FOTO /ANA BRANCO |
Há na trajetória mítica de Vaslav Nijinsky, o mais celebrado bailarino de todos os tempos, um transcendente componente psicofísico que se estende ao dimensionamento da duplicidade conceitual de sua vida e obra, dos anos de apogeu artístico ao trágico epilogo como um alienado mental.
Sua carreira meteórica interrompida inicialmente pela guerra e, sequencialmente, pela doença
deixou um legado emblemático, não só para a arte coreográfica mas também como
precursora de atitudes libertárias. Que vão da androgenia homoerótica e da espiritualidade corporificada (Eu sou o corpo...Eu sou Deus) ao confessionalismo rebelde e reflexivo de seu
pensamento delirante, expresso nos Diários
e nos esboços plásticos.
Chamando a atenção do público e da crítica com suas criações
carismáticas de personagens coreográficos marcados por uma potencialidade
especular personalística, no entremeio
da intenção narcisística e da pulsão
erótica. Capazes, assim, de referenciar a metapsicologia freudiana, o ideário sexualista de Foucault e o teatro da crueldade de Artaud.
Na transmutação da imaginária de seu próprio corpo na
representação de L'Après-Midi d'un Faune (“O Fauno sou eu”), da figura assexualizada de uma rosa
espectral (Spectre de la Rose), do “palhaço de Deus” manipulado como uma marionete humana (Petrouschka). Extensivos à vida privada onde desafiou a
moral e o conservadorismo expondo publicamente sua bissexualidade, no
relacionamento amoroso com seu empresário Sergei Diaghilev e no casamento com a
bailarina Romola de Pulszky.
No último caso servindo de mote para mais um dos teatros
coreográficos de Regina Miranda, titulado Romola
& Nijinsky, com luminosa performance dos atores / bailarinos Marina
Salomon e Antonio Negreiros, e a participação, muito especial, da atriz-cantora-pianista Clarice
Gonzallez.
Em nova releitura deste tema exponencial, desde o filme
de Herbert Ross em 1980, às versões para o palco, como a de Lynne Alvarez (2003),
além das incursões coreográficas, de Maurice Bejart a John Neumeier, e a mais
recente, 2016, de Marco Goecke.
Onde a narrativa dramática e o comando diretorial de Regina Miranda priorizam o feminino, não permitindo que Romola seja apenas a coadjuvante na
historia de um artista mítico, como na maioria das encenações biográficas. Em sua acurada textualidade sabendo como bem
equilibrar os dois relatos, a partir dos livros autorais tanto de Nijinsky como
de sua mulher.
Em onírica e provocante concepção dramatúrgica (Regina
Miranda), na interativa circularidade pela ambiência antiga do Castelinho do Flamengo que sugestiona, em composições minimalistas com móveis e objetos de época, preenchidas
pelas visualizações de preciosas criações plásticas de Amador Perez (Nijinsky : Variações), o muriliano universo de poesia e pânico dos
dois bailarinos.
Em glamourosa indumentária (Luiza Marcier), explorando com
densidade os contornos de seus personagens, sob sutis marcações luminares (Paulo
Brakarz), entre convictas aparições monologais e na densidade de dialetações conflitantes.
Sublinhando a ação, uma requintada trilha com prevalente referencial dos maiores êxitos nijinskyanos
(Weber, Debussy, Stravinsky), ora pré-gravada ora na viva envolvência dos acordes
pianísticos de Clarice Gonzallez.
Em assumida interiorização psicológica na tessitura das tonalidades
vocais, como na veemência grandiloquente ou na delicadeza do
gestualismo, de proposital recorrência coreográfica. Na sintonização espacial/emotiva
do doloroso desalento de dois personagens, perseguidos pelas lembranças de anos
de triunfo e atormentados pelos
fantasmas da ruína mental.
Experiência estética, de apelo sensorial para o livre
descortino das atitudes criadoras, da linguagem corporal no seu jogo teatral/coreográfico à precisão
de seus recursos histriônicos e
dramáticos, com um irreprensivel elenco de craques (de sua diretora/dramaturga Regina Miranda aos atores Marina Salomon e Antonio Negreiros).
De irrestrito magnetismo ainda na sua introspectiva
estrutura discursiva de encarnação do caos, no pleno domínio de um espetáculo de mágico compartilhamento
entre o homem, o artista e o louco, do Eu para o Outro no grito deísta de
Nijinsky : “Deus está em mim e eu estou em Deus”.
Wagner Corrêa de Araújo
ROMOLA & NIJINSKY
está em cartaz no Castelinho do Flamengo, de quinta a domingo, 19h. 75 minutos.
Até 1º de Setembro.
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