O FORMIGUEIRO : METAFÓRICA ABORDAGEM DE DISSABORES DO NÚCLEO FAMILIAR SOB SUTIL PARALELO COM A TRAJETÓRIA DAS FORMIGAS


O Formigueiro. Thiago Mendonça/Dramaturgia e Direção Concepcional. Dezembro/2025. Costa Blanco/Fotos e vídeos.


Em 1991, o poeta Ferreira Gullar publicava um de seus mais inusitados poemas visuais sobre a desconstrução  da sintaxe da palavra formigueiro numa proposta conceitual - linguística de integração e desintegração da “vida e do trabalho na treva” dos pequeninos seres na trajetória diária de seu auto sustento.

E não é por mera coincidência que o ator Thiago Marinho teve a original ideia de similar titularidade - O Formigueiro - para sua primeira criação dramatúrgica que ele próprio dirige, com a participação dos atores Lucas Drummond  (numa dúplice função como produtor), Roberta Brisson, Rodrigo Fagundes, além de Diego Abreu.

Como se esta proposta de representação teatral, credenciada pela experiente supervisão de João Fonseca, sintetizasse comparativamente os riscos na falta de uma formiga  líder para a sustentação de seu habitat, com o súbito acometimento do Alzheimer de uma matriarca, com prejuízo para a dependência afetiva de seus três filhos.

A estrutura narrativa de seu enredo com um aprimorado recurso a apelos ora melodramáticos ora novelescos, ou acertando no equilíbrio entre um tratamento de drama e de comédia, entre o riso e as lágrimas, ao abordar o encontro dos três irmãos na antiga ambiência domiciliar da progenitora.


O Formigueiro.  Thiago Mendonça/Dramaturgia e Direção Concepcional.  Roberta Brisson- Rodrigo Fagundes-Lucas Drummond/ Em Cena. Dezembro/2025. Costa Blanco/Fotos e vídeos.


Aqui e agora, fatalmente reunidos para comemorar a melancólica passagem do aniversário materno, sob o doloroso enfrentamento do mal cada vez mais ascendente à causa do Alzheimer, o que a impede de reconhecer qualquer um deles. Sendo sua figura ausente simbolizada por um xale numa cadeira de balanço vazia.

A caixa cênica (Victor Aragão), preenchida por uma plasticidade realista, reproduzindo a tipicidade tradicionalista de uma casa de família, enfatizando o detalhamento ancestral de objetos referenciais - uma  velha televisão, móveis desgastados de copa e cozinha, fogão, mesa e prateleiras, sem esquecer da cadeira de balanço, vista em  sua parte de trás.

Tudo continuado por básicos figurinos (Luísa Galvão) de sotaque cotidiano e tonalidades neutras, confeccionados num dimensionamento com ligeiras variações de acordo com a peculiaridade dos personagens, sob uma iluminação (Felipe Medeiros) vazada mas de prevalência discricionária.

Dentro de uma temática densa em que são evidenciados os conflitos psicológicos entre os três personagens, diante  do iminente desabamento da estabilidade do convívio familiar, obrigando-os a tomar decisões e atitudes mais drásticas, em níveis emocionais diferenciais para cada um eles.

Nesta caracterização o filho (Rodrigo Fagundes) que ainda mora ali, acompanhando tudo de perto, como uma espécie de  cuidador que não aceita a  definitiva reclusão da mãe em um asilo, onde o ator se destaca expandindo em cena a exploração  de seu bom humor presencial.

Num contraponto comportamental com os outros dois irmãos que tem vida exterior independente, de um lado um deles (Lucas Drummond) não conseguindo disfarçar a insegurança emotiva, em convicta expressão dramática de seu desalento intimista.

E a irmã (Roberta Brisson), esta casada e julgando-se privilegiada por seu status financeiro, acentuando com fluência a fria indiferença de seu personagem, até ser desmentida pela cruel revelação de que seu marido (Diego Abreu) não passava de um escroque procurado pela polícia.  

A direção convincente de Thiago Marinho sabendo imprimir ao seu texto autoral, inspirado pelo Alzheimer de sua avó, uma linhagem narrativa que o aproxima de uma comédia de costumes e mais sutilmente do gênero besteirol, com apurado empenho no controle das nuances de tensão, humor, drama, alegria e dor.

Na espontaneidade performática de um elenco ágil em suas intervenções coloquiais, no entremeio de sensitivas revelações e oportunos lugares comuns que atraem a cumplicidade do público. Transmutando O Formigueiro numa realização teatral de originalidade tão identitária quanto a busca inventiva neoconcretista assumida pelo poema homônimo de Ferreira Gullar...

 

                                              Wagner Corrêa de Araújo

                                                 


O Formigueiro faz uma instantânea apresentação nos dias 06 e 07 de dezembro, às 20h, no Teatro Riachuelo/Cinelândia, enquanto ultima preparativos para uma próxima temporada em 2026.

MADAMA BUTTERFLY : ENCENAÇÃO CONECTADA À CONTEMPORANEIDADE IMPRIME UM SOTAQUE POLÍTICO À ÓPERA DE PUCCINI


Madama Butterfly/G Puccini. TMRJ. Pedro Salazar/Direção Concepcional. Novembro/2025. Daniel Ebendinger/Fotos.


Estreada em 1904, no Scala de Milão, Madama Butterfly desde seu original ideário, inspirado num conto americano de John Luther Long, transmutado numa peça também americana de David Belasco, manteve o mesmo substrato estético verista que marcou a trajetória operística de Giacomo Puccini.

