As casas que habitamos fazem parte intrínseca do processo de
suporte da condição humana - de seu itinerário de lembranças, entre entradas e
passagens, até o instante da saída definitiva pela porta dos fundos.
Para os que experimentaram o transmigrar-se de casa em casa,
não há como escapar do imaginário que cada uma delas imprime em nós,
especialmente nos anos de formação, entre a infância e a juventude.
Quem nunca se defrontou com móveis desmontados, louças
embrulhadas em jornal, livros amontoados em caixas de papelão, em meio ao
desenrolar infinito de rolos de fitas adesivas?
Quase como, na poética de Bandeira, se tudo estivesse prestes
a demolir aqueles momentos vividos na casa : “(...)Mas meu quarto vai ficar / Não como forma imperfeita / Neste mundo de
aparências: / Vai ficar na eternidade, / Com seus livros, com seus quadros /
Intacto, suspenso no ar!”.
E foi esta perplexidade diante do mover-se residencial em sua
história familiar que, certamente, inspirou o ator, dublê de escritor (Frank
Borges) a escrever um conto que, por insistência da amiga Cláudia Jimenez,
chegou ao palco com o emblemático título de Casa Encaixotada. Aqui o autor é o protagonista de suas próprias
vivencias, assumidas dramaturgicamente na tríplice demanda - autor/ator/diretor,
a última junto ao preciso lavor direcional de Ruy Filho.
Esta implosão catártica de reminiscências se constrói de
forma fragmentária, em inventivo processo de verbalização que não esconde o
incomodo de uma hermética particularização. Mas que, ao mesmo tempo, abre as
portas da percepção externa para a problemática universal com seu referencial
político e filosófico.
A arquitetura cenográfica (Ruy Filho) preenche o vazio
minimalista com expressivas alusões simbológicas, através do labiríntico
desdobramento das fitas adesivas. Quais fios de Ariadne demarcando gestos,
atitudes, posturas, gritos parados no ar, na impulsiva entrega performática e
confessional do autor / ator / personagem em busca de respostas.
A envolvência no jogo, mesmo com as insistentes nuances de
caótica interiorização, revela uma rica fluência textual e interpretativa,
capaz de conduzir o publico a uma reflexiva e especular interação com a proposta.
Afinal, já na sabedoria ancestral se confundia a casa com seu habitante : “Nós somos uma do outro: nós assistimos em comum a tudo o que acontece”.
Afinal, já na sabedoria ancestral se confundia a casa com seu habitante : “Nós somos uma do outro: nós assistimos em comum a tudo o que acontece”.
NÔMADES. Dezembro de 2014. Foto / Nana Moraes. |
Dois dramaturgos - Patrick Pessoa e Márcio Abreu, com a
colaboração de um terceiro – Newton Moreno, juntam-se, num processo coletivo, a
três atrizes Andrea Beltrão, Malu Galli e Mariana Lima, para nortear estes
passos anticonvencionais, mas plenos de impulso criativo, na livre proposta de
Nômades.
Tal como uma obra aberta aqui nada é conclusivo, as palavras
fluem entre os significados e os significantes das trajetórias existenciais de
um trio de mulheres e personagens que surgem, passam e movem-se na
transitoriedade do vir a ser, diante da fatal proximidade da morte de uma amiga
íntima.
E é exatamente este sentido instantâneo do passageiro que
mobiliza o amor próprio destas “anônimas", num roteiro dramatúrgico que se
confunde entre a representação da teatralidade e o apelo confessional .
Tornando-se mais vigoroso ainda com o efetivo alcance da
concepção cenográfica de Márcio Abreu e Fernando Marés, na acertada luz de
Nadja Naira, no adequado figurino (Cao Albuquerque e Natalia Duran), no
dinâmico score musical de Felipe Storino e no expansivo gestual de Márcia
Rubin.
Não importando se o que tem a ser dito possa ser expresso
pela palavra, pelo canto ou pelo movimento cênico individual, Malu, Andrea e
Mariana, perfeitamente sintonizadas, se exacerbam, se exaltam, se expandem numa
sensação sedutora do direito de dizer quem são através de suas experiências
cotidianas como mulheres, atrizes ou personagens.
Tudo conduzindo ,enfim , a um envolvente trabalho teatral com
tal liberdade inventiva, que acaba remetendo a um reflexivo conceito de Clarice
Lispector:
“O que verdadeiramente
somos é aquilo que o impossível cria em nós”.
Já em sua terceira temporada, a proposta teatral interativa
de Vou Deixar O Amor Para Outra Vida, com a Cia
Coletiva Capricórnio, tem texto de Rodrigo Monteiro e direção de Jorge
Farjalla.
Vinte convidados ao mesmo tempo espectadores são recebidos por cinco atores
em um apartamento em Copacabana para uma festa cênica onde não existem
delimitações teatrais. Ao chegarem são conduzidos a uma grande sala domiciliar,
subdividida em recantos acolhedores onde se acomodam e são, já no primeiro
momento, servidos com bebidas trazidas pelos anfitriões/atores .
De conversa em conversa vai se delineando um clima, entre o
real e o representado, criando uma curiosa expectativa no pequeno público, através
do prólogo do qual cada um dos espectadores participa ativamente.
Enquanto preparam uma mesa para um jantar informal, os atores
vão construindo uma ambientação narrativa em idas e vindas pela sala, em que
uma narradora/guia (Carol Loback) propõe uma trama dramatúrgica e onde se
percebe um encontro de amigos e ou amantes num ritual de desafogo. Como se fora no compasso de uma lavagem de mágoas sobre
final de relacionamentos, entremeada por memórias felizes.
Na primeira parte, um filósofo (Matheus Silvestre), um
economista (Ivan Vellame e Diogo Pasquim) e um diplomata (Diego Araújo) expõem
seu relacionamento afetivo no cruzamento de suas próprias trajetórias
existenciais, entre a simples amizade e o encontro sexual de fato.
Na segunda parte, a narradora se transforma em personagem e
jornalista, objeto de desejo, disputa e afeição entre um professor, um cantor e
dois músicos, ficando perceptível nos dois segmentos, nuances de amor e
traição, ternura e intolerância. De palavras antes, com palavrões depois.
Com um dinâmico comando (Jorge Farjalla), as marcações servem
de formulário para uma representação quase nos limites do improviso onde a
equilibrada performance do elenco destaca uma linha textual documentária do
dramaturgo / dublê de crítico (Rodrigo Monteiro) que imprime, na sua aparente
despretensão, uma especial originalidade ao espetáculo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário