SANGUE : RELEITURA EDIPIANA SOB OLHAR CLÍNICO E SUBSTRATO POLÍTICO


FOTOS / DALTON VALÉRIO

Poeta e dramaturgo sueco, Lars Norén pertence a uma linhagem de autores dimensionados por um prevalente substrato psico-politico em peças que, sob um sutil sotaque de absurdidade, abordam as disfunções no modus vivendi familiar e seus reflexos especulares no contexto social.

Considerado o mais autêntico sucessor nacionalista de A. Strindberg, sua obra apresenta também um referencial psicossomático do difícil suporte da condição humana. Diante do implausível assombramento vivencial num cotidiano de crueldade, de desalento e de desesperança.

O que levou Norén a escrever uma peça - Sangue - sinalizada por predestinações implacáveis na trajetória de seus personagens aproximando-os, assim, por estes caracteres de metafórica transposição e na especificidade consanguínea dos seus protagonistas, da amarga saga ancestral do Édipo Rei de Sófocles. 

Aqui, através da narrativa dramática sobre  uma jornalista chilena  - Rosa (Luciana Braga) – torturada após o golpe de Pinochet, juntamente com seu marido e psiquiatra Eric (Charles Fricks), obrigando os ao exílio parisiense. E que, durante um programa francês de tevê, entrevistada por Madeleine (Sura Berditchevsky) fala sobre o filho de oito anos, deixado para trás como mais um dos desaparecidos pela ditadura militar.

Surgindo, a partir daí, um quarto personagem o jovem Luca (Pedro Di Carvalho) ex-paciente e, ao mesmo tempo, tornado amante de Eric com quem ele dialoga, do consultório, por telefone em acionamento simultâneo com o depoimento televisivo de Rosa.

Sequencialmente, se sucedendo revelações como a AIDS de Luca, o caso homossexual e o envolvimento sexual súbito deste com Rosa com o sintomático revés do parentesco filial. Culminando, enfim, no fatídico encontro dos três personagens, direcionando-os à terminalidade fatal do enigma.

Bruce Gomlesvsk pela segunda vez incursiona pela obra de Lars Nolén, depois de sua visceral versão da psicopatologia dos traumas existenciais na insensatez infernal de Demônios, que ele trouxe, com êxito crítico e retorno de público, aos palcos brasileiros em 2016.

Mas esta retomada enfrenta, agora, o desafio de uma dramaturgia previsível, sem a força da anterior, na obviedade quase simplória de pistas referenciais (como o sinal do pé machucado de Luca), para desnudar o complexo edipiano sob um generalizado e pretensioso sustento conceitual dos desmandos ditatoriais de um país sul americano.

Onde o clima cáustico de amores rastejantes no entremeio de ódio, acerto de contas  e solidão, acaba se confundindo com estéreis saídas psicopáticas, como o sugestionamento dramático dos mecanismos sadomasoquistas  de domínio e submissão da vítima  ao  torturador, transubstanciados respectivamente por Rosa e Eric.

Mesmo assim, é superativo o élan inventivo do sempre energizado comando diretorial de Gomlevsky, ampliado na funcional mobilidade (com o uso de baús) da ideia cenográfica (em parceria com Vinicius Fragoso), no coloquialismo elegante da indumentária (Maria Duarte) e na solidez das marcações luminares (Felício Mafra, vulgo Russinho). Além da precisa incidentalidade no acento de climas emotivos através da trilha sonora de Marcelo Alonso Neves.

Sabendo ligar o gesto à palavra, em convicto intencionalismo performático, os atores Luciana Braga e Charles Fricks seguram bem os tempos dramáticos e preenchem os incômodos vazios da narrativa. Com uma favorável participação de Sura Berditchesvky na interveniência episódica de um  papel mais discricionário.

O estreante no palco teatral Pedro Di Carvalho é um intérprete quase pronto para o papel mas incorrendo numa sensorialidade física um tom acima. Faltando-lhe, ainda, um necessário embasamento de carga introspectiva, sendo ele o elemento propulsor dos transes humanos, emissário de vísceras e sangue, de um édipo com o olhar armado na contemporaneidade. 

                                      Wagner Corrêa de Araújo


SANGUE está em cartaz no Sesc Copacabana ( Teatro de Arena) de quinta a domingo, às 19h. 100 minutos. Até 1º  de setembro.