Reafirmado não só em seu estilo autoral tanto na composição de sua partitura como no enredo dos libretistas italianos Giuseppe Giacosa e Luigi Illica. Madama Butterfly representando sua incursão inicial, aqui no orientalismo japonês, e ao chinês em sua derradeira e inacabada criação - Turandot, de 1924.

No caso da narrativa melodramática de Madama Butterfly revelando o adverso destino de uma gueixa japonesa – Cio Cio San, ainda adolescente e ingênua com seus 15 anos, deixando se iludir pelo interesseiro amor do oficial da Marinha dos EUA – Benjamin F. Pinkerton - em passageira missão oficial. E que depois de seduzi-la, com uma instantânea relação matrimonial a deixa grávida, sob as falsas promessas de retorno.

Abandonando-a para reaparecer três anos depois, com uma esposa americana Kate, além de lhe roubar o filho que ainda não conhecia, transformando o sonho de amor numa farsa, o que precipita o trágico final de Cio Cio San, através de um suicídio (seppuku) ritualístico samurai, para resgatar sua honra ultrajada.


Madama Butterfly/G Puccini. TMRJ. Pedro Salazar/Direção Concepcional. Soprano Eiko Senda e tenor Matheus Pompeu/Protagonistas. Novembro/2025. Daniel Ebendinger/Fotos.


Outros personagens se sucedem entre os Atos I e III, como sua fiel criada e acompanhante Suzuki (mezzo-soprano Luciana Bueno), o compreensivo cônsul americano Sharpless (barítono Inácio de Nono), além de característicos tipos japoneses como o monge budista Bonzo (baixo Murilo Neves) e o intrigante Goro (tenor Geilson Santos), completados por provincianos que integram as cenas coletivas.

Nesta montagem do Municipal carioca encerrando a Temporada Lírica 2025, a proposta cênica, pelo colombiano Pedro Salazar, dentro de uma tendência contemporânea de remontagens da Madama Butterfly, acontece no início dos anos 50, numa Nagasaki, ainda sofrendo os reveses da bomba atômica.

Ao contrário de outras releituras, a plasticidade cenográfica (Renato Theobaldo) potencializando o clima soturno da cidade destruída no pós-guerra entre resquícios de escombros, mostrando em proporção menor a casa da protagonista vista, sempre pelo lado externo, entre sombrios efeitos luminares (Paulo Ornellas).

Em contraposição pictórica, vistosas tonalidades acabam remetendo à tradição oriental nos artesanais figurinos de Marcelo Marques. E folhas de cerejeira caindo sobre o cenário propiciam uma poética imagem visual completada por um preciosismo  gestual, com acentuado referencial da cultura japonesa,  especialmente quando Cio Cio San (Eiko Senda) lembra a delicadeza expressiva de uma jovem em permanente estado de encantamento amoroso.

A OSTM, conduzida pelo maestro Alessandro Sangiorgi, buscando o equilíbrio das sonoridades de intensa emotividade dramática, no entremeio de passagens de suave lirismo, para que as partes vocais se destaquem em completa unicidade rítmica, numa ópera verista em que  a música é também parte fundamental da trama dramática. Extensivo aos ecos de bastidores, além  palco, através do Coro do Municipal, no tão evocativo “a bocca chiusa” e  sua melodia sem palavras.

A soprano Eiko Senda, experiente de longa data no papel titular, aprimorando cada frase com seu registro agudo irreprimível e um pianíssimo sensitivo ao lado de seu forte presencial dramático. Desde sua ária “Un bel di vedremo” aos seus duetos com o tenor lírico Matheus Pompeu (Pinkerton), este de timbre consistente entre os registros médio e agudo e atendendo bem às exigências de seu personagem. 

Quanto a Inácio de Nono, na noite de estreia, logo que entrou em cena, demonstrou uma ligeira oscilação nas nuances dramático-vocais como Sharpless, mas acabou superando uma aparente insegurança no decorrer da ópera. Valendo destacar ainda uma reveladora atuação da mezzo soprano Luciana Bueno em suas ocasionais intervenções no papel de Suzuki.

Embora aos mais tradicionalistas, a pesada ambientação no Japão pós-hecatombe atômica, possa talvez causar certo incômodo, esta é uma tendência atual nos palcos mundiais de ópera para superar uma já datada pulsão temática meramente colonialista da versão original de 1904.

Com assumido enfoque político/social a uma masculinidade tóxica, sob a preconceituosa e abusiva visão da condição feminina, no contraponto imperialista entre a civilização ocidental e as tradições milenares do Oriente...

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo

   

Madama Butterfly está em cartaz no TMRJ, em horários diversos e dois elencos alternativos, desde o dia 21/11 até o próximo domingo, 30/11, às 17hs


NAS SELVAS DO bRAZYL : A RETOMADA DE UM TEMA OPORTUNO SOB UMA METAFÓRICA CONEXÃO FABULAR ENTRE A HISTÓRIA E O TEATRO

NAS SELVAS DO bRAZYL. Pedro Kosovski/Dramaturgia. Daniel Herz/Direção Concepcional. Novembro/2025. Nil Caniné /Fotos.


Há cento e doze anos acontecia uma viagem do ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt Jr (1858/1919) e do sertanista brasileiro Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958) às, até então, ainda indevassáveis ambiências ecológicas brasileiras, dimensionadas especialmente pela floresta amazônica.

A trajetória reunindo ainda alguns naturalistas e até sacerdotes num quase reflexo especular dos conhecidos como precursores viajantes do Primeiro Reinado,  estendendo-se a outras explorações no século XIX para descobertas e revelações sobre a flora e a fauna até o início do período republicano e o despontar do novo século.

