Foi Você Quem Pediu Para Eu Contar a Minha História. Junho de 2015. Foto/ Beto Roma. |
A dramaturga francesa Sandrine
Rocha, ao escrever Neuf Petites
Filles (aqui, na titularidade brasileira, Foi Você Quem Pediu Para Eu Contar a Minha História), ao contrário
da abordagem da infância na clássica protagonização masculina no cinema de Jean
Vigo, Truffaut e Manoel de Oliveira, priorizou o olhar feminino.
Aqui, meninas estudantes, entre 9 e dez anos, num playground,
sob o pretexto de contar histórias, trazem a este inocente folguedo, uma
implicação questionadora de crianças com a sensibilidade trespassada por mágoas
e temores, no seu pequeno grande mundo familiar.
Na sua transposição para o palco, a direção de Guilherme Piva
concentra todas estas narrativas num quarteto de atrizes que, pela similaridade
de seus figurinos escolares (Carol
Lobato), torna-as facilmente identificáveis como colegas de colégio ou de
classe.
Mas é, a partir da caracterização personalista de cada uma que
se desenvolve este jogo controverso de dados, entre a malícia e a ingenuidade,
entre a faceirice refinada e a perversidade visceral.
Um duelo de perigosos artifícios que elas fingem compreender
pensando sempre em si próprias e nunca nos abismos das outras, num mergulho em
temas desafiadores como bullyng,
estupro, desafetos, complexos físicos, status social, inveja e traição, além do
próprio fantasma da morte.
O espaço cenográfico (Paula Santa Rosa/Rafael Pieri)
configura, adequadamente, um pequeno parque de diversões com balanços e grades,
recatadamente insinuado pela iluminação de Renato Machado.
O que propicia ao elenco alternar a nuance imobilista da
contação de histórias com um gestual de atléticos movimentos sobe/desce na
armação metálica e no vai e vem da gangorra, ressaltado nas incidentais
interferências sonoras de Marcelo Alonso Neves.
Enquanto as ambiguidades da “idade da inocência” alcançam uma
sensível identificação na performance de um convincente e coeso elenco feminino (Bianca
Castanho, Fernanda Vasconcellos, Karla Tenório, Talita Castro).
Mesmo diante de uma certa irregularidade da trama
dramatúrgica, que não consegue estabelecer uma efetiva sintonia entre o tom
assumidamente confessional dos personagens e a linha sequencial como um todo, a
direção de Piva se destaca pelo exímio contorno da concepção cênica.
Enfim, numa provocativa montagem capaz, entre fantasias e
pesadelos, de reflexionar um irônico retrato sem retoques de uma infância
ferida, protagonizada por anjos belos, mas cegos, surdos e terríveis como os demônios
Inspirado e adaptado do livro No Sufoco, uma das obras da
saborosa, mas propositalmente indigesta, literatura da transgressão do
americano Chuck Palahniuk, Cachorro Quente é uma exponencial
parceria dramatúrgica do ator Sacha Bali e do diretor João Fonseca.
Na continuidade do marco inicial da dupla teatral através de Pão Com Mortadela, por sua vez à base do romance de 1982 de Charles Bukowski, outro sanduíche - “Cachorro Quente”- é, mais uma vez, o
referencial temático dos traumas infantis do personagem protagonista (Sacha
Bali).
Onde, numa trajetória entre o comportamento anárquico e uma
ideologia da contraversão, ele busca, a qualquer custo, o fio propulsor das
armadilhas aplicadas ao seu obscuro destino.
Impossibilitado de chegar próximo à verdade com uma mãe
debilitada pelo Alzheimer, Luca
Mastroianni (Sacha Bali) não hesita jamais, ora diante de provocados
vômitos para escapar das contas de restaurantes burgueses, ou enquanto
mergulha, em absurda pulsão, nos vícios sexuais.
Com humor ferino, ao qual não faltam nuances escatológicas,
num clima metafórico, de obscenidades e ingênuo coloquialismo, o controverso
protagonista Luca (Sacha Bali) cruza
com a bizarrice comportamental de seus comparsas neste universo beat, onde a violência quanto mais fundo
desce mais estimula uma reflexiva
identidade, em compasso tragicômico, com a plateia .
Através de acentuado equilíbrio do elenco (Pedro Henrique
Monteiro, Renato Góes, Rosanna Viegas, Laila Zaid e Olívia Torres), a concepção
cênica minimalista (Nello Marrese), onde o acerto do figurino pop/futurista
torna quase dispensável o uso de caixas de papelão, tem o dinâmico apoio das luzes
de Paulo Neném.
Compartilhando, enfim, mimética e literariamente, a textualidade de Chuck Palahniuk e a convicta direção e dramaturgia em processo criador dúplice, a concepção cênica nunca permite que este Cachorro esfrie mas fique sempre quente como uma labareda.
Wagner Corrêa de Araújo
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