Jakub Józef Orlinski. O contratenor misto de anjo barroco numa de suas atuações no palco. Foto Marty Sohl/Met Opera/ Divulgação. |
“As vozes dos anjos
alcançam, enfim, o coração dos homens. Entre os séculos XII e XV, a Igreja
introduz, então, por meio da pessoa do castrato, um anjo músico”... (A Voz no Divã/Jean-Michel Vives)
Em seu denso estudo à luz da psicanálise sobre a voz musical,
da ópera à musica eletrônica, Vives dedica
um envolvente capítulo aos castrati como
um timbre “fora do sexo e fora do tempo
tal um deus”. E sua extensão aos dias de hoje, sob o dimensionamento de uma
crescente paixão sensorial, de apelo quase erótico, pela tão diferenciada tessitura vocal dos contratenores.
E melhor exemplo para isto está no recente recital do jovem contratenor
polonês Jakub Józef Orlinski, acompanhado
do grupo de câmera italiano Il Pomo D’Oro,
em noite carismática no Municipal carioca, pela sua surpreendente
performance cênico/vocal com a imediata resposta no delírio do público.
Embora o repertório tenha sido composto pelo resgate de árias
pouco conhecidas de óperas barrocas, predominantemente de raridades dos séculos XVII e
XVIII. O que, sobretudo, torna mais irresistível a prevalente atenção ao inusitado
sotaque atoral/coreográfico do cantor. A começar de seu chamativo figurino de
grife fora dos padrões habituais para este gênero de apresentação.
Isto se explica através de sua trajetória paralela como dançarino de break e modelo/acrobata de campanhas publicitárias. “A dança break é um ótimo exercício para o corpo e para a mente. Isso me dá uma pequena pausa da ópera, do mundo clássico. Eu me aqueço com movimentos de break-dancing todas as manhãs antes de aquecer minha voz", diz Orlinski, convicto da eficácia desta sua particularizada metodologia de treinamento vocal.
Jakub Józef Orlinski e Il Pomo D'Oro. Theatro Municipal/RJ. 04/Julho. Fotos/Renato Mangolin. |
Em suas inúmeras turnês, ele vem se destacando por uma técnica
de canto lírico com uma cadência de
modulações vocais que vão de um contratenor alto,
capaz de equilibrar suas interpretações de uma tessitura de extensivo alcance às ressonâncias
de um sotaque grave, quase barítonal.
Ele ainda prioriza sua voz em espontâneos e breves arroubos
de coloratura, dando vazão ao seu sonho inicial de tributar aquela que considera
sua maior diva inspiradora – a mezzo-soprano Cecília
Bartoli (“Eu estava curioso para descobrir
como era possível cantar do jeito que ela canta. Eu tinha que descobrir”).
Das obras escolhidas, o único compositor realmente conhecido
dos habitués dos concertos e óperas é Händel, embora ele inicie seu recital com um precursor histórico Francesco Cavalli, da escola veneziana, através de La Calisto (há uma incrível versão registrada
em vídeo desta ópera, por Renè Jacobs,
para o Theatre de la Monnaie, em
2006).
Seguem-se compositores resgatados em processo museológico, como
Giovanni A. Boretti, Giovanni Bononcini através de uma
cantata inédita, Francesco B. Conti (reapresentado
em anos recentes com seu Don Chisciotte),
Luca Antonio Predieri, Johann A. Hasse
e sua versão de Euridice e Orfeo, além de Nicola Matteis, Giuseppe
Maria Orlandini e Johann Mattheson.
Boa parte das composições apresentadas originalmente dedicadas a Farinelli, o mais mítico dos castrati, tema inclusive de um celebrado filme de Gerard Corbiau, 1994. Tendo todos os personagens destas obras um referencial ora mitológico, ora de historicismo romano, com exceção das duas abordagens sobre o lendário herói de Cervantes.
Onde, como uma potencial atração à parte, há a participação dos
músicos portando instrumentos de época em formatação barroca, no relevo especial de Dolores Costoyas (arquialaúde, teorba
e violão), sob artesanal comando dúplice (cravo e regência) por Maxim Emelyanychev.
Não deixando nunca de ressaltar a técnica absolutamente
impecável de Orlinski, na clareza e
suavidade lírica de sua emissão vocal, ao lado de sua postura performática atoral
como um portador de magnetismo expressivo, no entremeio de sedutora mascaração
facial e espontâneo gestualismo corporal.
Quem há de resistir a um cantor operístico anticonvencional que se define como um astro pop, que é comparado a Justin Timberlake e que estabelece uma ponte entre o ancestral canto seráfico dos castrati e a postura ousada de um contratenor, lírico e provocador, com seu olhar armado na contemporaneidade?...
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