O PAPEL DE PAREDE AMARELO E EU : MULTIFACETADA DRAMATURGIA DE DENÚNCIA ENTRE O TEATRO FÍSICO E A PALAVRA LITERÁRIA

O Papel de Parede Amarelo e Eu. Alessandra Maestrini e Denise Stoklos/Direção Concepcional. Agosto/2025. Com Gabriela Duarte. Priscila Prade/Fotos. 

 

O Papel de Parede Amarelo é considerado precursor da literatura feminista, ao desafiar o moralismo conservador da sociedade patriarcal, tornando o livro de 1892, da escritora norte-americana Charlotte Perkins Gilman (1860-1935) um icônico símbolo de previsão das sequenciais lutas emancipatórias da mulher.

Tendo inspirado, especialmente a partir do início do terceiro milênio, variadas versões cinematográficas, entre curtas e longa metragens, além de adaptações para os palcos no formato dramatúrgico e até operístico, incluindo aqui, neste gênero uma recente criação tcheca de 2024.  

Todas estas adaptações usando uma titularidade homônima ao celebrado conto, dando espaço também a um diversificado teatro de apelo coreográfico dividindo a narrativa entre a performance de uma bailarina e de uma atriz, ora com projeções cinéticas e atuação atoral, ou então por uma cantora solista em obra musical de câmera.

E, entre nós, pelo alcance da original autoridade cênica-direcional de duas absolutas representantes femininas de um teatro brasileiro conectado aos mais inventivos avanços da contemporaneidade dramatúrgica - Alessandra Maestrini e Denise Stoklos - no espetáculo nominado O Papel de Parede Amarelo e Eu, tendo como protagonista uma convicta e diferencial Gabriela Duarte no primeiro monólogo de sua trajetória como atriz.


O Papel de Parede Amarelo e Eu. Alessandra Maestrini e Denise Stoklos/Direção Concepcional. Agosto/2025. Com Gabriela Duarte. Priscila Prade/Fotos. 


Em imersivo mergulho na narrativa de Charlotte Perkins, com subliminar recorte biográfico-intimista, de uma rompante personagem demonstrando sua rebeldia, frente ao dúplice autoritarismo de um marido e médico. Na prescrição imaginária da cura de sintomas histéricos, pelo isolamento total em enigmático quarto/cela, circundado em suas paredes por um decrépito papel amarelo.

Sugestionado pela ambiência soturna de uma caixa cênica (Márcia Moon), ocupada pela imagética figuração simultânea de cama-mesa atrás de uma grade de metal, frontalizando um mural/parede desbotado. Onde as tonalidades amarelas transparecem pela queda contínua, no compasso de uma chuva, de fragmentos de papel e tecidos desabando sobre o palco.

Ressaltados cenograficamente em efeitos de luzes psicodélicas (Cesar Pivetti) alternadas por sufocantes sombras que referenciam o clima de terror claustrofóbico de um thriller, transmitindo palco-plateia uma inquietante provocação sensorial.

Ampliada em multifacetadas expressões de susto e de ansiedade da atriz confrontadas, por vezes, numa assumida ingenuidade facial, entre risos e caretas, tudo convergindo para um chamativo visagismo (Wilson Eliodorio),  propiciado sob  vistosa peruca ruiva (Feliciano San Roman) e uma quase fetichista indumentária (Leandro Castro) vermelho sanguíneo, contrastando numa aquarela pictórica, com as pinceladas cênicas amareladas.

A dúplice direção sendo imprimida por uma potencial ressignificação do teatro físico, paralela à vocalização textual em off pela própria atriz, conferindo, assim, à representação dramatúrgica, a tensão gestual de um corpo-linguagem dialogando com a afetiva vocalização pré-gravada da textualidade literária.

O que faz com que a performance de Gabriela Duarte, no silêncio de quaisquer interveniências musicais, seja carregada da consistência irradiada na compreensão do significado intimista da desolação de um personagem. Que ela atravessa no entremeio de uma perspectiva onírica como fuga ao pesadelo da ancestral repressão ao prevalecimento da condição feminina.

Isto tudo demonstrando a permanência oportuna de uma temática ficcional/metafórica de significativo eco libertário contra todas as formas de opressão e aprisionamento limitativo do pleno direito de ir e de vir da mulher, do final do século XIX aos dias de hoje.

Por intermédio de uma dramaturgia sólida que, pela extensiva capacidade experimental de suas atitudes criadoras, abre novas perspectivas estético/ideológicas para um teatro brasileiro de conscientização e denúncia que referencia, antes de tudo, sobre o necessário enfrentamento ao crescente risco do despertar de todos os tipos de retrocesso em escala mundial...

 

                                                  Wagner Corrêa de Araújo

  


O Papel de Parede e Eu está em cartaz no Teatro Prio/Jóquei/Gávea, de quinta a sábado às 20hs; domingo, às 18h, até 21 de setembro.

HAIR : MUSICAL EMBLEMÁTICO DOS ANOS 60 ECOANDO NA CONTEMPORANEIDADE SEU RECADO DE REBELDIA E ESPERANÇA

 

Hair. Charles Möeller e Cláudio Botelho / Direção Concepcional. Julho/2025. Caio Gallucci /Fotos.
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Ao estrear, em 1967, no New York Festival Shakespeare numa direção concepcional de Joseph Papp, este musical já no ano seguinte, sob a titulação definitiva como Hair, se tornaria um dos maiores fenômenos midiáticos não só por sua trilha sonora (Galt MacDermont) como por sua mensagem de rebeldia contra o establishment político americano em seu libreto (Gerome Ragni e James Rado). 