Entre outras publicações, resultando em um livro denominado Nas Selvas do Brasil do naturalista inglês Alfred Russel Wallace e que, agora, serve como inspiração titular para a peça escrita pelo dramaturgo Pedro Kosovski, a partir de um ideário original do ator Gustavo Gasparani desde que conheceu o Museu Rondon em Porto Velho  (Rondônia).

E que, ao lado do ator Isio Ghelman, são os dois protagonistas da peça NAS SELVAS DO bRAZYL, nome do país simbolicamente grafado com Z e Y, com um subliminar referencial à expedição direcionada por Theodore Roosevelt (Isio Ghelman) tendo como seu principal parceiro o Marechal Cândido Rondon (Gustavo Gasparani), no épico percurso do chamado Rio da Dúvida, na Amazônia, em tempos da Velha República, tudo convergindo na fluência da direção de Daniel Herz.


NAS SELVAS DO bRAZYL.  Daniel Herz/Direção Concepcional. Isio Ghelman e Gustavo Gasparani/Performance. Novembro/2025. Nil Caniné /Fotos.


Retratando como nos pioneiros relatos a paisagem fluvial e costeira, com os descendentes dos povos originários, além de povoados ocupados pelos colonizadores portugueses, desde as primeiras décadas do pós-Descobrimento, incluídas as peculiaridades zoológicas  e botânicas na região percorrida.

O enredo dramatúrgico, em mais uma das reveladoras marcas autorais de Pedro Kosovski, não se limitando  a descrever o status quo do processo exploratório à época, mas transcendendo sua temporalidade numa abordagem de temas como uma sequencial tendência subalterna do Brasil aos Estados Unidos identificada até a atualidade.

Ou, sob um conceitual estético, com base político-científica, procurando imprimir aos dois personagens  uma dialetação imaginária entre tempos idos e futuros,  sobre os riscos além fronteiras da devastação ambiental repercutindo sobre a cada vez mais ascendente crise climática do planeta Terra, com trágica antevisão de um cataclismo terminal.

Onde a caixa cênica (Dina Salem Levy) é preenchida por uma abstrata plasticidade pictórica constituída por um emaranhado de fios, trançados e cruzamentos para sugestionar o que se via durante a travessia desde a densidade da paisagem florestal à passagem por postes de redes telegráficas.

Completada na sugestiva indumentária (Wanderley Gomes) fugindo do previsível sotaque militar através de esportivos macacões aquarelados, transmutados no exercício da função exploratória. Cenografia e figurinos ressaltados pela prevalência de efeitos luminares (Aurélio de Simoni) e pelas ocasionais intervenções sonoras (Marcello H).

Daniel Herz privilegiando um arrojado avanço no tratamento direcional, ainda que isto incida num certo hermetismo para o espectador mais acomodado decifrar, quando o tema é explorado a partir do dúplice dimensionamento de representação da proposta dramatúrgica, sob um  sutil sotaque pirandelliano.

Ao conectar, em contraponto crítico, o exercício presencial do oficio de dois convictos atores - Gustavo Gasparani e Isio Ghelman - em paralelo ao alcance de consistente “busca” personalista da caracterização histórico-documental de seus personagens com um olhar armado na contemporaneidade.

Além da abordagem de temática tão necessária como a preservação ecológica, a partir de sua fundamental base amazônica, para assegurar o futuro da própria humanidade, NAS SELVAS DO bRAZYL com seu inventário dramático materializa, sobretudo, o empenho por novos caminhos para o teatro brasileiro...

 

                                          Wagner Corrêa de Araújo

 

NAS SELVAS DO bRAZYL está em cartaz no Teatro II/CCBB/RJ, de quinta a sábado, às 19h; domingo às 18h; até o dia 30 de novembro.

DREAMGIRLS : UM EXEMPLAR MUSICAL SOBRE A COMPETITIVA INTEGRAÇÃO DA BLACK MUSIC NA INDÚSTRIA DO ENTRETENIMENTO



Dreamgirls - Em Busca de um Sonho. Gustavo Barchilon/Direção Concepcional. Novembro/2025. 
Tawan Santos/Fotos.


Em plenos anos 60 quando a prevalência dos hits internacionais no gosto popular se dividia entre o legado do rock’n’roll, a explosão dos Beatles e a ascensão da pop music, um trio de cantoras negras de Chicago, inicialmente conhecido como as Dreamettes, se tornaria um fenômeno no universo do showbiz já então nominado como The Supremes.

E é este grupo que inspirou um dos musicais mais emblemáticos da Broadway, anos 80, titulado Dreamgirls, pelo ideário de seu criador Michael Bennett, numa temporada ininterrupta que durou até 1985, retornando numa releitura cênica dois anos depois. Em 2006, tendo recebido Oscars por sua versão cinematográfica, com elenco estelar - Beyoncé, Jennifer Hudson, Jamie Foxx e Eddie Murphy.

Agora, o musical Dreamgirls - Em Busca de Um Sonho - finalmente chega aos palcos brasileiros, a partir de São Paulo, em outra das significativas direções concepcionais de Gustavo Barchilon reunindo, aqui, as cantoras-atrizes Letícia Soares, Samantha Schmütz e Laura Castro nas personificações titulares do trio vocal. Valendo também destacar a volta de Toni Garrido, no papel de Curtis Taylor Jr, o empresário responsável pelo lançamento do trio.


Dreamgirls - Em Busca de um Sonho. Gustavo Barchilon/Direção Concepcional. Novembro/2025. 
Tawan Santos/Fotos.


