorais.

Enquanto, Bella Baird (Glaúcia Rodrigues), professora universitária de texturas literárias e também escritora com livros publicados, após um prólogo no formato de um monólogo, em que fala sobre o Dostoievsky de ‘’Crime e Castigo”, com seu personagem protagonista desdobrado em assassino, junto à revelação do diagnóstico dela ser portadora de um câncer terminal sinalizando, aqui, através destes fatos, uma possível decifração para o sequencial mistério desta  trama dramática.  


O Som Que Vem de Dentro. Adam Rapp/Dramaturgia. João Fonseca/Direção Concepcional. Gláucia Rodrigues e André Celant/Protagonistas. 


Entre outras citações literárias estrangeiras às quais a presente versão soube, por bem,  incluir passagens simbólicas de Machado de Assis a Clarice Lispector. Até ser interrompida por seu estranho e ensimesmado aluno Christopher Dunn (André Celant) que, fora de qualquer marcação prévia,  adentra pela sua sala.

Fazendo com que a  perturbadora invasão da privacidade de Bella vá, num crescendo, se transmutando em contato identitário de recíproca paixão intelectual. Longe de qualquer prevalência sexual, entre o processo criador de uma romancista cujo último livro, de anos atrás, Christopher acabou de ler, despertando ainda mais o sonho de se tornar, como ela, um escritor.

Onde a evocativa paisagem cenográfica (Nello Marrese) é traduzida na visão frontal de espectros de árvores cobertas pelo branco da neve, tendo à sua frente a sala de estudos da professora, no entremeio de uma estante sugestionando livros raros, enquanto os atores usam uma cotidiana indumentária invernal (Marieta Spada).

E na qual sutis e delicados efeitos luminares (Daniela Sanchez) irradiam uma ambiência climática que confunde ficção e realidade, teatro e literatura, alegria e tristeza, vida e morte. Especularmente refletidos na performance sempre envolvente dos dois intérpretes, comandados pela luminosa direção concepcional de João Fonseca.

Sabendo como equilibrar em sua proposta uma magia dialogal entre duas paralelas manifestações estéticas, fluindo do imaginário das páginas ficcionais aos seus desdobramentos presenciais na corporeidade e na vocalização dos dois convictos atores no preenchimento da caixa cênica.  

Gláucia Rodrigues se impondo no intrigante papel de uma mestra de literatura da sala de aula às inventivas páginas de um romance seu, sendo cativante em sua forma de expressar o orgulho de tudo que alcançou em sua dúplice trajetória, sentindo-se solitária em seus cinquenta anos, mas nunca deixando de ser compassiva com as oscilações comportamentais do personagem jovial de André Celant, o aluno e pretenso escritor.

Este por sua vez, diferencial na sua não dependência às plataformas digitais, vai transmutando seu isolamento discricionário e a teimosia próxima de um nerd mal saído da adolescência, impressionando pela sua representação verbal e gestual, ora do visionário talento de um ator, ora próximo a um ambíguo contador de histórias.

Os dois atores num simbiótico jogo teatral acabando por embaralhar a compreensão do público, em variados níveis mentais direcionando-o a uma indecifrável conclusão comum ou às múltiplas verdades de cada espectador quanto às expectativas de um previsível ou de um inesperado epílogo.

Ecoando, afinal, a precisa reflexão de Roland Barthes, no livro “A Morte do Autor”, podendo esta ser direcionada tanto à literatura como ao teatro : “Será sempre impossível sabê-lo, pela boa razão de que toda a escrita é ela própria essa voz especial composta por várias vozes indiscerníveis”...


                                                       Wagner Corrêa de Araújo   

                                                

O Som Que Vem de Dentro está em cartaz no Teatro Gláucio Gil/Copacabana, de sábado a segunda-feira, às 20hs, até 02 de Junho.

NOVO FLUXO : A INTERATIVIDADE COREOGRÁFICA - URBANA / CONTEMPORÂNEA - EM MAIS UMA SINGULARIZADA CRIAÇÃO DA CIA HÍBRIDA



Novo Fluxo/ Cia Híbrida. Renato Cruz/Direção Concepcional/Coreográfica. Maio/2025. Renato  Mangolin/Fotos.