Este protesto especialmente provocado pela obrigatória convocação militar dos jovens para a Guerra do Vietnam, ao lado da então ascendente mobilização pacifista nominada Flower Power. Sob o envolvimento, imersivo e anárquico, do amor livre e do psicodelismo das drogas e do rock, através de uma filosofia comportamental denominada hippieE por uma rompante tendência usando temas roqueiros pela primeira vez no universo do teatro musical da Broadway, o que acabou levando aos seus palcos a chamada opera rock.

Ampliando seu alcance por intermédio da simbólica versão cinematográfica, em 1979, por Milos Forman, sem falar nas diferenciais montagens e releituras mundo afora até os nossos dias. Sendo que nos palcos brasileiros a primeira delas, foi no inicio dos anos 70, pelo diretor Adhemar Guerra desafiando os padrões da censura e da ditadura militar.

E, agora, voltando oportunamente ao cartaz, depois de sucessivos retrocessos comportamentais na (des)governança anterior e pelos riscos políticos atuais além fronteiras, numa dúplice retomada da peça quinze anos depois, pelo ideário sempre inovador da mais celebrada parceria carioca do teatro musical  - Charles Möeller e Cláudio Botelho.


Hair. G. Ragni/J. Rado/Dramaturgia. Galt Macdermot/ Música. Nicolás Boni/Cenografia. Caio Gallucci/Fotos.


Trazendo, desta vez, a surpreendente concepção cenográfica do argentino Nicolás Boni, um expert em espetáculos operísticos, sugestionando nos detalhes de seu décor arquitetônico um daqueles requintados teatros em processo de abandono, incluindo frisas de onde ecoam os lisérgicos acordes da trilha sonora, num conluio de vozes e instrumentos, sob os arranjos e direção musical de Marcelo Castro.  

Tudo direcionado a uma ambiência onírica sob potencializados efeitos luminares (Vinícius Zampieri), na retomada cênica da mensagem de protesto do musical com novas contextualizações. Via subliminares referências ao mundo de hoje inseridas nas letras de suas canções por Cláudio Botelho, extensivas às projeções cinético-documentais (Nicolás Boni, Plínio Hit, Alba Trapero) conectadas à contemporaneidade.

Paralelo ao psicodelismo nas cores vibrantes de indumentárias (Charles Möeller) com apelos tribalistas além da inspiração nominal na tipicidade dos cabelos masculinos, longos ou desgrenhados, se estendendo até os ombros, sequenciando um característico visagismo (Fernando Torquato) tornado signo de toda uma geração, com ressonância na fluidez energizada da corporeidade dançante (Alonso Barros).

Contando prioritariamente em seu afinado elenco com cerca de 30 integrantes, onde destacam-se pela peculiar personificação de tipos fundamentais entre protagonistas e coadjuvantes. Inserindo-se na narrativa em tom de denúncia e reflexão, no compasso da irreverência e do inconformismo, através de temas que se tornaram clássicos do rock - Aquarius, Let the Sunshine In, Good Morning Starshine, além da canção titular Hair.  

Pontuando-se em vigorosas performances solo desde o inconformado Claude (Eduardo Borelli) diante de sua repulsiva convocação para a guerra, incentivado pelos posicionamentos políticos radicalizados de Sheila (Estrela Blanco), ambos brilhantes em sua tessitura vocal.  Com certa limitação na  vocalização cantada, Rodrigo Simas enfatiza melhor sua atuação presencial no sotaque libertário do seu personagem Berger. Sem esquecer as tiradas irônicas de Thati Lopes, no papel da grávida Jeannie e da impetuosa figuração de Drayson Menezes para Hud.

Transmutando, ainda, na quebra da quarta parede em efusiva conexão palco/plateia, sob inédito experimento de avanços temáticos e musicais, para continuar fazendo de Hair, um convicto experimento estético de vida e de liberdade. Do seu emblemático legado de contracultura à conscientização pela denúncia política, em destemida oposição a  todas as formas de intolerância de ontem, de hoje e de sempre...

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo

 

Hair está em cartaz no Teatro Riachuelo/Cinelândia/RJ, quinta e sexta, 20h; sábado, 16h e 20h; domingo, 15h  e 19h, até 21 de setembro.

VEIAS ABERTAS 60 30 15 SEG. : OPORTUNO RECADO CÊNICO DE DENÚNCIA E RESISTÊNCIA SOB O COMPASSO PROVOCADOR DE UM TEATRO COREOGRÁFICO

 

    Veias Abertas 60 30 15 Seg. Carolina Lavigne/Pedro Kosovski/Dramaturgia. Marco André Nunes/Direção Concepcional. Julho/2025. Ligia Jardim/Fotos.


Em plenos anos 70, no entremeio de regimes ditatoriais que se estendiam em processo ascendente na América Latina, o escritor uruguaio Eduardo Galeano publicava um - livro Veias Abertas - que se tornou ideário para autênticos cidadãos/patriotas  que sempre se opuseram a todas as formas de exploração imperialista.

Inspirando-se na titulação da obra original Aquela Cia,  reconhecida como postulante de um teatro brasileiro esclarecedor em sua dialetação social, política e cultural com um tempo histórico conectado à atualidade, registra assim a passagem de seus vinte anos com a peça Veias Abertas 60 30 15 Seg.    

Outra vez reeditando a parceria de seus criadores, Marco André Nunes na direção concepcional e Pedro Kosovski em artesanal e inventiva dramaturgia dúplice, com a valiosa colaboração de Carolina Lavigne. Contando com um excepcional staff atoral, integrado por Carolina Virguëz, Juracy de Oliveira, Matheus Macena e Rafael Bacelar.