Ambientado num espaço cênico (Natália Lana) com sotaque mais realista, ora mostrando a entrada do Harlem Apollo Theater, o palco e bastidores, onde tudo se inicializa com a chegada das cantoras e candidatas a um lugar ao sol no mercado fonográfico extensivo à mídia musical americana.

Tendo, ainda, passado pelo crivo exigente de Curtis Taylor Jr., que, contra todas as expectativas, decide substituir Effie White (Letícia Soares), por uma aspirante considerada mais apropriada para compor o trio, estabelecendo um clima de controvérsias entre elas. Com ágeis e bem humoradas intervenções de Jimmy Thunder Early (Reynaldo Machado), em potencial representação física, voz e corpo especialmente imprimida numa tessitura referencial a James Brown.

Com apurada equipe tecno-artística, indo desde uma funcional adaptação textual por Bianca Tadini e Luciano Andrey, à envolvência do comando musical por Gui Leal, correspondido pela energizada concepção coreográfica de Rafa L. A partir de inúmeros hits em discos, rádios e discotecas, numa previsível antecipação do que seria a era da disco music, sob contagiantes ritmos, provocando intensiva corporeidade dançante nas pistas de bares e night clubs.

Mas por trás de tudo, o enredo dramatúrgico-musical de Dreamgirls, revelando dissabores, invejas, preconceitos raciais, no entremeio de um instantâneo alcance do anonimato à fama, para aquelas até então ingênuas cantoras. Que, pela força da fé em seu sonho, acabaram se impondo por seu talento de artistas representativas da criatividade negra através de um conceitual afirmativo de  núcleo social identitário, no enfrentamento do excludente conservadorismo branco.

Para culminar nas cenas definitivas do show, sob efeitos luminares (Tulio Pezzoni) incidindo, numa citação de plasticidade bem a la Broadway. Num desfilar de figurinos (Fabio Namatame) ora de sotaque cotidiano às indumentárias reluzentes, tendo ao fundo um painel frontal ecoando ressonâncias nas projeções de cores psicodélicas sobre a afinada atuação performática dos cantores-atores-bailarinos.

A cintilante interpretação de Leticia Soares, como de hábito, conferindo à sua personagem uma estatura carismática. Sem deixar por isto de ressaltar o sempre qualitativo presencial das outras protagonistas em seus respectivos papéis.

Gustavo Barchilon em proposta estética, sintonizada nos avanços da contemporaneidade teatral, exercendo seu  ofício de busca inventiva com irrepreensível empenho direcionado ao completo domínio do espetáculo.  

Tudo, afinal, concorrendo para uma das surpresas da  temporada 2025, sob o signo de um irradiante contraponto critico voltado para um teatro musical dimensionado e solidificado em moldes  brasileiros...

 

                                                Wagner Corrêa de Araújo

                                        

Dreamgirls - Em busca de um Sonho está em cartaz no Teatro Santander/SP, de quinta a domingo, em horários diversos, até o dia 30 de novembro.

TEATRO DECOMPOSTO : DESFIGURANDO A AÇÃO DRAMATÚRGICA CONVENCIONAL SOB METAFÓRICA VERBALIDADE


Teatro Decomposto. Matéi Visniec/Dramaturgia. Ary Coslov/Direção Concepcional. Novembro/2025. Nil Caniné/Fotos.


“Não, eu não acredito que podemos entender tudo. Não acredito que tenha um sentido em tudo que contamos” (Matéi Visniec). Estas palavras enunciadoras definem o processo de criação do dramaturgo franco-romeno enquanto conceitualizam bem sua peça Teatro Decomposto ou Homem-Lixo, original de 1993.

Depois de algumas de suas adaptações para os palcos brasileiros, incluindo especialmente as virtuais no período pandêmico, esta obra de Visniec tem um caráter singular em sua proposta autoral inovadora, sendo classificada por ele como um texto modular ou um espetáculo dialógico de monólogos.

Priorizando apenas uma única exigência - a liberdade sem limites aos seus encenadores, não só na escolha múltipla entre o total de 24 narrativas modulares dramatúrgicas, como numa opcional encenação, sempre no formato de protagonizações monologais, em que as falas podem incluir a participação de outros atores.

Toda esta estética colocando Matéi Visniec na linhagem do legado de grandes autores do teatro do absurdo, desde seu conterrâneo Eugène Ionesco passando, ainda, por Samuel Beckett, Harold Pinter e Edward Albee. Sendo considerado o mais recente deles como um característico “enfant terrible” do teatro contemporâneo.  

Dando continuidade às inúmeras montagens em nossos palcos das obras de Matéi Visniec, a maioria delas sempre com aplauso da critica e do público, Ary Coslov realiza uma das mais surpreendentes representações da temporada 2025 com a peça titulada Teatro Decomposto, sob acurada tradução de Luiza Jatobá.


Teatro Decomposto. Matéi Visniec/Dramaturgia. Ary Coslov/Direção Concepcional. Com Júnior Vieira, Marcelo Aquino, Guida Vianna, Mário Borges, Dani Barros.  Novembro/2025. Nil Caniné/Fotos.


Não só por sua inventiva direção concepcional, como pela presença de um elenco de notáveis de duas gerações do teatro carioca e brasileiro, a saber - Guida Vianna, Mário Borges, Marcelo Aquino, Dani Barros e Júnior Vieira.  Além de reunir uma artesanal equipe técnica-artística, indo da iluminação ao figurino, mais a direção de movimento e preparação corporal.