Na proximidade de suas quase duas décadas, a Cia Híbrida vem se destacando pelo sotaque diferencial que sempre imprime, através de seu idealizador, diretor e coreógrafo Renato Cruz, à dança urbana. E é este signo estético que retorna, com a habitual pulsão, na sua última criação titulada Novo Fluxo.

Onde ele transcende a linguagem generalizada dos diversos segmentos das danças urbanas através do dimensionamento dos caracteres estilísticos básicos do gênero, sob um tratamento que remete aos avanços da contemporaneidade coreográfica.

E por isso mesmo é que, já há algum tempo, Renato Cruz vem se especializando, nesta busca de novas confluências de surpreendentes linguagens artísticas, em residências que vão além-fronteiras, especialmente no circuito de reconhecidos centros coreográficos da capital francesa.

Dividindo-se entre participações que vão do Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro, a atuações em Paris, passando por diversos estágios e temporadas  no Le Centquatre, no Parc de la Villete, ou no Carreau du Temple.


Novo Fluxo/ Cia Híbrida. Renato Cruz/Direção Concepcional/Coreográfica. Maio/2025. Renato  Mangolin/Fotos.


Tendo estreado, simultaneamente em 2023, no Teatro do Oprimido de Paris e no Centro Coreográfico carioca, em parceria criativa com a Cie Gelmini, do diretor/coreógrafo Gustavo Gelmini, sediada inicialmente no RJ e desde 2019 em Paris, o espetáculo Pulso. E, agora, a Cia Híbrida  promove outro circuito paralelo - RJ/Paris - com o seu mais recente espetáculo - Novo Fluxo.

“A repetição é um modo poderoso de intensificar a emoção interna e, ao mesmo tempo, criar um ritmo primitivo que é, por sua vez, um modo de chegar a uma harmonia primitiva em toda forma de arte”. Significativas palavras do artista russo-alemão Wassily Kandinsky que podem ser um referencial para o processo do desenvolvimento coreográfico de Novo Fluxo.

Ao conectar, metaforicamente, os traços geométricos circulares de sua pintura abstracionista, plena de ininterrupta energia e movimento, à idealização concepcional, dirigida e coreografada por Renato Cruz, sem jamais impedir a espontânea e livre atuação de seus intérpretes / criadores.           

Ao se iniciar este espetáculo seus sete convictos performers-dançantes (Fábio Max, Jefte Francisco, Josh Antonio, Maju Freitas, Rayan Sarmento, Tamara Catharino e Yuri Tiger), na imobilidade de sua fixa corporeidade vão, aos poucos, entre pausas respiratórias e expressões faciais, liberando uma sequencial fragmentação gestual.

Que repercurte um estado de psicofisicalidade, na manifestação sensorial de que cada um daqueles instantâneos movimentos de mãos, braços, pernas, ombros, estão fluindo num contexto libertário para uma integrada representação social e racial de artistas, com prevalente origem nas comunidades marginalizadas.

Enquanto antecipa, entre potenciais efeitos de sombras e luzes (Renato Machado e Diego Diener), um recorte cênico daqueles simbólicos sinais, ampliados em projeções luminares quase psicodélicas,  extensivo à tipicidade de sua indumentária cotidiana, através de uma corporeidade energizada e transgressora.

Onde a contribuição dos efeitos sonoros, de andamentos eletro acústicos (Lucas Marcier e Gabriel Amori), evolui em progressão crescente com sutis acordes rítmicos, acentuando outra particularidade nesta proposta-performance de dança urbana, fazendo com que esta se manifeste sob traços subliminares de dança contemporânea.

Afinal é como bem define Novo Pulso, em poético jogo de aliterações vocabulares, seu mentor estético Renato Cruz:

Novo é o fluxo que des-agua na cena que constrói o porvir. Con-fluenciar, com-partilhar, para co-existir. Comunicar com o corpo aquilo que a palavra não dá conta. E como um rio que  rende ao se juntar a outros rios (Antonio Bispo), experimentar a potência de encontrar outros caminhos (Aylton Krenak)”...