Onde Marco André Nunes assume uma desbravadora direção concepcional, sob a proposta performática de um corpo-linguagem caleidoscópico,  a partir de uma instigante dramaturgia de alcance latino-americano, indo além da temática exclusivamente pátria da trilogia carioca anterior, inicializada pela peça tornada emblemática como seu ponto de partida - Caranguejo Overdrive.


  Veias Abertas 60 30 15 Seg. Carolina Lavigne/Pedro Kosovski/Dramaturgia. Marco André Nunes/Direção Concepcional. Julho/2025. Em cena, Carolina Virguëz, Matheus Macena, Juracy de Oliveira e/ou Rafael Bacelar. Lígia Jardim/Fotos.


Em Veias Abertas na imersiva fluidez de uma gramática cênica sustentada pela contagem numérica de 80 cenas rápidas entre 60, 30 e 15 segundos, num conceitual dramatúrgico de instantaneidade das relações humanas, em característico ressignificado estético dos dias de hoje, com sua prevalente e irrestrita dependência às plataformas digitais.

Baseando-se em citação do livro de Eduardo Galeano e também referenciada por Gabriel Garcia Marquez, sobre o trágico episódio denominado “Massacre das Bananeiras” na Colômbia, 1928, promovido pelo exército do país junto à pressão de uma empresa americana United Fruit Company, em sua recusa ao atendimento reivindicatório dos operários locais.

Em diferencial manipulação da palavra e da corporeidade  por intermédio de uma sala com danças latinas, incluindo salsa, merengue, bolero, samba, através das aulas de uma professora (Carolina Virguez) para um afetivo casal de alunos na iminência de um pretendido laço matrimonial, sendo um deles  militar (Juracy de Oliveira em papel alternativo com Rafael Bacelar) e o outro operário (Matheus Macena) da referida multinacional.

No preenchimento de um retrato cênico (Aurora Campos e Marco André) disposto na imaginária plasticidade de um tablado de jogos, entremeado pela vivacidade aquarelada de máscaras e indumentárias típicas (Fernanda Garcia), sendo ressaltado em efeitos luminares ambientais (Renato Machado). Onde três atores se apresentam, ora na envolvência de performances coreográficas / vocais, ora sugestionando a violentação sanguinária de corpos submetidos a atos de tortura política.

E é na hora das núpcias, com a farda militar e o vestido de noiva, sob os acordes melodramáticos de clássicos do cancioneiro latino em substanciais arranjos da trilha ao vivo (Felipe Storino) e uma sensorial e energizada corporeidade gestual (Márcia Rubin) que acontece o morticínio coletivo.

Destacando-se a convicta entrega a uma despudorada transgressividade contrastante tanto no papel de Juracy de Oliveira como no de Matheus Macena, da pulsão machista a uma ironizada feminilidade visualizando os dolorosos desafetos de seus personagens.

Paralela a uma irradiante força performática imprimida por Carolina Virguëz, na autenticidade da sua identificação psicofísica sinalizada pela indisfarçável emoção sensitiva de uma atriz entre duas nacionalidades - Colômbia/Brasil.

Tudo, enfim, numa simbólica alegoria da opressão politica colonialista sobre os povos originários, traçada com sangue e alma pelo empenho de uma provocante e reflexiva criação teatral, em mais que oportuno investimento pela resistência estético/ideológica diante do risco especular de retrocessos políticos incentivados por falazes “patriotas”, daqui e de acolá, abaixo e acima da linha equatorial...

                        

                                         Wagner Corrêa de Araújo


Veias Abertas 60 30 15 Seg. / Aquela Cia. está em cartaz no Espaço Multiuso/Sesc/Copacabana, de quinta a domingo, às 20:30, até  domingo, 10 de agosto.

DZI CROQUETTES SEM CENSURA : O TRAJETO DE PRECURSOR PROJETO CÊNICO/MUSICAL - ANOS 70 - PELA LIBERTÁRIA EXPRESSÃO DA CORPOREIDADE MASCULINA

Dzi Croquettes Sem Censura. Ciro Barcelos/Dramaturgia e Direção Concepcional. Julho/2025. Ronaldo Gutierrez/Fotos.


Foi em plenos e sombrios anos da ditadura militar, precisamente em 1972, que Wagner Ribeiro e Lennie Dale tiveram a idéia de criar um grupo performático masculino, integrado por 13 atores-bailarinos-cantores, os Dzi Croquettes. Como uma forma de denúncia, em compasso dramatúrgico, aos progressivos abusos contra a liberdade de ação e de pensamento dos cidadãos brasileiros da época.

Indo mais longe ainda, numa avançada e corajosa expressão comportamental de uma livre e rebelde manifestação cênica da masculinidade, fora de quaisquer limites de censura em contraponto à resistência de um machismo tóxico e misógino.

Permitindo, assim, que cada um daqueles intérpretes assumisse, conscientemente, a representação de uma postura longe de amarras sociais, sempre de acordo  com o desejo intimista de cada um deles de aceitar e de conviver com as preferências de sua própria condição humana.

Seja através de seu gestual, de suas indumentárias, de suas falas, de suas ideias e de seu comportamento cotidiano na indentitaria escolha sexual de seus parceiros, ampliando-se isto tudo em sua irreverência quanto a ideários políticos, morais e religiosos priorizando, antes de tudo, uma liberdade de ser e de agir, dando vazão nacionalista aos movimentos mundiais da contracultura, vigentes a partir das década de 60/70. 



Dzi Croquettes Sem Censura. Ciro Barcelos/Dramaturgia e Direção Concepcional. Em cena, Ciro Barcelos e Daniel Suleiman. Julho/2025. Ronaldo Gutierrez/Fotos.

E é exatamente na passagem, pouco mais que cinquentenária do surgimento daquele revolucionário grupo teatral, num conturbado período de triste lembrança inclusive no que se refere às proibições e interferências na criação cultural e artística, que surge um referencial espetáculo - Dzi Croquettes Sem Censura, em oportuna direção concepcional de Ciro Barcelos.