O essencialista preenchimento da caixa cênica acontece através de uma mesa frontal e cadeiras laterais, de onde se desloca o elenco ou ecoam falas complementares ao dimensionamento da performance. Sob uma sempre qualitativa iluminação de Aurélio de Simoni, em que prevalece o equilíbrio entre efeitos ambientais vazados e, vez por outra, marcações focais.

O preciso uso da direção de movimento (Lavínia Bizzoto e Alexandre Maia) nos quadros cênicos transmutando o espaço num território de simultâneos delírios verbais, sincronizados pela unicidade de indumentárias formatadas como uma espécie de macacões em tons neutros, em outro destes acertos do figurinista Wanderley Gomes.

Onde cada ator exerce sua veemência personalista em textos/módulos que viabilizam temas sinalizados pela incomunicabilidade, confinamento, opressão, angústia, consumismo. Tratados, aqui, numa construção fabular, no entremeio do drama burlesco e de um riso sarcástico no entorno da condição humana, imersa em no sense onírico de pesadelo e caos.   

Ficando difícil destacar qualquer um dos intérpretes sem falar dos outros, todos eles sintonizados sob potencial impacto na personificação  da contundência de situações, ao mesmo tempo absurdas e reflexivas, indo do irracional à tensão dos transes humanos.

Na expressiva maturidade de Guida Vianna sequenciada numa mesma vibração pela densidade  de Mário Borges, extensiva à envolvência da linguagem atoral de Marcelo Aquino aos instintivos recursos performáticos de Dani Barros e a reveladora convicção do talento de Júnior Vieira.

Tudo convergindo para o luminoso resultado da concepção direcional imprimida por Ary Coslov, em provocador inventário dramático sob  contraponto crítico, no alcance de um incisivo jogo teatral ao vivo, ecoando o ideário estético-político do livre exercício da construção teatral de Matéi Visniec : “Eu me considero um autor de um teatro engajado que não faz parte da indústria do divertimento e busca acordar as consciências dormentes”...

 

                                            Wagner Corrêa de Araújo  

       

                                                                                                            

Teatro Decomposto está em cartaz no Teatro da Casa Laura Alvim/Ipanema, sextas e sábados às 20h; domingo, às 19h; até domingo, 30 de novembro.  

UM JULGAMENTO – DEPOIS DO INIMIGO DO POVO : CONEXÃO DRAMATÚRGICA E RECONSTRUÇÃO FÍLMICA SOB IRRADIANTE COMPASSO DE DUAS LINGUAGENS ARTÍSTICAS

Um Julgamento - Depois do Inimigo do Povo. Christiane Jatahy /Direção Concepcional. Outubro/2025. Caio Lírio/Fotos.


Uma diferencial releitura à luz da realidade brasileira transmuta a emblemática obra do norueguês Henrik Ibsen – Um Inimigo do Povo – numa das mais surpreendentes representações da temporada teatral 2025, sob o signo da volta do ator Wagner Moura aos palcos, quase duas décadas após sua dedicação exclusiva à performance cinematográfica,

E foi a partir do encontro da diretora Christiane Jatahy com Wagner Moura que surgiu o ideário da peça Um Julgamento – Depois do Inimigo do Povo num especular conceitual de ficção e realismo, trazendo sua ambientação narrativa norueguesa do  século XIX, de uma pequena província para uma região do interior brasileiro de hoje. Em reconfiguração dramatúrgica tríplice, incluindo o reconhecido roteirista Lucas Paraizo.

No caso, um balneário turístico fator econômico fundamental para manutenção social de seus habitantes e que, diante da acusação  de que suas águas teriam se tornado poluídas, sob denúncia levantada pelo  médico e irmão do prefeito, coloca-os em confronto, usando ambos a nominação original da peça de Ibsen.

De um lado o bravo Thomas Stockman (Wagner Moura), como um médico dublê de cientista, questionando a qualidade sanitária do balneário e, de outro, o conservadorismo de seu irmão e prefeito Peter Stockman (Danilo Grangheia) não admitindo o referido diagnóstico ecológico, pelo temor de que a comunidade vá à falência com o fim da maior fonte de renda local.


Um Julgamento-Depois do Inimigo do Povo. Christiane Jatahy/Wagner Moura/Lucas Paraizo/Dramaturgia. Outubro/2025. Caio Lírio/Fotos.


O que entre recíprocas apontações de culpa conduz a situação a um julgamento num tribunal onde se defrontam o acusado tornado réu - Thomas Stockman – e seu irmão prefeito da comunidade – Peter Stockman, diante de um júri integrado por Petra Stockman (Julia Bernat) filha do indiciado e, ao mesmo tempo, atuando  na defesa como sua advogada.

Sendo estes os personagens protagonistas, ao lado da intervenção, vez por outra, entre depoimentos presenciais ou audio visuais mostrados num telão frontal, mais a participação no palco de 12 integrantes da plateia escolhidos como jurados. Numa concepção cenográfica (Thomas Walgrave) que transforma a caixa cênica num tribunal de júri diante do público que compõe sua audiência.

O palco, pragmaticamente assim configurado, quebra os limites da quarta parede, entre a verdade e o imaginário, entre a representação e a realidade, indo mais longe ainda, pela concepção direcional de Christiane Jatahy com a ressignificação do uso habitual dos elementos que compõe uma performance teatral, processo inventivo  que tem sinalizado sua  estética dramatúrgica.

Luzes propositalmente vazadas, em dúplice ofício do cenógrafo Thomas Walgrave, sem qualquer graduação de suas tonalidades, salvo no epílogo com o incisivo monólogo de Wagner Moura, este revelando sempre uma força rompante, cativante e humana em seu papel.