 

                                             Wagner Corrêa de Araújo



Novo Fluxo / Cia Híbrida de Dança estreia em Paris, no próximo dia 14 de maio, voltando ao cartaz no Centro Coreográfico do RJ, nos dias 30 e 31 de maio, depois de sua pré-estreia no Espaço Sérgio Porto, no último final de semana de abril.

DIAS FELIZES : EM INCISIVA CONCEPÇÃO PELO ARMAZÉM COMPANHIA DE TEATRO SOB A ESTÉTICA APOCALÍPTICA DE BECKETT





Dias Felizes. Armazém Companhia de Teatro. Paulo de Moraes/Direção. Patrícia Selonk/Protagonista. Maio/2025. João Gabriel Monteiro / Fotos.


Dias Felizes (1961), é considerada, depois de Esperando Godot (1952) e de Fim de Partida (1957), como a  terceira peça do irlandês de natalidade e francês por adoção Samuel Beckett que, ao lado destas, acabou por torná-lo conhecido, decisivamente, pela instauração em sua dramaturgia de uma prevalente  estética do absurdo.

Já residindo na França, ele ali, começou a escrever suas peças em francês, caso de Esperando Godot (En Attendant Godot) mas sem deixar de lado versões inglesas, como foi no caso de Dias Felizes, apelidada ora como Happy Days ora pela nominação de Oh les Beaux Jours, inspirada por um poema de Paul Verlaine.

Marcado pelo sotaque de negativismo, amargura e de um assumido pessimismo em suas obras anteriores, Beckett a partir de um questionamento sobre se não conseguiria escapar desta tendência imprimindo alegria e esperança a uma peça sua, acabou por escrever Dias Felizes.

Que, por uma espécie de mordaz ironia, foi classificada como uma comédia trágica, em que o frenético anseio de sua personagem na busca do sentido e do alcance de um cotidiano feliz nunca chega ao fim. Na implacável perenidade do difícil suporte da condição humana sendo direcionada sempre a uma fatalista solução terminal.


Dias Felizes. Armazém Companhia de Teatro. Paulo de Moraes/Direção. Patrícia Selonk/Protagonista. Maio/2025. João Gabriel Monteiro / Fotos.


Onde na versão da Armazém Companhia de Teatro, sob a artesanal direção concepcional de Paulo de Moraes, prevalece a controvertida situação existencial de Winnie (Patrícia Selonk), uma mulher comum que então surge da cintura para cima na primeira parte e, depois, apenas com a cabeça, nas duas situações numa metafórica sugestão de estar cercada por terra de todos os lados.

Numa intrigante paisagem desértica e solar tentando, com seu ininterrupto solilóquio, encontrar algum eco em Willie seu indiferente marido. Cuja representação mais performática, lacônica e quase silenciosa, é alternada, durante a temporada de Dias Felizes, por três atores da Cia - Felipe Bustamante, Isabel Pacheco e Jopa Moraes.  

A partir de uma acurada tradução de um de seus intérpretes (Jopa Moraes) com sutis mas oportunas atualizações textuais, transmutando a original climatização narrativa no entorno de uma época muito próxima à eclosão da ameaça nuclear pelo risco, hoje cada vez mais ascendente, de uma catástrofe ambiental.

Extensiva à citação de referenciais citações literárias e musicais à contemporaneidade brasileira. Tudo isto dimensionado em precisa adequação e sem qualquer perda do enfoque original da obra beckettiana. Concorrendo para isto a sombria plasticidade visual cenográfica sob pós-apocalípticas tonalidades de desolação (Carla Berri e Paulo de Moraes).

Completada ali por uma cotidiana e, ao mesmo tempo,  atemporal indumentária (Carol Lobato) em seus reflexos especulares de uma ambientação que pode se referir tanto aos anos cinquenta como ao século XXI e até a um hecatombica paisagem futurista. Ampliada da envolvência dos psicodélicos efeitos luminares (Maneco Quinderé) e projeções virtuais às impactantes sonoridades eletroacústicas (Ricco Viana), pautadas entre acordes ora soturnos, ora energizados.