Onde além deste ofício, em dúplice atuação como narrador e ator, no papel do bailarino norte-americano Lennie Dale, aqui retomando sua fundamental participação na histórica Cia, ao lado de uma trupe da nova geração teatral brasileira que, por sua vez, revive alguns nomes fundamentais dos Dzi Croquettes.

Destacando-se entre estes, o do jovem Ciro Barcelos (Daniel Suleiman), Bayard Tonélli (por Fernando Lourenção), Claudio Tovar (André Habacuque), como alguns dos poucos sobreviventes da trupe brilhando ainda em nossos meios teatrais.

Além de marcantes personagens que se celebrizaram ali, a saber Carlinhos Machado (por Akim), Paulette (Bruno Saldanha), Wagner Ribeiro (Juan Becerra). Sem deixar de citar os outros atores, alguns escolhidos por testes, afinal por uma busca investigativa no entremeio de aproximativas similaridades psicofísicas,  tais como César Viggiani, Kaiala (Nêga Vilma e Benê) e Feccini, fazendo Reginaldo de Poli.

A caixa cênica (Gabriele Souza) sob minimalista ocupação de elementos materiais, mostra frontalmente uma espécie de plataforma de madeira que ora serve para cenas domésticas da vida privada de uma comunidade de atores, ou se transforma no cenário de um show ao lado da sugestão da ocasional ambiência de um camarim, com penteadeira, cadeira e espelho.

A iluminação (Kaiala) variando entre claridades vazadas na primeira parte e efeitos quase psicodélicos na surpreendente cena do cabaré em Paris, ressaltando de um lado os figurinos (Ciro Barcelos) com uma tonalidade hippie no início da peça e a exuberância colorida de uma performance com a tipicidade destas noites num night clube gay no ato final da peça, incluindo-se ali os exageros burlescos da maquiagem (Shary Camerini). 

E é nestas cenas que o espetáculo sobretudo cresce, se comparado ao início onde não deixa de persistirem, em meio à convicta entrega de um elenco jovem, ocasionais inseguranças na espontânea e debochada desconstrução verbal e corporal da masculinidade sob um sotaque gay.

O que não acontece, em momento algum, na sequencial abordagem musical - coreográfica da temporada  parisiense,  através de uma diversificada exibição de ritmos dançantes, brasileiros, latinos e internacionais, do jazz e do samba ao rock, numa trilha sonora comandada por André Periné.  Que possibilita a envolvência de uma corporeidade dançante paralela a uma coesa unidade vocal, de um revelador elenco priorizado por uma performática jovialidade, anárquica e contestadora. 

Replicando o signo emblemático que marcou a instantânea trajetória de uma cia que se dispersou após esta turnê, na impossibilidade imposta pela censura ditatorial de continuar nos palcos brasileiros. Mas que deixou, sem dúvida alguma, um legado precursor contra todas as formas de opressão, no enfrentamento da tentativa de silenciar a livre expressão da diversidade sexual e da plenitude filosófica e política do pensamento...      

                                          

                                              Wagner Corrêa de Araújo


 

Dzi Croquettes Sem Censura estreou em São Paulo, julho 2025, devendo seguir para Belo Horizonte e outras capitais, terminando com uma grande temporada popular, entre setembro e outubro, no Rio de Janeiro . 

OS PESCADORES DE PÉROLAS : SOB UM ORIENTALISMO OPERÍSTICO À FRANCESA, TMRJ CELEBRA O SESQUICENTENÁRIO DA MORTE DE BIZET

 

Os Pescadores de Pérolas. Ópera de G. Bizet/TMRJ. Julianna Santos/Direção Concepcional. Luiz Fernando Malheiro/Regência . Ludmilla Bauerfeldt /Protagonista feminina. Julho/2025. Daniel Ebendinger/Fotos.


Considerada a segunda ópera mais conhecida de Georges Bizet, ainda que sem o alcance popular da Carmen, Os Pescadores de Pérolas teve uma trajetória limitada desde a sua polêmica estreia em 1863. Criticada à época, com ferina ironia, pelo Le Figaro - “Não havia pescadores no seu libreto, nem pérolas em sua música”- e friamente recebida pelo público foi relegada ao esquecimento.

Voltando ao repertório apenas tempos depois da morte prematura de Bizet, após passar por algumas revisões em seu libreto e na sua estrutura musical, com a inclusão de temas retirados de outras óperas suas não bem sucedidas, recurso a que já tinha recorrido o seu próprio compositor.  

Através de uma narrativa equivocada até para os padrões operísticos vigentes então, com uma história de reviravoltas quase ingênuas que abrangem sua temática e seus personagens, alcançando culminância em seu novelesco final.

Onde uma comunidade de pescadores de pérolas nos mares do ancestral Ceilão e o respeitado aldeão Zurga, escolhido por eles como líder,  aguardam a vinda de Leila, mulher virgem considerada  figura mística, uma espécie de emissária do deus da Índia - Brahma.


Os Pescadores de Pérolas/TMRJ. Barítono Vinicius Atique (Zurga) e tenor Carlos Ullán (Nadir). Julho/2025. Daniel Ebendinger/Fotos.


Por outro lado, nesta sua volta à aldeia, Zurga reencontra um amigo de infância Nadir, ambos celebrando a fidelidade dos seus laços fraternais. Até a precipitação fatalista dos acontecimentos com o despertar de velhas paixões amorosas que envolvem Leila, tanto com Nadir como por Zurga, através de um enigmático colar de pérolas...

