TUDO : CAÓTICAS FÁBULAS SOB UM PROVOCADOR COMPASSO DRAMATÚRGICO


Tudo, de Rafael Spregelburd. Direção Guilherme Weber. Julho/2022. Fotos/Carolina Canavarro.

“Um ato solene é aquele que contém e suporta somente seu próprio olhar, e que não aceita olhares tangenciais, de outros pontos de vista mais “irresponsáveis”. É a favor desta “irresponsabilidade” do teatro que emerge a maioria de minhas últimas obras”.

Palavras que sinalizam as linhas estéticas da singular dramaturgia desenvolvida pelo argentino Rafael Spregelburd. Uma das vozes mais lúcidas e inventivas do teatro latino-americano, em transcendente reconhecimento além fronteiras.

Ele iniciou sua trajetória teatral desde o grupo El Patron Vazquez, em 1994, onde além de dirigir criadores significativos como Pinter e Sarah Kane, revelou-se também como dramaturgo. Em pouco tempo sendo traduzido em várias línguas e ao alcance de palcos europeus como o Piccolo Teatro di Milano.

Tributado inclusive no Brasil, pelas montagens de A Estupidez e A Modéstia, integrantes do seu ciclo de obras inspiradas nas temáticas do pintor Hieronymus Bosch. E foi em 2009, entre as habituais encomendas de teatros alemães, que ele escreveu Tudo, nos vinte anos da queda do Muro de Berlim.


Tudo, de Rafael Spregelburd. Direção Guilherme Weber. Julho/2022. Fotos/Carolina Canavarro.

A peça, sob uma assumida simbologia fabular no entorno do caos, é estruturada em três momentos titulados, a partir de questionamentos narrativos, como “Por que todo  Estado vira burocracia?”, “Por que toda arte vira negócio”, “Por que toda religião vira superstição?”.

Numa escritura em que a palavra cênica é contextualizada através de uma imaginária visualidade gestual, em aproximativa linguagem de teatro coreográfico mas sem nunca perder a prevalência visceral de seus provocativos signos verbais.  

Desdobrada, sob um assumido sotaque político/ideológico de pulsão brechtiana, na conexão contrastante de categorias teatrais entre o melodrama e  a comedia, sustentada em tons farsescos. Segundo o autor, “mais importante que o argumento da obra é seu procedimento no cruzamento de gêneros inconciliáveis”.

O que a autoridade cênica de Guilherme Weber soube artesanalmente  configurar no entremeio do irracional e da ordem, deslocando a ação, com subliminar intencionalidade crítica, da paródia ao realismo.

Em espaço cenográfico despojado, preenchido apenas por duas fileiras de cadeiras laterais à espera alterativa de seus ocupantes, sob um teto luminar móvel e sutis efeitos de luzes vazadas, na respectiva criação de Diana Salem Levy e Renato Machado.

Com extensão aos figurinos (Kika Lopes) ora cotidianos, ora solenes, dando espaço para tonalidades burlescas na personificação indumentária de Dani Barros. Mais, a trilha sonora incidental da lavra de Rodrigo Apolinário e a energizada corporeidade da direção de movimento por Toni Rodrigues.

Sem deixar de mencionar a coesiva luminosidade interpretativa de um carismático elenco, tomado de paixão e pleno de técnica (Julia Lemmertz, Dani Barros, Vladimir Britcha, Claudio Mendes e Márcio Vito). Com especial destaque na vigorosa espontaneidade presencial e histriônica da atriz Dani Barros.

Tudo é um espetáculo sintonizado na problemática da contemporaneidade e mais que oportuno para tempos tão obscuros como os enfrentados nestes últimos anos. Entre a gravidade de um surto pandêmico, a falência no campo das ideologias políticas e o retrocesso na afirmação das identidades sociais.

Este Tudo direcionando, através de um investigativo formato de experimento dramatúrgico, para um  teatralidade sólida e esclarecedora. Um irreverente e incisivo inventário dramático sobre transes humanos se propondo a decifrar, quem sabe, a árida pergunta sem resposta deixada por seu epílogo: “Como fazer para não ter medo?...


                                     Wagner Corrêa de Araújo


Tudo está em cartaz no Teatro Firjan/Sesi, quintas e sextas, às 19h, sábados e domingos às 18h, de 16 de junho a 17 de julho.

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