Em sua obra, com alto circuito inventivo, Karlheinz Stockhausen, um dos mais
revolucionários compositores de seu tempo, nunca separava a linguagem musical
do ato de viver. E tudo se processando numa espécie de ritual música/vida que
estabelecia elos entre o som e os movimentos da corporeidade.
Num encontro capaz de interagir intérpretes, público e
compositor, em formatação de liturgia transcendente e que o próprio Stockhausen assumia como postura filosófico/musical: “Qualquer música leva às leis do Universo”.
E é aí que entra o gesto, o movimento e a dança em obra que
congrega várias formas de espetáculo transmutando-se numa única manifestação
estética. Assistindo-se a um concerto que é, simultaneamente, música, teatro,
ópera e dança.
Numa das raras apresentações deste segmento múltiplo de sua
criação, com a presença do próprio autor, ocorrida no final de 1988, em salas
de concerto brasileiras, com forte sustentáculo precursor de dança-teatro, o
papel da coreografia era apenas um dos elementos de uma espécie de “drama musical pós-wagneriano”, na
definição do compositor.
Nestes tempos de pandemia em que procuramos vencer o reiterativo
cotidiano de isolamento através das plataformas digitais há, vez por outra, oportunas
descobertas. Onde nos foi possível reencontrar a bailarina e coreógrafa belga Michele Noiret fazendo uma releitura daquele Solo, uma de suas criações a partir
de trabalho colaborativo com K.Stockhausen
e apresentada exatamente no espetáculo de 1988.
Numa performance musical/coreográfica reunindo dois
bailarinos (Michele Noiret e Jean Michel Chalon), formados no Mudra de Bruxelas, com instrumentistas e
efeitos acústicos/eletrônicos. Dando vazão, segundo eles, a uma proposta de Stockhausen: “Ele dá a ideia, nós encontramos os
movimentos. Como a música já existe, há uma ideia abstrata que nós
transformamos numa coisa concreta”.
No caso especifico de Michele
Noiret, ela protagonizava o solo Examen,
uma peça para trompete, clarineta, voz e piano, estruturando a original
notação coreográfica que divide a corporeidade em oitavas, transformando-a numa
caixa de ressonância dos instrumentos.
Obra em torno da qual ela vem realizando releituras a partir
da peça original de 1987, sendo a mais recente esta que ela titula como Palimpseste Solo, estreada em 2015 e, atualmente,
disponível na integra, nas redes virtuais, com data de 2017 no registro visual.
O corpo passando, desde a primeira versão, a ser uma escala
musical, numa tessitura de oitavas em treze gestos das mãos:a mão direita se movimentando pelas
sonoridades do trompete enquanto a mão esquerda, por sua vez, acompanha os vocalizes
de um tenor.
Em depoimento para uma entrevista, ela nos explicou :“Cada gesto corresponde a uma nota e cada parte do corpo é uma linha da escala musical. É uma noção tão rigorosa que, em determinado momento, quase me levou a ficar doente. Fui salva a tempo ao me juntar a Jean Michel Chalon. Conseguimos, assim, com certa criatividade, nos libertar desta sincronização absoluta”.
Nesta retomada que vimos recentemente, a bailarina/coreógrafa
quis prestar um tributo a Stockhausen,
pela importância que este teve na trajetória do seu posterior projeto de criação
coreográfica, inclusive por intermédio de variados registros fílmicos da obra, desde 2004 aos últimos anos.
PALIMPSESTE SOLO/DUO. Michèle Noiret e David Drouard. 2017. Foto/Sergine Laloux. |
Palimpseste Solo, agora, é mais sintético no uso de
recursos musicais, limitando-se a um duo para clarineta e piano que se estende
por cerca de meia hora. Numa concepção no entremeio de sonoridades alterativas,
ora com passagens mais energizadas, ora com pausas de silencio. Em recortes de
acordes minimalistas que guiam um gestual ágil e, ao mesmo tempo, de fluida elegância.
E que traz um elemento novo com a interferência de um bailarino em compasso especular fazendo o
contraponto de cada um dos gestos, sincronizados do feminino ao masculino, numa
notação gestual entre a pulsão da fisicalidade e a conexão mental.
Com Stockhausen,
cada dançarino tem o seu músico correspondente - algo similar ao método de Dalcroze aplicado por Nijinsky na “Sagração da Primavera”. Mas,
aqui, o conflito entre música e dança, instrumento e bailarino é um provocador
desafio.
Se, por um lado, prevalece a linguagem musical voltada para
um tempo futuro, por outro a dança é submetida a um código de combinações
sonoras em escritura com difíceis rigores microscópicos.
Para Michele Noiret : “Cada
performance é muito rica, mas esta escrita coreográfica exige tanto que quase limita
a livre expressão do bailarino. E, ironicamente, é tão cheia de fronteiras quanto
a dança clássica...”
Wagner Corrêa de Araújo
KARLHEINZ STOCKHAUSEN. Retrato na maturidade. Foto/divulgação. |
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