Em mais uma das artesanais direções cênicas/concepcionais de Julianna Santos reconstituindo, aqui, a ambientação comportamental do grupo de pescadores cingaleses. Imersos no ofício que mantém e dá vida à comunidade - a pesca marítima, no caso priorizando a riqueza das pérolas - no entremeio de crenças religiosas e conflitos de poder e por violentos ciúmes de amor.

Numa precisa ocupação da caixa cênica (Desirée Bastos) com alguns elementos materiais, completados por projeções frontais de imagens digitais, para sugestionar o imaginário movimento das ondas marítimas e das mutações nos espaços siderais. Incluindo-se, ainda de sua lavra, indumentárias camponesas com traços de exotismo orientalista.  

E que se expande também por intermédio de danças caraterísticas e um gestual esotérico (em dúplice ideário por Bruno Fernandes e Mateus Dutra), sob prevalências luminares mais vazadas que focais (Paulo Ornellas).

O maestro Luiz Fernando Malheiro frente à OSTM, um dos grandes experts brasileiros na regência de obras operísticas, imprimindo um dimensionamento expressivo ao encontro entre cordas, sopros e solos de harpa, nos acordes vocais melodiosos de temas que se celebrizaram, especialmente pelo leitmotiv na cena coral, já no prólogo.

Além de uma afinada e coesa participação do Coro do Municipal, há que se destacar o convicto quarteto protagonista. Desde um correto Sumo Sacerdote na voz do baixo Murilo Neves como Nourabad ao trio amoroso integrado pelo barítono Vinicius Atique (Zurga), tenor Carlos Ullán (Nadir) e a soprano Ludmilla Bauerfeltd (Leila).

Com uma tessitura suave de tenor lírico o argentino Carlos Ullán tem uma bela mas contida performance na ária “Je crois entendre, encore”, diante da voz mais exuberante e de maior ressonancia do barítono Vinicius Atique em “L’orage s’est calmé”, mas ambos conectando-se em segura performance atoral tanto no inspirado dueto entre eles (Au fond du temple saint), como aqueles ao lado da protagonista feminina.

Destacando-se também, sobretudo, o evocativo presencial da personagem Leila por Ludmilla Bauerfeldt, via sua tão requintada voz, das passagens mais líricas à firme clareza nos vibratos (Comme autrefois dans la nuit sombre), fluindo sobre a orquestra enquanto ecoa carismáticamente no aplauso do público...

                            

                                           Wagner Corrêa de Araújo



Os Pescadores de Pérolas, ópera de Bizet, está em cartaz no TMRJ, com dois elencos alternativos, de 16 a 26 de julho, em horários diversos.

EDDY VIOLÊNCIA & METAMORFOSE : CORAJOSA AUTO REINVENÇÃO EXISTENCIAL COMO DENÚNCIA À EXCLUSÃO E AO PRECONCEITO


Eddy Violência & Metamorfose. A partir da obra de Édouard Louis.  Luiz Felipe Reis e Marcelo Grabowsky/Dramaturgia e Direção Concepcional. Julho/2025. Renato Pagliacci/Fotos.


Considerado um fenômeno midiático da literatura francesa de hoje Edouard Louis é um jovem autor que, além de ter seus livros traduzidos em vários idiomas, tem sido adaptados aos palcos e às telas. Dando voz ao que ele classifica como “morte social”, à causa do preconceito e da exclusão por sua origem humilde e a libertária identificação de sua sexualidade.

A maioria  deles de cunho autobiográfico falando de uma conturbada trajetória pontuada pela homofobia,  no meio familiar e escolar, e por um episódio de violência sexual provocador de uma corajosa  metamorfose em seu conceitual de vida, na assumida remissão pelo ofício da palavra literária e teatral.

E tudo isto a partir dos relatos de brutal assédio sofrido, desde o perfil de um pai machista radicalizando sua repulsa a um filho direcionado pela delicadeza com subliminares trejeitos femininos e incapaz de se assumir como um cara de dura masculinidade, a uma mãe indiferente imersa nos seus afazeres domésticos.

Demonstrando desprezo ao sensível menino estigmatizado na escola por seus colegas no bullying dos apelidos de “bicha, veadinho, boiola, maricas” por gostar de livros, querer dançar e se travestir como ator. Ao mesmo tempo em que é humilhado por seu status social de pertencimento às classes marginalizadas de uma familia operária.

Quando então, depois de participar de um grupo teatral em outra cidade, abdica de sua recessiva vivência provinciana, na ida definitiva para Paris onde pretende ter plena liberdade de pensamento e de ação iniciando-se como escritor, sequenciado como dramaturgo e ator.


Eddy Violência & Metamorfose. Com Júlia Lund, João Côrtes e Igor Fortunato. Julho/2025. Renato Pagliacci/Fotos/Estúdio.


Questionando-se “será que estou condenado a sempre esperar por outra vida” é abordado por um imigrante argelino em sua volta para a casa parisiense, numa noite de Natal. Advindo nesta hora a sombria causa de um estupro violento e uma quase morte no entremeio de um inesperado encontro sexual de recíprocos estranhamentos.

E é no preciso uso destes elementos psicofísicos que é construída a narrativa dramatúrgica da peça Eddy Violência & Metamorfose, num artesanal conluio de um dúplice processo concepcional e direcional de Luiz Felipe Reis e Marcelo Grabowsky, na celebração dos dez anos da Cia Polifônica (sob o original ideário de Luiz Felipe Reis e Júlia Lund).

Reunindo em cena os atores João Cortes, como o alter ego de potencial identidade sensitiva com Édouard Louis, a convicta representação como de hábito pela atriz Júlia Lund, aqui no papel de Clara, irmã de Édouard ou da investigadora policial, mais a contumaz visualização da xenofobia na enérgica entrega de Igor Fortunato, alternando-se como o estrangeiro Redá, o mentor do crime sexual, ora o marido-confidente de Clara.