E visceralmente interpretada por uma extasiada Patrícia Selonk como Winnie, capaz de saber transitar sob compasso ritualista, em convicta expressão psicofísica, vocal e gestual, entre as frustradas sensações de uma mulher desiludida e solitária e a esperança de que aquele possa, afinal, ser ainda um dia feliz. Manipulando objetos de maquiagem retirados de uma bolsa, ao aprontar-se para uma saída sem saber o porquê ou para onde.

Surpreendendo ao encontrar um revólver ou abrindo nervosa um guarda-sol, no contraponto da quase espectral ausência de um espontâneo rastejar selvagem do marido Willie (na reestreia da peça com o ator Felipe Bustamante, numa total entrega ao seu bem ensaiado papel) limitando-se a entregar-lhe um jornal enquanto mal chega a balbuciar palavras incompletas.

A vigorosa transposição cênica imprimida por Paulo Moraes tornando mais avassaladora a “intuição do absurdo”, assim configurada pelo próprio Beckett ao definir a peça, enquanto a investigativa decifração do enigma proposto provoca, questiona, faz refletir, irradiando-se na cumplicidade da plateia ao sugestionar, do riso ao drama, um “dia feliz’ para quem realmente gosta  de Teatro com T maiúsculo ...  

                         

                                                Wagner Corrêa de Araújo



Dias Felizes está em cartaz no Espaço Armazém/Fundição Progresso/Lapa, de quinta a sábado, às 19h30m; domingo às 19h, até 18 de maio

DIA INTERNACIONAL DA DANÇA - UMA DATA PARA NÃO SER ESQUECIDA




Maria, Maria. Grupo Corpo. Oscar Araiz/Coreografia. 1975/Palácio das Artes. José Luiz Pederneiras/Foto.



A partir da comemoração em 2025 de meio centenário do Grupo Corpo, com sua brilhante estreia no Grande Teatro do Palácio das Artes (BH) que, então, acompanhamos passo a passo, e tentando decifrar o enigma de tão singular conexão afetiva, decidi fazer esta viagem pelos espaços siderais da mente no decorrer deste Dia Internacional da Dança.

Passando por tantos momentos vivenciais e profissionais cinquentenários que acabaram por se transmutar nesta paixão desenvolvida, a princípio em plenos anos 70, quando já atuava como um jornalista especializado em cultura, coordenando ali um centro de documentação e artes visuais.

Que acabou resultando na criação da Sala de Cinema Humberto Mauro, também próxima de completar seus 50 anos, depois de improvisadas sessões didáticas com filmes 16mm que organizávamos, especialmente para a Escola de Dança e para o Balé do Palácio das Artes, dirigido pelo inesquecível Carlos Leite.

E na proposta de entrevistar a maioria dos artistas que passavam por aquela conceituada Fundação cultural mineira, aos poucos  tomando um contato mais de perto com grandes nomes da dança brasileira e mundial, integrantes das cias que se apresentavam no seu grande palco.


Tatiana Leskova e Wagner Correa. Num dos incríveis encontros com esta Grande Dama da Dança Clássica . Final dos anos 90. Foto acervo particular.  


Naqueles oito anos conheci de perto inúmeros coreógrafos e bailarinos europeus, americanos e brasileiros, em tempos ainda sem a internet, chegando a estender estes contatos, em cartas e postais, além das temporadas que, por vezes, eram mais longas como as do Het National Ballet.

Tais como um dos seus coreógrafos Rudi van Dantzig ou da Pilar Lopez Cia de Danza, ela que me fascinou ao relatar suas parcerias coreográficas com Federico Garcia Lorca em suas turnês teatrais espanholas. Sem esquecer da polêmica primeira atuação no Brasil de Mikhail Baryshnikov que, recusando-se a participar de nosso habitual depoimento, respondeu secamente – “não quero ser crucificado mais uma vez”...