Nenhuma interveniência de ruídos sonoros ou acordes musicais, além de figurinos (Marina Franco) assumidamente cotidianos, salvo o do réu e o do acusador, subliminarmente, mais cerimoniosos segundo o costume jurídico. Sem deixar de referenciar aqui o significativo encontro de duas linguagens artísticas - o cinema e o teatro. 

Não só  através de projeções fílmicas pré-gravadas como pelo uso de câmeras presenciais que propiciam uma conexão documental imediata com o universo das plataformas digitais, enquanto não deixa de advertir sobre o risco das fake news e sua contaminação no agir e no pensar. Ampliando, assim, as perspectivas para tornar mais verista a coesiva integração palco/plateia direcionada ao veredito final.

Um Julgamento – Depois do Inimigo do Povo traz sólida estrutura interpretativa, sob a exponencial atuação de   um elenco de craques (Wagner Moura, Danilo Grangheia,Julia Bernat), resultado do empenho sempre vanguardista da direção-concepcional de Christiane Jatahay, em seu convicto propósito por um teatro desentorpecedor.

Consistente como espetáculo, ao priorizar seu intencionalismo crítico e sua missão esclarecedora contra todas as formas de retrocesso na contemporaneidade, pela corajosa autencidade, afinal, de sua promoção reflexiva do encontro entre o teatro e a vida...

 

                                            
                                              Wagner Corrêa de Araújo

   


Um Julgamento - Depois do Inimigo do Povo, pós instantâneas e concorridas temporadas apenas em Salvador e no CCBB/RJ, cria expectativas para uma volta ao cartaz, ampliando seu circuito de representação Brasil afora.

MACBETH / TMSP : ÓPERA DE VERDI SOB FUNCIONAL MUSICALIDADE ENTRE DESACERTOS CÊNICOS

Macbeth /Ópera de G. Verdi/TMSP Elisa Ohtake/Concepção Cenográfica-Direcional. Novembro/2025. Rafael Salvador / Fotos

 

Macbeth foi a primeira das três óperas de Giuseppe Verdi inspiradas em William Shakespeare, com sua original versão, em 1847, sob um libreto de Francesco Maria Piave. Na primeira fase de sua trajetória de compositor, seguida na finalização de seu legado operístico, por duas obras primas com o mesmo ideário - Otello (1887) e Falstaff (1893).

Enquanto em Otello e em Falstaff, sua escrita musical tem o alcance de suas mais perfeccionistas óperas, Macbeth mesmo não sendo tão absoluta na demonstração de sua estética composicional, traz passagens solistas e corais que fizeram com que fosse elogiada pela crítica e aplaudida pelo público.

Mas a sua adaptação narrativa-musical nunca teve o impacto dramático de Otello nem a força cômica de Falstaff, única ópera verdiana neste gênero. E, talvez por isto, tem sido apresentada, ora por uma fidelidade mais próxima da tragédia shakespeariana, ora por releituras conectadas aos avanços do universo operístico contemporâneo.

No primeiro caso, tivemos uma exemplar versão personalista de um nome histórico do teatro brasileiro e grande aficionado da ópera – Sergio Britto, em 2005, para o Municipal carioca. E pelo outro lado, uma polêmica direção cênica por Bob Wilson, em 2012, no Municipal paulista, dividiu as opiniões diante do seu provocador desafio aos pilares da tradição.


Macbeth /Ópera de G. Verdi/TMSP Elisa Ohtake/Concepção Cenográfica-Direcional. Novembro/2025. Rafael Salvador / Fotos


E, agora, na temporada 2025 do TMSP, é a vez de Elisa Ohtake um conceituado nome da nova geração brasileira de artistas plásticos e cenógrafos, não por acaso, neta da memorável Tomie Ohtake. Que, anos atrás, surpreendeu com sua concepção cênica usando pinturas autorais em Madama Butterfly, 1988, no Municipal carioca, seguida de outra versão, 2008, para o similar palco paulista.

Elisa Ohtake, aqui, ficando responsável não só pela cenografia como pela direção cênica concepcional, lembrando que esta é a sua incursão inicial no ofício operístico, dando vazão a sua experiência prática em espetáculos especificamente teatrais.

Numa proposta minimalista de evocação futurista onde a caixa cênica é preenchida por elementos de plástico inflável de cores neutras - dois puffs, um escorpião e uma serpente - estes dois últimos como simbólica figuração da maldade e da perfídia traiçoeira dos personagens Macbeth e Lady Macbeth.

Diante da mobilidade de um painel frontal e nas referências metafóricas no design central ao círculo dourado da coroa real. E priorizando, em apelo sensorial, a opressão claustrofóbica dos seus personagens em cena, circundados pela crueldade da trama, com mortes seguidas e inapagáveis vestígios de sangue. 

Sempre sob prevalente sotaque sombrio no uso de efeitos luminares (Aline Santini) e tonalidades discricionárias no figurino atemporal com sutis insinuações de época (Gustavo Silvestre e Sonia Gomes).

A regência do maestro Roberto Minczuk, frente à Orquestra Sinfônica Municipal, sendo direcionada com acurado empenho, na distinção dos acordes lentos e de agitatos dramáticos. E o Coro Lírico Municipal, conduzido por Hernan Sanchez Arteaga, sabendo brilhar na marcante cena Patria oppressa e no apoteótico final Macbeth, Macbeth ov'e?.  