Em performances irrepreensíveis que se materializam na dimensão psicológica e na fisicalidade de personagens, conectadas sempre sob traços dramáticos sensoriais de reveladora tensão. Inspiradas por passagens confessionais de três livros de Édouard Louis – O Fim de Eddy, História da Violência e Mudar : Método.

No preenchimento minimalista de uma caixa cênica  (André Cortez) com um sofá cama, mesa e cadeiras, frontalizada por um telão que imprime ao espaço os caracteres de um estúdio cinematográfico, no uso de câmeras e luzes (Júlio Parente, Rodrigo Lopes) com projeção simultânea da atuação atorial, todos portando uma indumentária de tons cotidianos (Antônio Guedes).

Onde o desnudamento explícito do casal masculino em poses erotizadas é imprimido sob uma estética plasticidade gestual (Lavínia Bizzoto) na alternação entre as carícias do ato físico e a sua súbita brutalização, num  imaginário referencial ao quadro Duas Figuras, de Francis Bacon. Outra vez Luiz Felipe Reis acertando com suas interveniências musicais na escolha de acordes expressivos, de sonhos intimistas a sequenciais traumas.

A parceria dramatúrgica/direcional (Luiz Felipe Reis e Marcelo Grabowsky) primando na competência pelo alcance da sintonia com uma teatralidade que se expande  a outras linguagens artísticas, da literatura ao cinema, aliás o prevalente signo da cia Polifônica. Numa investigativa proposta dramatúrgica / ideológica que, antes de tudo, faz refletir sobre a problemática da contemporaneidade ecoando a palavra-verdade de Édouard Louis sobre catarse e metamorfose :

Cada vez que dizemos eu mudo, tornamos possível que outras pessoas digam eu quero mudar”...


                                                           Wagner Corrêa de Araújo 

                                                  

EDDY Violência & Metamorfose na sua segunda temporada, depois do Sesc/Copacabana, agora no Teatro Poeira, de quinta a sábado, às 20h e domingo às 19h, até 31 de agosto.

A BALEIA : CULPA E REDENÇÃO NO ENTORNO DE UMA DEPRESSIVA CONDIÇÃO HUMANA

A Baleia. Samuel D. Hunter/Dramaturgia. Luís Artur Nunes/Direção Concepcional . Junho/2025. Renato Mangolin/Fotos.

 

A trágica e burlesca narrativa fabular sobre a situação psicofísica de um professor de escritas literárias pela internet, recluso à causa de uma corporeidade acima de 270 quilos, sendo dominado pela culpa, num processo de auto punição, saindo em busca da redenção.

Este é o tema da peça A Baleia que, a partir do ideário do dramaturgo americano Samuel D. Hunter, além do teatro inspirou o filme de Darren Aronfsky, com similar titularidade e premiado com o Oscar 2023 de Melhor Ator para Brendan Fraser.

Chegando, agora, aos palcos brasileiros sob acurada tradução e direção concepcional por Luís Artur Nunes tendo como protagonista o ator José de Abreu, ao lado de um conceituado elenco integrado por Luiza Thiré, Eduardo Speroni, Gabriela Freire e Alice Borges.  

O espaço cênico sendo preenchido por uma funcional e, ao mesmo tempo, minimalista concepção que privilegia os pouco elementos materiais que sugestionem o melancólico isolamento de Charlie (José de Abreu) imobilizado em um sofá, cercado de embalagens usadas de pizza e fast food, tendo duas portas laterais - a entrada principal e o difícil  caminho para o banheiro.


A Baleia. Em cena, a partir da esquerda, Gabriela Freire, Luiza Thiré, Eduardo Speroni, Alice Borges e José de Abreu. Junho/2025. Renato Mangolin/Fotos


Onde o suporte de uma plataforma digital mecânica acima dele reproduz, vez por outra, uma espécie de contato virtual com seus alunos, simulando a tela de um computador e a passagem das horas, entre a noite e o dia, sob discricionárias variações de uma iluminação (Maneco Quinderé) vazada, numa coloração mais sutil com ocasionais sombras.

Na qual  a legendagem completa das falas cria uma metafórica conexão com uma leitura dramatúrgica, pontuada por acordes musicais densos em outra das inventivas trilhas autorais de Frederico Puppi, priorizando sonoridades quase mecânicas sem nunca ceder a temas  melodramáticos.

Charlie (José de Abreu), para potencializar sua pesada corpulência, usa enchimentos em suas vestimentas, dando a sensação de que isto dificulta sua respiração, na sôfrega e tocante vocalização de suas falas compassadas pela permanente depressividade.

Enquanto os outros atores usam figurinos mais cotidianos que ressaltam suas características personalistas, no dia a dia comum de suas funções, num acertado design indumentário por Carlos Alberto Nunes.

Desde o missionário evangélico Irmão Thomas (Eduardo Speroni) tentando resgatar em Charlie a fé cristã sem intuir claramente que a intenção do professor é descobrir por que Alan, seu falecido parceiro amoroso, acabou sendo levado a um quase suicídio lento quando repreendido pelo preconceito de seu pai, pastor da mesma comunidade do jovem pregador que o visita sempre.

A surpreendente postura de Liz (Luiza Thiré) como a enfermeira que, em comportamento contraditório, cuida e aconselha Charlie a se hospitalizar para evitar um mal súbito, mas não sem deixar de satisfazer suas irremediáveis pulsões de fome.

Outras duas relevantes personagens femininas subitamente reaparecem, depois de anos, despejando sobre ele suas amarguras familiares e existenciais - a agressiva frieza da filha adolescente Ellie (Gabriela Freire) e a desiludida alcoólatra e sua ex-mulher Mary (Alice Borges) que ele trocou por Alan.