De BH partimos, em 1982, para a antiga TVE/RJ onde houve outra diferencial pulsão, através do Caderno 2 e de alguns especiais coreográficos que dirigimos, ora sobre o Balé do Teatro Guaíra ou, então, sobre os Festivais de Joinville e do Pantanal. Tendo no final dos anos 80, graças à grande amizade, extensiva até sua definitiva partida, com a crítica Suzana Braga, integrado alguns júris de dança contemporânea e podendo reviver as sessões cinematográficas didáticas naqueles festivais.

Para, depois do privilégio de muitas vesperais de domingo, com a histórica, sempre memorial e ainda presencial Tatiana Leskova, aumentar um contato assíduo e cada vez mais crescente com tantos nomes fundamentais da dança contemporânea carioca e brasileira, de ontem, de hoje e de sempre.

Para confluir, em despretensioso mas antes de tudo convicto, exercício da crítica das artes cênicas, indo do teatro à dança, tentando preencher um espaço cada vez mais rareado em nossos dias, da imprensa escrita às mídias virtuais, com a intenção de, pelo menos, registrar este legado coreográfico sob o desafio de um assumido empenho, direcionado à valorização de seus heroicos mentores.

O que produziu um inesperado retorno de caráter documental depois de dois anos da criação de uma coluna dedicada exclusivamente à dança em moldes brasileiros (Brazil Dance Reviews) na prestigiada revista virtual francesa danse.org, por especial convite do bailarino, coreógrafo e crítico franco-americano Patrick Kevin O’Hara.

Numa surpresa feliz ao saber, através de seu idealizador, que todas as publicações, incluídas as fotos e os extratos em vídeo, dos colunistas-críticos de sete países, passariam a fazer parte permanente do primeiro e inédito acervo coreográfico virtual da Biblioteca Nacional da França, disponível em nível mundial para pesquisadores da dança.

E é por tudo isto que não tenho como deixar de  comemorar mais um Dia Internacional da Dança, fazendo da dedicação espontânea e resistente de quem sempre foi  irrestrito admirador das obras coreográficas, um tributo a favor de todos aqueles que escolheram, em meio a tantas adversidades, a Dança como uma missão de arte e de vida...

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo


Mikhail Baryshnikov, Carlos Leite e Wagner Correa. 1980. Foto dos arquivos históricos do Palácio das Artes (BH). 

AS PEQUENAS COISAS : REMISSIVA CONEXÃO EMOCIONAL ENTRE TRÊS CONTRADITÓRIAS VIDAS FEMININAS


As Pequenas Coisas. Daniel MacIvor/Dramaturgia. Inez Viana/Direção Concepcional. Abril/2025. Thais Grechi/Fotos.


O dramaturgo canadense Daniel MacIvor tornou-se bastante conceitualizado em nossos palcos a partir, especialmente, de sua peça In on It, ao lado de outras  obras suas, também aqui representadas, como Cine Monstro, À Primeira Vista e A Ponte. 

Parte de seu tríptico dramatúrgico Try, original da segunda década deste século, tendo como foco trajetórias existenciais contraditórias de mulheres em processo de reconciliação simultânea entre elas, As Pequenas Coisas tem, agora, sua primeira e inédita montagem no País.

Sugestionada em ideário dúplice pelas atrizes Liliane Rovaris e Ana Carbatti, inspirando-se a partir da leitura da trilogia feminista de MacIvor  - Communion, Was Spring e Small Things - num processo de escolha que levou a esta última, dimensionado por artesanal tradução de Ana Carbatti.

Ambas acabando por integrar o elenco completado por  Adassa Martins, sob mais uma acurada direção concepcional de Inez Viana, tendo a valiosa participação de uma equipe artística feminina. Com algumas craques do universo teatral carioca, a saber, Denise Stutz (Movimento), Marieta Spada (Cenografia) Lara Cunha (Luz) e Aline Gonçalves (Música).

A trama dramatúrgica reune mulheres de diferente nível geracional e social encontrando-se por um destes acasos do destino, quando inicialmente Patricia (Ana Carbatti) uma professora aposentada, aparentemente rica, culta e conservadora, escolhe uma simplória governanta Nice (Liliane Rovaris) para cumprir tarefas domésticas.  


As Pequenas Coisas. Daniel MacIvor/Dramaturgia. Inez Viana/Direção Concepcional. Abril/2025. Thais Grechi/Fotos.