Nos papéis protagonistas alternativos saindo-se bem no domínio de sua tessitura de barítono - Douglas Hahn (Macbeth), embora não tenha a mesma química cênico-vocal da soprano Olga Maslova (Lady Macbeth), hipnotizante em sua ária Vieni t’affreta. Com seguras atuações solistas, ainda, do baixo Andrey Mira (Banquo) e do tenor Enrique Bravo (Macduff).

A direção cênica-concepcional de Elisa Ohtake vai num dimensionamento inventivo no entorno da ópera, revelando uma encenação mais direta e seca nas situações dramáticas e seus desfechos violentos, mas sem comprometer seu rendimento conceitual.

Mas ao não saber como bem usar instantâneos interregnos fílmicos, durante a troca de cenários nos entreatos, não consegue segurar sua convicta gramática cênica. Ao mostrar Lady Macbeth surpresa diante de uma garrafa em seu camarim que parece ser de energizante sexual ou Macbeth na parte externa do Teatro com um destes sacos gigantes de pipoca. 

Provocando risos e vaias compulsivas pelo mau gosto destes recursos histriônicos e quebrando, afinal, toda amarração da tragicidade de uma intenção cênica-direcional que, até então, parecia ser a de um sério jogo operístico...

 

                                        Wagner Corrêa de Araújo

      

Macbeth, ópera de Verdi, está em cartaz no TMSP, com elencos alternativos nos papéis protagonistas, até o próximo domingo, 09 de novembro.

FRIDA / BALLET DO THEATRO MUNICIPAL/RJ : CONTUNDENTE CRIATIVIDADE PREENCHE O PALCO COM INTROSPECTIVA PINTURA COREOGRÁFICA

Frida/Ballet do Theatro Municipal/RJ. Reginaldo Oliveira/Concepção Coreográfica. Outubro/2025. Daniel Ebendinger/Fotos. 

 

"Não pinto sonhos, pinto a minha realidade” - assim se autodefinia a pintora mexicana Frida Kahlo cuja trajetória artística-existencial a tornou um símbolo de resistência feminina, desde as dores físicas que marcaram sua corporeidade, à sua linguagem plástica-estética plena de modernidade ao evocar, em suas criações, a tradição popular indigenista.

Fazendo sua tragédia pessoal se estender a um casamento desejado com o muralista Diego de Rivera, interrompido e, simultaneamente, retomado, vendo de perto a sua infidelidade ao ter filhos com a própria irmã, enquanto ela, impossibilitada por suas moléstias, nunca poderia concebê-los, apesar de tentar mesmo sofrendo abortos sequenciais.

Sublimando seus desalentos através de assumidas convicções marxistas compartilhadas com seu consorte matrimonial ou, então, desafiando o conservadorismo moral e social da época por atitudes comportamentais que a tornaram um símbolo precursor do vir a ser feminino e do movimento emancipatório preconizado pelo LGBTQIA+.

E é, assim, como o ideário do coreógrafo Reginaldo Oliveira, um destes destacados talentos brasileiros no universo da dança além fronteiras, na ressignificação da vida e da obra da artista, por um convicto reflexo especular, através da expressiva proposta estética de seu balé Frida, se identifica pela simbologia de paralelas vocações artísticas, na conexão da dança com a pintura, talvez, quem sabe, para assumir as palavras dela - “Sou o assunto que conheço melhor”.


Frida/Ballet do Theatro Municipal/RJ. Reginaldo Oliveira/Concepção Coreográfica. Márcia Jaqueline/ Protagonismo Titular. Outubro/2025. Daniel Ebendinger/Fotos. 


Depois de uma celebrada estreia, no início de 2025, pelo Salzburger Landestheater, na cidade austríaca de Mozart, onde ele exerce o ofício de coreógrafo, como se confirmasse pela auto definição de Frida, a sua própria e personalista carreira, desde os anos em que, ainda na Comunidade da  Maré, sonhava com a dança como razão futura de ser e de existir.

O que demonstra Reginaldo Oliveira, com extrema fidelidade à sua conceituada proposta original para o mundo de Frida,  trazida agora diretamente de Salzburg ao Ballet do Theatro Municipal/RJ num reencontro afetivo com esta Cia, na qual já atuara como bailarino. Incentivado, então, por Jorge Texeira, agora por um destes felizes acasos do destino, o  atual coreógrafo e supervisor artístico junto ao Diretor Geral Hélio Bejani.

Retomando a inicial configuração cênica (Mathias Konfruss) à base de painéis que sugestionam, metaforicamente, telas de pintura, vistas pela frente e por trás, com suas armações de madeira. Enquanto as aquareladas cores e peculiares acessórios artesanais, sob referenciais ao indigenismo na arte popular mexicana, completam um diferencial figurino (Judith Adam). Onde prevalecem  imagens que, de imediato, estabelecem uma poética paisagem cênica, inspirada em subliminares sotaques dos 55 auto retratos, o grande legado estético da obra pictórica de Frida Kahlo.

Num dimensionamento coreográfico imprimido por Reginaldo Oliveira que reflete ao mesmo tempo, os dramas psicofísicos da artista, materializando seu processo criador no uso da corporeidade dos bailarinos, com um surpreendente resultado, tanto nos solos e duos, como nas prevalentes atuações grupais. Sob uma acertada trilha sonora baseada em conhecidas canções mexicanas, conferindo maior autenticidade ao enredo do balé.

Destacando-se, especialmente, no primeiro elenco, a carismática atuação de Márcia Jaqueline no protagonismo titular como Frida, sabendo insuflar uma cativante dimensão artística ao seu personagem, com absoluto perfeccionismo técnico conectado a um irradiante expressionismo gestual. Repercutindo em sua atuação o mais dramático grito de Frida : “Meu corpo carrega em si todas as dores do mundo”.