A convicta interpretação dos quatro atores, pelo dimensionamento psicológico de seus personagens na trama, mantem força qualitativa perante a aflitiva emotividade alcançada pela empática performance de José de Abreu. Sem jamais deixar a cena, nesta que representa sua luminosa volta ao teatro pós uma longa ausência.

Numa textualidade que referencia a baleia bíblica de Jonas e a literária de Herman Melville em Moby Dick, ao lado de temas tão oportunos na atualidade como a homofobia e o fanatismo opressor de seitas religiosas em detrimento da liberdade de pensamento e de opção sexual, junto à vaidade física no seu cruel desprezo acionado pela gordofobia. Tudo isto completado por uma sensitiva e convincente direção de Luís Artur Nunes que faz com que A Baleia alcance um merecido destaque crítico e de aplauso público na presente temporada teatral...

 

                                             Wagner Corrêa de Araújo



A Baleia está em cartaz no Teatro Adolfo Bloch/Glória/RJ, de quinta a sábado, às 20h; domingo, às 18h, até 20 de julho.

ROMEU E JULIETA / BALÉ TEATRO GUAÍRA : TRADIÇÃO CONECTADA A UM INVENTIVO SOTAQUE DE CONTEMPORANEIDADE


Romeu e Julieta/Balé Teatro Guaíra. Luiz Fernando Bongiovanni/Concepção Coreográfica/Direcional. Junho 2025. Fernando Barkidom/Fotos.


Romeu e Julieta a mais evocativa tragédia de William Shakespeare sobre a irrestrita resistência de um amor proibido entre dois jovens tornou-se, desde a primeira versão russa de 1940 a partir da partitura de Serguei Prokofiev, um tema de permanente atração para o universo coreográfico.

Tendo a celebrizada concepção de Kenneth MacMillan para o Royal Ballet, 1965, inspirado outras diferenciais releituras, entre os séculos 20 e 21. Lembrando aqui, ainda os filmes de Franco Zeffirelli, 1968, e Braz Luhrmann, 1996, sem esquecer também a Broadway, esta partindo da cinematografia musical de West Side Story, Leonard Bernstein / Robert Wise, 1957.

Destacando-se entre as adaptações coreográficas, desde aquelas com um substrato estético mais focado na tradição clássica, como a de John Cranko, a outras mais ousadas como a de Mats Ek ou assumidamente transgressivas como a de Matthew Bourne.

Ressaltando que uma das mais conceituadas cias oficiais de dança do Brasil – o Balé Teatro Guaíra, através do coreógrafo Luiz Fernando Bongiovanni, em 2008, inicialmente apresentou seu Romeu e Julieta   e, agora, está voltando com esta obra. Numa abordagem de caráter mais inovador procurando contextualizar, metaforicamente, o espetáculo com a problemática social da atualidade, especialmente no que concerne à violência urbana, o preconceito racial e de classes que leva à criminalidade, entre o ódio e o amor.


Romeu e Julieta / Balé Teatro Guaíra. Luiz Fernando Bongiovanni / Concepção Coreográfica/Direcional. Junho 2025. Fernando Barkidom/Fotos.


Tivemos na trajetória crítica, no entorno deste meio século do Balé Teatro Guaíra memoráveis momentos, como a direção autoral de dois documentários - O Grande Circo Místico e Balé Teatro Guaíra 30 Anos - além de escrever sobre estreias de alguns espetáculos através dos anos, incluídas criações de Luiz Fernando Bongiovanni, o atual coreógrafo e diretor geral da Cia.

Nesta sua recente apresentação, no Grande Teatro Cemig do Palácio das Artes, Belo Horizonte, com perspectiva da inclusão em suas turnês brasileiras e internacionais, do Rio de Janeiro, este Romeu e Julieta  (Balé Teatro Guaíra) teve a performance de dois afinados elencos. Sem deixar de contar com a participação da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, sob uma mais compactada regência da composição por Ligia Amadio.

Onde há novo dimensionamento, visando o público de hoje, na concepção cenográfica (Cleverson Cavalheiro) não se atendo a um realismo fidedigno para mostrar a Verona renascentista, mas fazendo um funcional e minimalista design de grandes blocos móveis, sob vários planos capazes de visualizar as diversas ambiências internas e externas da narrativa.

E que alcançam imagéticos efeitos luminares (Carlos Kur) em projeções led que imobilizam mimeticamente os personagens, com sugestionamento frontal de brilhos espaciais nas cenas noturnas de paixão em encontros às ocultas do casal titular, luzes mais vazadas nas cenas coletivas de rua e mais sombrias no epílogo tumular. Destacando ainda os belos figurinos e adereços (Paulinho Maia) longe de um absoluto rigorismo à época da trama.

A execução musical da OSMG revelando a convicta maturidade de Ligia Amadio sabendo equilibrar o impacto emocional na tipicidade sonora dos acordes, ora energizados e quase dissonantes do compositor, com um apelo mais lírico no contraste das cenas amorosas.

O elenco protagonista mostrando fluidez de movimento tanto nas passagens coletivas como nos solos e encontros grupais, não perdendo coesiva correspondência a coadjuvante representação de cidadãos e da Corte. Havendo que se destacar entre tantos personagens a afinidade química dos dois Romeus alternativos (Rodrigo Castelo Branco e Rodrigo Leopoldo) como também das duas Julietas (Deborah Chibiaque e Amanda Soares).

Ficando difícil citar a atuação específica de cada um dos personagens de um dúplice elenco saindo-se bem, tanto no baile de máscaras e nas cenas de lutas ou de atuações mais humorizadas, como as da carismática Ama de Julieta, ou as dramáticas das três Parcas do Destino, introduzidas como reveladora inovação pelo ideário de Bongiovanni.

