INVESTIGATIVAS INCURSÕES DA NOVA DRAMATURGIA BRASILEIRA

CASA ENCAIXOTADA. Abril 2015. Foto / Patricia Cividanes.

As casas que habitamos fazem parte intrínseca do processo de suporte da condição humana - de seu itinerário de lembranças, entre entradas e passagens, até o instante da saída definitiva pela porta dos fundos.

Para os que experimentaram o transmigrar-se de casa em casa, não há como escapar do imaginário que cada uma delas imprime em nós, especialmente nos anos de formação, entre a infância e a juventude.

Quem nunca se defrontou com móveis desmontados, louças embrulhadas em jornal, livros amontoados em caixas de papelão, em meio ao desenrolar infinito de rolos de fitas adesivas?

Quase como, na poética de Bandeira, se tudo estivesse prestes a demolir aqueles momentos vividos na casa : “(...)Mas meu quarto vai ficar / Não como forma imperfeita / Neste mundo de aparências: / Vai ficar na eternidade, / Com seus livros, com seus quadros / Intacto, suspenso no ar!”.

E foi esta perplexidade diante do mover-se residencial em sua história familiar que, certamente, inspirou o ator, dublê de escritor (Frank Borges) a escrever um conto que, por insistência da amiga Cláudia Jimenez, chegou ao palco com o emblemático título de Casa Encaixotada. Aqui o autor é o protagonista de suas próprias vivencias, assumidas dramaturgicamente na tríplice demanda - autor/ator/diretor, a última junto ao preciso lavor direcional de Ruy Filho.

Esta implosão catártica de reminiscências se constrói de forma fragmentária, em inventivo processo de verbalização que não esconde o incomodo de uma hermética particularização. Mas que, ao mesmo tempo, abre as portas da percepção externa para a problemática universal com seu referencial político e filosófico.

A arquitetura cenográfica (Ruy Filho) preenche o vazio minimalista com expressivas alusões simbológicas, através do labiríntico desdobramento das fitas adesivas. Quais fios de Ariadne demarcando gestos, atitudes, posturas, gritos parados no ar, na impulsiva entrega performática e confessional do autor / ator / personagem em busca de respostas.

A envolvência no jogo, mesmo com as insistentes nuances de caótica interiorização, revela uma rica fluência textual e interpretativa, capaz de conduzir o publico a uma reflexiva e especular interação com a proposta.

Afinal, já na sabedoria ancestral se confundia a casa com seu habitante : “Nós somos uma do outro: nós assistimos em comum a tudo o que acontece”.

NÔMADES. Dezembro de 2014. Foto /  Nana Moraes.
Três mulheres, três atrizes, três amigas, reunidas para prestar um tributo a uma quarta que acaba de morrer e a simbologia de uma frase filosófica de Gilles Deleuze -“nada se move menos que um nômade”.

Dois dramaturgos - Patrick Pessoa e Márcio Abreu, com a colaboração de um terceiro – Newton Moreno, juntam-se, num processo coletivo, a três atrizes Andrea Beltrão, Malu Galli e Mariana Lima, para nortear estes passos anticonvencionais, mas plenos de impulso criativo, na livre proposta de Nômades.

Tal como uma obra aberta aqui nada é conclusivo, as palavras fluem entre os significados e os significantes das trajetórias existenciais de um trio de mulheres e personagens que surgem, passam e movem-se na transitoriedade do vir a ser, diante da fatal proximidade da morte de uma amiga íntima.

E é exatamente este sentido instantâneo do passageiro que mobiliza o amor próprio destas “anônimas", num roteiro dramatúrgico que se confunde entre a representação da teatralidade e o apelo confessional .

Tornando-se mais vigoroso ainda com o efetivo alcance da concepção cenográfica de Márcio Abreu e Fernando Marés, na acertada luz de Nadja Naira, no adequado figurino (Cao Albuquerque e Natalia Duran), no dinâmico score musical de Felipe Storino e no expansivo gestual de Márcia Rubin.

Não importando se o que tem a ser dito possa ser expresso pela palavra, pelo canto ou pelo movimento cênico individual, Malu, Andrea e Mariana, perfeitamente sintonizadas, se exacerbam, se exaltam, se expandem numa sensação sedutora do direito de dizer quem são através de suas experiências cotidianas como mulheres, atrizes ou personagens.

Tudo conduzindo ,enfim , a um envolvente trabalho teatral com tal liberdade inventiva, que acaba remetendo a um reflexivo conceito de Clarice Lispector:
O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós”.

Já em sua terceira temporada, a proposta teatral interativa de Vou Deixar O Amor Para Outra Vida, com a Cia Coletiva Capricórnio, tem texto de Rodrigo Monteiro e direção de Jorge Farjalla.

Vinte convidados ao mesmo tempo espectadores são recebidos por cinco atores em um apartamento em Copacabana para uma festa cênica onde não existem delimitações teatrais. Ao chegarem são conduzidos a uma grande sala domiciliar, subdividida em recantos acolhedores onde se acomodam e são, já no primeiro momento, servidos com bebidas trazidas pelos anfitriões/atores .

De conversa em conversa vai se delineando um clima, entre o real e o representado, criando uma curiosa expectativa no pequeno público, através do prólogo do qual cada um dos espectadores participa ativamente.

Enquanto preparam uma mesa para um jantar informal, os atores vão construindo uma ambientação narrativa em idas e vindas pela sala, em que uma narradora/guia (Carol Loback) propõe uma trama dramatúrgica e onde se percebe um encontro de amigos e ou amantes num ritual de desafogo. Como se fora no compasso de uma lavagem de mágoas sobre final de relacionamentos, entremeada por memórias felizes.

Na primeira parte, um filósofo (Matheus Silvestre), um economista (Ivan Vellame e Diogo Pasquim) e um diplomata (Diego Araújo) expõem seu relacionamento afetivo no cruzamento de suas próprias trajetórias existenciais, entre a simples amizade e o encontro sexual de fato.

Na segunda parte, a narradora se transforma em personagem e jornalista, objeto de desejo, disputa e afeição entre um professor, um cantor e dois músicos, ficando perceptível nos dois segmentos, nuances de amor e traição, ternura e intolerância. De palavras antes, com palavrões depois.

Com um dinâmico comando (Jorge Farjalla), as marcações servem de formulário para uma representação quase nos limites do improviso onde a equilibrada performance do elenco destaca uma linha textual documentária do dramaturgo / dublê de crítico (Rodrigo Monteiro) que imprime, na sua aparente despretensão, uma especial originalidade ao espetáculo.

                                           Wagner Corrêa de Araújo

VOU DEIXAR O AMOR PARA OUTRA VIDA. Dezembro de 2014. Foto/Divulgação.


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