No alcance de sua gramática cênica transmissora de sensorial revelação, como a de uma pintura ao vivo e a cores, sinalizada por energizadas texturas de movimento, em performance exemplar do Ballet do Theatro Municipal. Capaz de lembrar um oportuno conceitual de Kazuo Ohno -“Dançar é como desenhar uma linha na tela”. Ou, ainda, a própria Frida Kahlo como um corpo-linguagem em movimento, através de cada pincelada, encontrando uma fuga do seu permanente abismo existencial. E por emblemática justificativa de seu destino, sintetizando o difícil suporte da condição humana: “Pés para que os quero, se tenho asas para voar”...

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo

     

Frida/ BTM /RJ, em curta temporada no Municipal, estreou no último sábado, 25 de outubro, ficando em cartaz, até a próxima sexta-feira, dia 31/10, sempre às 19h, com elencos alternativos nos principais papéis.



DONATELLO : AFETIVO RESGATE MEMORIAL, EM COMPASSO DRAMATÚRGICO-MUSICAL, DAS ALEGRIAS E DESALENTOS DA CONDIÇÃO HUMANA

 

Donatello. Vitor Rocha/Dramaturgia e Performance. Victória Ariante/Direção Concepcional. Outubro/2025. Julio Aracak/Fotos.


Através do recente espetáculo Donatello, sob um ideário dramatúrgico-musical, o multitalento dos jovens Vitor Rocha, ator/dramaturgo, e Elton Towersey, compositor, ao lado de  Victória Ariante, diretora, e Lucas Drummond, produtor, se reencontram para repetir, com a mesma paixão cênica e  acerto revelador o que, há dois anos, representou a peça Se Esta Lua Fosse Minha.

Em outra criação capaz de fascinar um público de todas as idades por sua proposta original em que, a partir do gosto simultâneo de um avô (Donatello) e seu neto (Amendoim) por sorvetes, a partir de um referencial comparativo aos mais diversos sabores, são mostrados os momentos de grande alegria, interrompidos pelo desalento súbito quando Donatello é acometido pelo mal de Alzheimer. 

A narrativa dramatúrgica, numa dúplice criação do ator Vitor Rocha, assume o dimensionamento de um monólogo autoral-performático no qual ele se empenha na representação do seu personagem sob um sotaque confessional, ao mesmo tempo em que atua como intérprete das canções, com letras suas e composição musical de Elton Towersey, executadas ao teclado por Felipe Sushi.


Donatello. Vitor Rocha/Dramaturgia e Performance. Victória Ariante/Direção Concepcional. Outubro/2025. Julio Aracak/Fotos.


Numa cenografia (Batata Rodriguez) despojada em que o espaço é preenchido apenas pela mutabilidade funcional de uma mesa e cadeira, além de pequenos materiais e uma bicicleta, aos quais o ator recorre para evocar, em citações de pura delicadeza poética, a presença, em contraponto metafórico, do avô Donatello, incluindo-se, aqui o teclado (Felipe Sushi) que acompanha toda a narrativa oral e as canções, servindo o pianista, vez por outra, como contrarregra.

O personagem protagonista é indicado, aqui,  pelo apelido de Amendoim, dado pelo avô carinhosamente  mas por um triste acaso,  já dentro da confusão mental criada pelo Alzheimer e a consequente dificuldade de reconhecer seu entorno familiar, distinguir a pronúncia e o sentido das palavras que começa a embaralhar.

Não conseguindo esquecer apenas este sabor amendoim entre os que, de um para o outro, avô e neto, compartilhavam nas jornadas cotidianas em uma sorveteria. Este último, de um vidro pleno de lírica magia, vai retirando os palitos de sorvete, enquanto estabelece significados simbólicos que ele compartilha com alguns espectadores tornados personagens, sendo escolhidos no prólogo.

Amendoim trajando uma indumentária cotidiana que o distingue, em sotaque atemporal, com as transições da infância à idade adulta, no interregno de uma dramática situação ascendente até a passagem terminal de seu favorito ente querido o avô - Donatello – considerado por ele, no enfrentamento de seu cruel diagnóstico, como um verdadeiro herói.

O que é potencializado por uma ambiental iluminação (Wagner Pinto) vazada, em que todas as idas e vindas na passagem dos anos, do passado ao presente, e de volta ao futuro,  são sinalizadas sempre pela lembrança imperecível do avô.

Acrescida, ainda, da citação de filmes que, de uma maneira ou outra, se tornaram icônicos em sua vida, à causa de provocar viagens pelos espaços siderais da mente, tornando-se, também, um elo direcionador de sua própria condição humana.

Destacando-se Vitor Rocha com sua coesão interpretativa autor>ator  enquanto personagem, priorizando um apelo sensorial, no contraste afetivo de suas nuances do riso juvenil ao drama, com inspirada musicalidade e oportuna reflexão, a partir do acertado domínio direcional  de sua gramática cênica  por Victória Ariante.

Despretensioso por sua singularidade Donatello, este pequeno musical, acaba conquistando corações e mentes pela envolvência de sua tocante dramaturgia (Vitor Rocha), sabendo imprimir verdade e sinceridade na abordagem do legado das memórias familiares. E que podem, sobretudo, se identificar, em processo carismático, com as vivências, alegres e tristes, na trajetória de cada um de nós...

 

                                             Wagner Corrêa de Araújo

 

Donatello está em cartaz no Teatro Gláucio Gil/Copacabana, quintas e sextas às 20h; até o dia 31/10, com possibilidades de uma segunda temporada em outro espaço teatral.

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