Este transmutando em descobertas coreográficas expressivas, numa peculiar linguagem estética psicofísica, desde espontâneas intervenções vocais a instantâneo transitar de bailarinos pela plateia, na dramaturgia corporal de uma potencializada cia de dança - o Balé Teatro Guaíra. Há exatos 57 anos dignificando, sem dúvida alguma, a dança em moldes brasileiros ...  

                             

                                            Wagner Corrêa de Araújo



 

Romeu e Julieta / Balé Teatro Guaíra apresentou-se nos dias 28 e 29 de Junho, no Grande Teatro Cemig/Palácio das Artes/Belo Horizonte, seguindo para temporada em São Paulo.

ALICE DE COR E SALTEADO : IMERSIVO MERGULHO MUSICAL NO UNIVERSO FABULAR COMO FUGA A UMA SOMBRIA REALIDADE


Alice de Cor e Salteado. Musical de Duncan Sheik e Steven Sater. Gustavo Barchilon / Direção Concepcional. Junho 2025. Gi Alcayaga / Fotos.


Desde sua publicação, em 1865, Alice no País das Maravilhas, o emblemático clássico do inglês Lewis Carroll, não só continua despertando sua delirante paixão, sem limites geracionais, por um fantasioso mundo literário, como vem inspirando a dança, a ópera, o cinema e o teatro musical.

Entre suas últimas versões, a partir da passagem de seu sesquicentenário, uma ópera rock britânica, um balé contemporâneo (Momix) e o musical Alice By Hearth, estreado no circuito Broadway / West End, em 2016, obra dos mesmos autores de “O Despertar da Primavera” – Duncan Sheik (compositor) e Steven Sater (letrista).

E é este espetáculo que acaba de chegar aos palcos paulistas, sob a direção concepcional do conceituado expoente da nova geração do teatro musical em moldes brasileiros - Gustavo Barchilon, a partir de novos dimensionamentos dramatúrgicos combinados com a dupla da criação original Sheik/Sater.

Por uma mais livre adaptação titulada, aqui, como Alice de Cor e Salteado, sob um ideário dos jovens protagonistas da peça - Gabi Camisotti e Diego Montez - junto ao diretor de produção Thiago Hofman. Contando, ainda, com apurada equipe tecno - artística de representativos nomes do cenário teatral brasileiro, incluindo um afinado elenco da nova geração integrado por atores-cantores-bailarinos.


Alice de Cor e Salteado. Musical de Duncan Sheik e Steven Sater. Gustavo Barchilon / Direção Concepcional. Junho 2025. Gi Alcayaga / Fotos.


Dentro desta nova proposta, um diferencial cenográfico (Natália Lana) é imprimido na sua transmutação para palco arena cuja circularidade propicia uma ambientação intimista e imersiva, com a maior proximidade do espectador. E onde a caixa cênica é preenchida por elementos minimalistas próprios à identificação de um refúgio de bombardeios, anos quarenta, em época de guerra mundial.

Sugerindo uma espécie de bunker no metrô londrino de 1941, servindo de abrigo/hospital para um grupo de adolescentes, sob os cuidados de uma pequena equipe com médico e enfermeira. Todos eles vestidos com indumentárias cotidianas (Luísa Galvão) ou profissionais  mas que, aos poucos, vão  caracterizando-os na tipicidade dos personagens ficcionais da narrativa de Alice de Cor e Salteado.

Incluído o uso de capacetes e fuzis com outras destinações, ressignificando ora  cascos de tartaruga, ora  copos ou cachimbos de fumar narguilé. Sob funcionais efeitos luminares (Maneco Quinderé), indo da prevalência de tonalidades sombrias a pinceladas de cores mais vivas, quando os atores interpretam canções melancólicas de luto e baladas de dor ou passam a representar, com afeto e ironia, as figurações fantásticas de Lewis Carroll.

Entremeados por acordes mais energizados que remetem a temas de indie rock, dando pulsão a uma expressiva corporeidade gestual nos movimentos coreográficos de Cecília Simões, através de bem executada trilha sonora na prevalência sensorial de um cello, sob o comando e arranjos de Gui Leal.

Destacando-se, ali, os inspirados solos vocais e declamatórios de Gabi Camisotti (Alice), seguidos da envolvente participação musical e performática de Diego Montez em dúplices atuações, dividindo-se como Alfred, o pretenso enamorado dela acometido de fatalista tuberculose ou no papel do Coelho Branco.

Sem deixar de lembrar as personificações tocantes de Renan Mattos como o sofrido soldado Harold Pudding ou sendo o Chapeleiro Maluco, incluindo-se também outras notórias atuações de Yasmin Gomlevsky, Valéria Barcellos e Bruna Pazinato, revivendo a Lagarta, o Gato de Cheshire e a Rainha de Copas, entre outros marcantes personagens.

A direção, sempre artesanal de Gustavo Barchilon, demonstrando seguro enfrentamento do desafio comparativo deste musical em relação à clareza maior do outro (O Despertar da Primavera) na abordagem de sonhos adolescentes.

Ou, na especificidade do teatro musical em  Alice de Cor e Salteado, questionando e refletindo sobre a decifração do enigma proposto, aliás bastante oportuno no momento :  

Até onde vai, afinal, a trágica realidade que afeta a condição humana em tempo de guerra e começa o escape no delírio sobre como encontrar a paz num mundo ficcional? ...

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo



Alice de Cor e Salteado está em cartaz no Teatro Estúdio / SP, sextas, sábados e segundas, às 20h30; domingos em horários alternativos, até o dia 4 de agosto.

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