MARLENE DIETRICH–AS PERNAS DO SÉCULO : SEDUÇÃO E ECLIPSE DE UMA DIVA



Marlene Dietrich...teu nome começa como uma carícia e acaba como uma chicotada”, assim a definia o amigo/ poeta Jean Cocteau. Ou, então, pela visão do escritor Ernest Hemingway dirigida à sua fiel legião de admiradores – “Se possuísse apenas sua voz, ela já teria como rasgar -lhes o coração”.

Esta foi a diva que, por sete décadas, teve em sua trajetória artístico/existencial a companhia estética ou, muitas vezes, amorosa de nomes emblemáticos como Max Reinhardt, Josef von Sternberg, Fritz Lang, Billy Wilder, Edith Piaf, Gary Cooper e Jean Gabin, entre o cinema e o show business, até seu crepúsculo de artista divinal, na solidão de um rico apartamento em Paris.

E que nunca deixou de surpreender pelo caráter e pela coragem, ao despojar-se de seu estado de femme fatale no embate por causas mais urgentes, como o seu engajamento artístico nas tropas aliadas, assumindo a luta contra o totalitarismo nazista.

Este o tema do belo texto de Aimar Labaki - Marlene Dietrich - As Pernas do Século que, por sua nuance cronológica e no adequado tom didático, atingiu uma idealização dramatúrgico-visual de intimista envolvência estética no seguro comando diretor de William Pereira. 

Em palco assumidamente despojado, via raros elementos materiais, sugestionando outrossim sensações oniricas, sob expressivas marcações luminares (Paulo Cesar Medeiros) de climatismo melodramático no entremeio de sombras. 

Onde, na presença de um trio (Vinicius Carvalho/clarinete, Luciano Corrêa/violoncelo e Roberto Bahal/piano), o score sonoro incidental a partir dos temas melódicos que eternizaram a atriz/cantora, do cinema ao teatro de cabaret, alcança uma contagiante sonoridade nos arranjos musicais de Roberto Bahal. 

Destaque-se ainda o equilíbrio do figurino (Marcelo Marques), da elegância à sobriedade, acentuado no preciso gestual de Márcia Rubin e pelos caracteres visagistas (Beto Carramanhos).

E na convincente atuação de exponenciais atores/cantores (José Mauro Brant e Maurício Baduh) além de Marciah Luna Cabral, todos com uma especial entrega à performance cênico/vocal de personagens da trajetória artístico/existencial da Dietrich. Incluindo-se, ainda, o substrato provocador de uma energizada passagem coreográfica (Paulo Masoni) em tempo de tango.

Quanto à protagonista Sylvia Bandeira, ela nunca deixa de ser brilhante, tanto na representação da naturalidade cotidiana da idade crepuscular como na irradiante glória de uma carreira estelar, ampliada através da projeção de cenas clássicas de filmes e nostálgicas fotografias .

Tudo isto, enfim,  conduzindo à mágica simbiose de uma atriz dividida entre o mito e a memória, o real e o imaginário, assumindo com tal carisma o personagem que ela se encarna nele e ele se encarna nela.

                                                 Wagner Corrêa de Araújo


MARLENE DIETRICH – AS PERNAS DO SÉCULO, de volta ao cartaz , no Teatro Prudential/Glória, sextas e sábados, às 21h; domingo, às 19h. 90 minutos. Até 09 de outubro.

NA CASA DO RIO VERMELHO – O AMOR DE ZÉLIA E JORGE: EMOTIVA DRAMATURGIA DO EU E DO OUTRO

FOTOS/ CLÁUDIA RIBEIRO

Imune ao vinagre, às amarguras e aos rancores, ecoando as palavras energizadas de Zélia Gattai para o enfrentamento da difícil travessia, entre os dissabores e o desalento, de uma Nação quando imersa em estado de alerta e de assombramento.

Para amenizar as chuvas cinzentas, o retrocesso político e comportamental, com a cultura no front dos ataques, nada como navegar, em metafórica compensação, pelo inventário amoroso de um dos mais sensitivos e poéticos casais da história literária do País.

Onde a artesanal transposição dramatúrgica e diretorial de Renato Santos titulada Na Casa do Rio Vermelho – O Amor de Zélia e Jorge, reune a atriz Luciana Borghi e o músico dublê atoral Pedro Miranda na personificação de uma trajetória memorialística, concebida originalmente como homenagem ao centenário da escritora.

Na simplicidade funcional de uma proposta cênica de envolvente textualidade, dividida entre o relato confessional e o retrato documental, capaz de resgatar o orgulho cidadão ferido diante de um legado cultural em processo de desconstrução à causa de uma governança ignara e insensata.

