“Um ato solene é aquele que contém e suporta somente seu próprio olhar, e que não aceita olhares tangenciais, de outros pontos de vista mais “irresponsáveis”. É a favor desta “irresponsabilidade” do teatro que emerge a maioria de minhas últimas obras”.
Palavras que sinalizam as linhas estéticas da singular dramaturgia
desenvolvida pelo argentino Rafael
Spregelburd. Uma das vozes mais lúcidas e inventivas do teatro latino-americano,
em transcendente reconhecimento além fronteiras.
Ele iniciou sua trajetória teatral desde o grupo El Patron Vazquez, em 1994, onde
além de dirigir criadores significativos como Pinter
e Sarah Kane, revelou-se também como dramaturgo. Em pouco tempo sendo traduzido em várias línguas e ao alcance de palcos
europeus como o Piccolo Teatro di Milano.
Tributado inclusive no Brasil, pelas montagens de A Estupidez e A Modéstia, integrantes do seu ciclo de obras inspiradas nas
temáticas do pintor Hieronymus Bosch.
E foi em 2009, entre as habituais encomendas de teatros alemães, que ele
escreveu Tudo, nos vinte anos da
queda do Muro de Berlim.
Tudo, de Rafael Spregelburd. Direção Guilherme Weber. Julho/2022. Fotos/Carolina Canavarro. |
A peça, sob uma assumida simbologia fabular no entorno do
caos, é estruturada em três momentos titulados, a partir de questionamentos
narrativos, como “Por que todo Estado vira burocracia?”, “Por que
toda arte vira negócio”, “Por que toda religião vira superstição?”.
Numa escritura em que a palavra cênica é contextualizada
através de uma imaginária visualidade gestual, em aproximativa linguagem de teatro
coreográfico mas sem nunca perder a prevalência visceral de seus provocativos
signos verbais.
Desdobrada, sob um assumido sotaque político/ideológico de
pulsão brechtiana, na conexão contrastante de categorias teatrais entre o
melodrama e a comedia, sustentada em
tons farsescos. Segundo o autor, “mais
importante que o argumento da obra é seu procedimento no cruzamento de gêneros inconciliáveis”.
O que a autoridade cênica de Guilherme Weber soube artesanalmente configurar no entremeio do irracional e da ordem,
deslocando a ação, com subliminar intencionalidade crítica, da paródia ao realismo.
Em espaço cenográfico despojado, preenchido apenas por duas fileiras de
cadeiras laterais à espera alterativa de seus ocupantes, sob um teto luminar
móvel e sutis efeitos de luzes vazadas, na respectiva criação de Diana Salem
Levy e Renato Machado.
Com extensão aos figurinos (Kika Lopes) ora cotidianos, ora solenes, dando espaço para tonalidades burlescas na personificação indumentária
de Dani Barros. Mais, a trilha sonora incidental da lavra de Rodrigo Apolinário
e a energizada corporeidade da direção de movimento por Toni Rodrigues.
Sem deixar de mencionar a coesiva luminosidade interpretativa
de um carismático elenco, tomado de paixão e pleno de técnica (Julia Lemmertz,
Dani Barros, Vladimir Britcha, Claudio Mendes e Márcio Vito). Com especial
destaque na vigorosa espontaneidade presencial e histriônica da atriz Dani
Barros.
Tudo é um espetáculo sintonizado na problemática
da contemporaneidade e mais que oportuno para tempos tão obscuros como os
enfrentados nestes últimos anos. Entre a gravidade de um surto pandêmico, a falência
no campo das ideologias políticas e o retrocesso na afirmação das identidades sociais.
Este Tudo direcionando,
através de um investigativo formato de experimento dramatúrgico, para um teatralidade sólida e esclarecedora. Um irreverente e incisivo inventário dramático sobre transes humanos se propondo a decifrar,
quem sabe, a árida pergunta sem resposta deixada por seu epílogo: “Como fazer para não ter medo?...
Wagner Corrêa de Araújo
Tudo está em cartaz no Teatro Firjan/Sesi, quintas e sextas, às 19h, sábados e domingos às 18h, de 16 de junho a 17 de julho.
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