No decorrer da narrativa, enquanto vão se revelando os caracteres contrastantes de cada uma delas, o autoritarismo advindo de uma assumida sapiência de seus anos de magistério e a aparente paciência que esconde uma irrestrita teimosia no falatório da “empregada”, é revelada a terceira personagem através de sua intrigante filha Bel (Adassa  Martins).

Esta, por sua vez, por ter tido um filho que desde cedo foi identificado como uma criança transgênero, mostra-se, em sua conscientização por aceitar isto, como menos instável e mais madura que as outras duas, tornando-se, entre as três, a mais maleável e capaz até de fazer rir o espectador.

E na sua busca de energização afirmativa encontra culminâncias nas discussões conflituadas com a mãe e na divertida cena em que, depois de se oferecer como substituta da mãe ausente, convence a velha professora a se animar mais experimentando cannabis,  suprindo para melhor sua dependência emocional no lugar de seus habituais drinks alcoólicos .

O minimalismo cenográfico (Marieta Spada), preenchendo o espaço arena com poucos elementos materiais, incluída a indumentária cotidiana, sob uma ambientação de luzes mais vazadas (Lara Cunha) faz com que prevaleça um clima gestual psicofísico  (Denise Stutz) capaz de ser afinado, num sotaque subliminar crítico/reflexivo,  pela precisa direção de Inez Viana.

Não podendo deixar de ser destacada a trilha musical (Aline Gonçalves) ao privilegiar a interveniência sonora de cegos do Instituto Benjamin Constant, além da expressiva e tocante cena da audição de acordes schubertianos, num simbólico recital que procura conciliar classes sociais e gostos musicais, sob a envolvência interativa  atrizes/espectadores.

Onde a evocação de temas tão caros aos nossos dias como a misoginia e o etarismo, o preconceito decorrente do livre identitarismo sexual às discriminações sociais, além do androcentrismo privilegiando sempre o domínio masculino, encontram o devido eco nas três personagens.

Desde a convicta entrega de Ana Carbatti ao seu papel com irrepreensível presença dramática, ao lado de uma contundente e ao mesmo tempo sóbria sustentação de Liliane Rovaris para seu personagem, enquanto Adassa Martins surpreende ao deslocar sua atuação para uma linha mais irônica e lúdica que descontrai o clima da performance.

Tudo convergindo para a devida classificação de As Pequenas Coisas como uma comédia dramática e, afinal, pela tão acertada definição da sua diretora Inez Viana : “A peça nos conta sobre como podemos rever a partir de encontros inusitados e lidar com eles, para que tenhamos novas revelações sobre nós mesmas”...

 

                                              Wagner Corrêa de Araújo



As Pequenas Coisas está em cartaz no Arena/Sesc/Copacabana, quinta a sábado, às 20hs; domingo às 18hs, até o dia 11 de maio.


A VIÚVA ALEGRE : A MAIS GLAMOUROSA CRIAÇÃO DE FRANZ LEHÁR ABRE A TEMPORADA 2025 DO MUNICIPAL CARIOCA



A Viúva Alegre. Opereta/Franz Lehar. André Heller-Lopes/Direção Concepcional. Abril 2025. Daniel Ebendinger / Fotos.


Inspirada numa típica comédia parisiense de 1861 - "O Adido da Embaixada", por Henri Meilhac, a opereta A Viúva Alegre, estreada em 1905, tornou-se a mais popular de todas as obras do compositor germânico/austríaco Franz Lehár. Que, a partir daí, ficou conhecido como um dos maiores experts neste lúdico gênero musical.

Além da composição ser celebrada como um clássico do cinema silencioso, na versão 1925 de Erich von Stroheim, ao seu grande êxito de crítica e público na atuação da dupla Maurice Chevalier e Jeanette MacDonald, na era dourada da opereta fílmica americana. Sendo referenciada, ainda, como musical da Broadway e em variadas adaptações para os palcos coreográficos.