A progressão dramática se desenvolvendo a partir de um suposto último dia de Zélia Gattai (Luciana Borghi) na baianidade da Casa do Rio Vermelho, palco do convívio vivencial com Jorge Amado na profícua relação de quatro décadas de amor, literatura e arte.  

Numa ambiência cenográfica (Renato Santos) de minimalismo intimista onde são vistas uma cadeira antiga de palhinha, malas e caixas com parte dos pertences do casal baiano/paulista no imaginário desmonte melancólico da casa logo após a morte do marido e escritor.

Sob vazados efeitos luminares (Luiz Fernando) sugestionando um clima de nostalgia propício à contação de passagens existenciais da celebrada dupla de intelectuais. Com os dois atores vestidos coloquialmente (Goya Lopes) e onde  a elegante túnica branca bordada da atriz traz um sutil referencial indumentário dos terreiros de candomblé.

Extensivo aos instrumentos percussivos típicos, acrescidos de um violão, na espontaneidade interativa de Pedro Miranda (dúplice de ator-diretor musical) em autentificadas personificações dos cantares vocais-instrumentais de Dorival Caymmi a Vinicius de Moraes, passando por Jackson do Pandeiro, sem deixar de fluir a prevalência das falas do próprio Jorge Amado.

Tudo integralizado, em irrestrita pulsão emotiva, nesta retomada da parceria (Borghi e Miranda) de musicalidades teatrais através dos autos de cultura folclórico/nativista. Aqui, com uma proposta diferencial via recortes ficcionais memorialistas dos livros de Zélia, além de depoimentos sobre uma época que abrange fatos e personalidades do Brasil e dos anos de exílio europeu.

Com um destaque mais que especial para amigos como Neruda, Sartre, Glauber, Tom Jobim, João Ubaldo, Carybé, entre muitos outros habitués dos ricos encontros domiciliares regados por temas políticos e literários e muita cultura popular, das tipicidades gastronômicas ao sincretismo religioso.

Em seu livro A Casa do Rio Vermelho, de similaridade titular com a peça, Zélia denominava aquele espaço de A Casa da Memória do Outro, em desambiciosa atitude tributária ao amante/escritor como se ela fosse apenas um apêndice daquele universo mágico.

Dez anos após a sua publicação, Luciana Borghi, com sustento valoroso da despretensiosa visão concepcional sob o comando mor de Renato Santos, dá uma resposta luminosa à postura comedida de Zélia Gattai, com este afetuoso desdobramento interpretativo entre a autora e a personagem.

Tomada de paixão e plena de técnica, em reverente performance dedicada a uma das mais lídimas  representantes do poder feminino na história pátria de ontem e de hoje, em  veemente colocação do seu justo papel nesta comovente e carismática história de poesia e amor.

                                        Wagner Corrêa de Araújo  


NA CASA DO RIO VERMELHO–O AMOR DE ZÉLIA E JORGE está em cartaz no Teatro Prudential/Glória, sábados às 17h. 70 minutos. Até 7 de setembro.

ROMOLA E NIJINSKY : EM MÁGICA TRAVESSIA COREODRAMÁTICA, O DEUS DA DANÇA E SEU DUPLO

FOTO /ANA BRANCO

Há na trajetória mítica de Vaslav Nijinsky, o  mais celebrado bailarino de todos os tempos, um transcendente componente psicofísico que se estende ao dimensionamento da duplicidade conceitual de sua vida e obra, dos anos de apogeu artístico ao trágico epilogo como um alienado mental. 

Sua carreira meteórica interrompida inicialmente  pela guerra e, sequencialmente, pela doença deixou um legado emblemático, não só para a arte coreográfica mas também como precursora de atitudes libertárias. Que vão da androgenia homoerótica e  da espiritualidade corporificada (Eu sou o corpo...Eu sou Deus) ao confessionalismo rebelde e reflexivo de seu pensamento delirante, expresso nos Diários e nos esboços plásticos.

Chamando a atenção do público e da crítica com suas criações carismáticas de personagens coreográficos marcados por uma potencialidade especular personalística, no entremeio da intenção narcisística e da pulsão erótica. Capazes, assim, de referenciar a metapsicologia freudiana, o ideário sexualista de Foucault e o teatro da crueldade de Artaud.

Na transmutação da imaginária de seu próprio corpo na representação de L'Après-Midi d'un Faune (“O Fauno sou eu”), da figura assexualizada de uma rosa espectral (Spectre de la Rose), do “palhaço de Deus” manipulado como uma  marionete humana (Petrouschka).  Extensivos à vida privada onde desafiou a moral e o conservadorismo expondo publicamente sua bissexualidade, no relacionamento amoroso com seu empresário Sergei Diaghilev e no casamento com a bailarina Romola de Pulszky.

No último caso servindo de mote para mais um dos teatros coreográficos de Regina Miranda, titulado Romola & Nijinsky, com luminosa performance dos atores / bailarinos Marina Salomon e Antonio Negreiros, e a participação, muito  especial, da atriz-cantora-pianista Clarice Gonzallez.

Em nova releitura deste tema exponencial, desde o filme de Herbert Ross em 1980, às versões para o palco, como a de Lynne Alvarez (2003), além das incursões coreográficas, de Maurice Bejart a John Neumeier, e a mais recente, 2016, de Marco Goecke.  

Onde a narrativa dramática e o comando diretorial de Regina Miranda priorizam o feminino, não permitindo que Romola seja apenas a coadjuvante na historia de um artista mítico, como na maioria das encenações biográficas. Em sua acurada textualidade sabendo como bem equilibrar os dois relatos, a partir dos livros autorais tanto de Nijinsky como de sua mulher.

FOTO / LUIS CANCEL

Em onírica e provocante concepção dramatúrgica (Regina Miranda), na interativa circularidade pela ambiência antiga do Castelinho do Flamengo que sugestiona, em composições minimalistas com móveis e objetos de época, preenchidas pelas visualizações de preciosas criações plásticas de Amador Perez (Nijinsky : Variações), o muriliano universo de poesia e pânico dos dois bailarinos.

Em glamourosa indumentária (Luiza Marcier), explorando com densidade os contornos de seus personagens, sob sutis marcações luminares (Paulo Brakarz), entre convictas aparições monologais e na densidade de dialetações conflitantes. Sublinhando a ação, uma requintada trilha com prevalente referencial dos maiores êxitos nijinskyanos (Weber, Debussy, Stravinsky), ora pré-gravada ora na viva envolvência dos acordes pianísticos de Clarice Gonzallez.

Em assumida interiorização psicológica na tessitura das tonalidades vocais, como na veemência grandiloquente ou na delicadeza do gestualismo, de proposital recorrência coreográfica. Na sintonização espacial/emotiva do doloroso desalento de dois personagens, perseguidos pelas lembranças de anos de triunfo e atormentados pelos fantasmas da ruína mental.  

Experiência estética, de apelo sensorial para o livre descortino das atitudes criadoras, da linguagem corporal no seu jogo teatral/coreográfico à precisão de seus recursos histriônicos e dramáticos, com um irreprensivel elenco de craques (de sua diretora/dramaturga Regina Miranda aos atores Marina Salomon e Antonio Negreiros).

De irrestrito magnetismo ainda na sua introspectiva estrutura discursiva de encarnação do caos, no pleno domínio de um espetáculo de mágico compartilhamento entre o homem, o artista e o louco, do Eu para o Outro no grito deísta de Nijinsky : “Deus está em mim e eu estou em Deus”.
                                 
                                            Wagner Corrêa de Araújo

FOTO /AMADOR PEREZ

ROMOLA & NIJINSKY está em cartaz no Castelinho do Flamengo, de quinta a domingo, 19h. 75 minutos. Até 1º de Setembro.

POR QUE NÃO VIVEMOS ? : MELANCOLIZAÇÕES ASSUMIDAS SOB UM COMPASSO DE CAOS

FOTOS/NANA MORAES

Platonov, de 1878, é um pouco lembrado experimento da linguagem teatral de Tchekhov nos seus dezoito anos cronológicos, mas já em perceptível processo imersivo naqueles que seriam os fundamentos de seu legado estético à história da dramaturgia universal.

Talvez propositalmente esquecido num baú de guardados, não só pela incomoda extensão de seus cinco atos, mas ainda por sua textualidade de carácter fragmentário ou por ser reiterativamente indagativo nos procedimentos da composição  definitiva de sua escritura cênica.

Onde aparecem os primeiros traços, sutilizados  e ainda com lacunas, do que seria uma elementar antecipação do substrato realista/psicológico, marca presencial das obras futuras do escritor e dramaturgo russo. E que levaria ao conceitual e às muitas teorizações inventivas de Stanislavski sobre o acionamento psicofísico na representação  teatral.

Mesmo considerada um desafio a sua encenação em tempos modernos, vez por outra tem ressurgido pela desconstrução de sua gramática cênica nas livres releituras, sempre de olhar armado na contemporaneidade. Como na década de 1970, inspirando o cineasta Nikita Mikhalkov, através do bem-humorado e irônico teor crítico de seu filme Peça Inacabada para Piano Mecânico.

