UM OTELO COREOGRÁFICO SOB PERCEPTÍVEL SOTAQUE FASSBINDERIANO

OTELLO, Balleto di Roma. Outubro de 2020. Fotos/Divulgação.


Desde a segunda metade do século XVIII, numa esquecida versão para Antônio e Cleópatra na escritura acadêmica de Jean-Georges Noverre, os grandes clássicos do teatro shakespeariano vem fascinando o universo coreográfico. 
Com prevalentes versões de Romeu e Julieta, seguidas pelo Sonho de Uma Noite de Verão e Otelo, sem esquecer de citar adaptações menos frequentes para Hamlet, Macbeth e A Megera Domada.

Deixando de lado as inúmeras recriações em torno da narrativa mais apaixonante mas não menos trágica dos jovens amantes de Verona, é a história do Mouro de Veneza a que mais tem atraído os coreógrafos por sua visceral abordagem de um jogo de amor, ambição, ciúme, traição e morte.

Algumas das mais originais incursões na verdade patética da inocência de Desdemona e na vilania da inveja e da mentira propugnada por Iago, causas do enredamento de Otelo num labirinto de intrigas e calúnia, aconteceram especialmente a partir dos anos do pós-guerra, estendendo-se às duas primeiras décadas do terceiro milênio.

Vale relembrar a potencial e então inovadora proposta do mexicano José Limon, em 1949, The Moor's Pavane,  que sob acordes barrocos de Purcell, ressaltava a identidade racial negra e uma subliminar referencia à questão homoerótica no ambíguo relacionamento entre Iago e Otelo, envolvendo  poder politico e  atração amorosa.

Outras provocantes abordagens foram as do americano Lar Lubovich em 1997, com energizado score sonoro composto especialmente para a montagem por Elliot Goldenthal, incluindo uma Tarantella, dança considerada demoníaca à época histórica da peça, que reunia o quinteto Otelo, Iago, Cássio, Emília e Desdemona.

Além da contextualização contemporânea de John Neumeier, de 2013, para o Balé de Hamburgo, sem esquecer o curioso enfoque de Doug Elkins, de 2012, tendo como substrato as composições musicais do Motown.

Considerada uma das mais antigas e fundamentais cias contemporâneas italianas em suas seis décadas de ininterrupta atuação, o Balletto di Roma reestreou em data recente o seu Otello, segundo uma ideia de Fabrizio Monteverde, o coreógrafo oficial do ensemble.

A obra integraria a temporada brasileira 2020 da Dell Arte mas foi adiada para 2021 devido à pandemia. Mesmo assim, foi disponibilizada nas redes virtuais até o dia 5 de novembro próximo em apurada versão filmada em sistema HD 4 k.

Transpondo a ação da república veneziana para um porto qualquer da atualidade, este Otello se aproxima de temas capitais da problemática de nossos dias. De um lado, os conflitos migratórios, entre partidas sem destino certo de forasteiros e viajantes apátridas, por causas políticas ou religiosas; de outro, os preconceitos raciais, pulsões machistas ou a não aceitação de diferenças de identidade sexual.

Numa paisagem cênica portuária (em dúplice oficio de seu coreógrafo mentor) que remete como um leitmotiv, pelo uso de sombras e luzes (Emanuele De Maria), com predominância de tons sanguíneos, aos fotogramas de Querelle du Brest, de Fassbinder, extensivos aos figurinos atemporais (Saint Rinciari) sob matizes uniformes entre cinzas e ocres.

Onde um recorte de passagens orquestrais de Dvorák, no entremeio romântico nacionalista das danças eslavas e em dramáticos acordes sinfônicos, serve de substrato sonoro para expressar o contraponto dos embates psicológicos dos personagens protagonistas, direcionados à tragédia conclusiva, com aproximativa linguagem estética de dança-teatro sem preocupação de fidelidade absoluta e linear à dramaturgia original.

Alternando-se as performances grupais, solos e duos, destaca-se um afinado corpo de baile e solistas, com interatividade interpretativa entre os papéis principais, como o incisivo encaminhamento da falsa lealdade de Iago (Paolo Barbonaglia) e da manipulada ingenuidade de Cássio (Ricardo Ciarpella).

E onde o pigmentação morena e a rusticidade facial do bailarino Vincenzo Carpino (Otelo) estabelecem um contraste racial com a branquitude da pele e dos traços finos de Roberta De Simone (Desdemona). Ao mesmo tempo em que são enfatizadas as peculiaridades gestuais contrastantes de machismo e submissão, paixão e ciúme.

Capazes de aflorar instintos assassinos, entre a fiscalidade atlética do desafiado domínio masculino e a delicadeza erotizada da corporeidade feminina, conduzindo, sobretudo, à envolvência sedutora do pas de deux de vida e morte da cena final.

                                             Wagner Corrêa de Araújo

OTELLO, com o Balleto di Roma, está disponível, até o dia 5 de novembro, no endereço : digital.dellarte.com.br 

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