Pelo dimensionamento estético desta opereta, situada numa musicalidade cantada e dançada no entremeio de  valsas e acordes romantizados, paralelamente às suas inúmeras partes faladas tal qual uma burleta ou comédia musical ligeira, tornou-se comum uma liberdade maior na ampliação de seu contexto falado.

O que faz com que sua duração possa alcançar, às vezes, até quarenta minutos a mais, mesmo diante do risco de que torne menor a prevalência da música, tornando-se isto usual nas suas representações contemporâneas. O que vai depender, evidentemente, do ritmo imprimido pela singularidade das opções de sua direção cênica.

Nesta atual produção da opereta na abertura da temporada 2025 do TMRJ, sob entusiasta e diferencial concepção cênica de André Heller-Lopes, utilizou-se o legado da textualidade autoral do dramaturgo carioca Arthur de Azevedo, original de 1908, mais proeminente na letra das canções, com inserções atualizadas no enredo e maior independência nas passagens faladas.


A Viúva Alegre/Franz Lehar.Felipe Prazeres/Direção Musical. André Heller Lopes/Direção Cênica.

 

O que não conseguiu impedir um certo fastio na extensão da montagem, provocado pela perceptível dificuldade de apreensão de falas isoladas em sua integralidade, numa caixa cênica apresentando limitações acústicas, provocando reclamações de espectadores, mas não extensível às canções acompanhadas de suas respectivas legendas.  

Ao lado de um preciso cuidado imprimido à leveza lúdica da partitura pelo regente titular Felipe Prazeres frente à OSTM, paralelo às intervenções vibrantes de parte do Coro e de bailarinos dos corpos estáveis. Numa bem ensaiada coreografia (Rodrigo Neri) indo de valsas a danças de cabaré, havendo especiais destaques no protagonismo de seu staff vocal.

Com maior convicção e equilíbrio no papel titular de uma espirituosa e cativante viúva Hanna - pelo soprano Gabriela Pace - e da energizada fluência do Conde Danilo, na personificação do barítono Igor Vieira, ambos empenhando-se tanto em suas atuações vocais quanto atorais, com potencial química nas árias (Vilja Lied), como nos duetos amorosos (Lippen  Schweigen), na luminosidade da cena do ato final ao revelar a reconciliação de uma paixão reprimida.

Transitando bem, ainda, na agitada performance de uma farsa jocosa entre o engraçado fingimento e as traições, através dos personagens Barão Zeta, o embaixador pontevedriano (tenor Fernando Portari), Camille (tenor Ricardo Gaio) e Valencienne (soprano Carolina Morel), além da bem humorada atuação, em papel meramente teatral, da conhecida atriz Alice Borges.

Cabendo ressaltar a elegante luxuosidade dos figurinos  (Marcelo Marques), sob um subliminar sotaque atemporal conectando a Belle Époque à contemporaneidade. Tudo ambientado numa vistosa caixa cênica (Renato Theobaldo), preenchida por alusões a interiores e jardins com sutis toques aristocráticos, extensiva aos ambientes cabaret, sendo amplificados nos efeitos luminares de Paulo César Medeiros.

Do Chez Maxim parisiense a uma plasticidade de proposital intenção metafórica, ao lembrar o glamour dos cassinos e revistas cariocas dos anos nostálgicos de glória, e por visibilizar uma charmosa cena parodiando a cinematográfica brasilidade de uma "viúva alegre" sugestionando Carmen Miranda, com seu alegórico turbante de frutas tropicais, cercada por bananas gigantes.

Em mais esta volta da “Viúva Alegre” ao Municipal, vale registrar, aqui, uma dúplice e incrível curiosidade histórica sobre a obra : enquanto Hitler era um fã absoluto da opereta, Richard Strauss não disfarçava o ciúme diante do seu sempre ascendente sucesso popular, definindo ironicamente Franz Lehár -seu melhor talento é para o kitsch”- para completar, em 1940 : “Ainda hoje aos 75 anos, a valsa da Viúva Alegre sempre me dá um acesso de raiva”...

 

                                          Wagner Corrêa de Araújo


A Viúva Alegre, opereta, está em cartaz no TMRJ, desde quinta 17 de abril, em dias e horários e diversos, até o domingo, 27/04.

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