Em sua propriedade rural uma rica viúva promove um jantar de congraçamento entre amigos no qual se exibe uma burguesia russa à beira da ruína social. Conflituada em suas próprias racionalizações da perda do sentido da condição humana e sobre a “detestável” monotonia e o entediante fardo de seu falido universo existencial.

No desencanto pelo momento vivido e sem o alcance imediato de quaisquer caminhos para uma saída final, esta transposição, com o signo da atemporalidade na visceralizada conduta diretorial de Márcio Abreu, remete, metaforicamente, à crise vivencial num país sem eira e sem beira, sob a incompetente conduta de sua classe governante. No entremeio especular do mal estar e da vontade de viver, na premente necessidade de revolta e de apelo, outrossim, por um movimento capaz de radical metamorfose politico/social.

Ainda que o tratamento desta presente montagem aparente distanciar-se de um original tchekhoviano ao transcender sua interiorização, na quebra de elementos básicos como suas pausas e silêncios. E por uma quase transgressiva representação acional, sob a pulsão de nervosa linguagem corporal (Marcia Rubin), dos estados emotivos dos personagens diante de um prevalente vazio.

Com dois módulos/atos diametralmente opostos indo do sonho ao pesadelo, entre a encenação realista e uma cinética ação interior. Integrando ao contexto criador, em convicta e consistente entrega e adesão aos seus papéis, um harmônico octeto atoral (Camila Pitanga, Cris Larin, Edson Rocha, Josi Lopes, Kauê Persona, e três Rodrigos, com seus respectivos sobrenomes - Bolzan, Ferrarini e Dos Santos).

Em espontânea, ora rompante ora irreverente, interatividade da paisagem cenográfica (Marcelo Alvarenga) que extrapola os limites da caixa cênica, incluindo a plateia e as áreas espaciais no além das portas do teatro, pelo compartilhamento vivo -atores/espectadores - de lúdicas ou invasivas cenas.

Sob um desenho luminar (Nadja Naira) propulsor de gradativas nuances ambientais, ressaltando contrastes materializados no tropicalismo exacerbado da indumentária (Paulo André e Gilma Oliveira) ou em psicodelizadas projeções plástico-fotográficas (Batman Zavareze), sustentadas por incisivas intervenções sonoras (Felipe Storino).

Justificando, enfim, a encenação atualizada, pela Companhia Brasileira de Teatro, de um texto menos valorizado da juventude de Tchekhov, aqui sob a titulação significante de Por Que Não Vivemos?. Que transmite, nos investigativos questionamentos concepcionais de seu comando mor (Márcio Abreu), um necessário e reflexivo recado para dias vividos hoje como aqueles, entre o desalento, a dúvida e as sombras.

                                                Wagner Corrêa de Araújo


POR QUE NÃO VIVEMOS está em cartaz no Teatro I do CCBB/Centro/RJ, de quarta a domingo, às 20h. 150 minutos. Até 18 de agosto.

PETER PAN : UMA FANTASIA MUSICAL PARA TODAS AS IDADES

FOTOS/LEO AVERSA

O Menino Que Nunca Quis Crescer, mais conhecida como Peter Pan, é uma clássica história, pensada inicialmente para adultos antes de seu sucesso como uma fábula de gosto infanto-juvenil, sendo tema da única peça (original de 1904) a preservar a memória do dramaturgo escocês James M. Barrie (1860-1937).

Com estreia nos palcos nova-iorquinos em 1905, tendo sua primeira concepção como teatro musical em 1924, com canções de 
Jerome Kern, voltando à cena 30 anos depois, com a inserção de  outros temas, desta vez por Leonard Bernstein.

Seguiram-se as versões mais conhecidas, já com todas as marcas estilísticas de  um espetáculo da Broadway, em 1954 e o revival de 1979, estes com a definitiva parceria Mark Charlap/Jule Styne na trilha, e de Carolyn Leigh, Betty Comden e Adolph Green, no libreto. A primeira com uma celebrada coreografia de Jerome Robbins, substituída na seguinte, pela de Rob Iscove.

Por este rápido traçado histórico, depreende-se já que a versão prevalente perdeu a qualificação de nomes musicais do porte de Kern e Bernstein e coreográficos com o peso de Robbins. Perceptível em sua pouca inspirada partitura, sem o pleno domínio no alcance de acordes melódicos com apego memorial para qualquer espectador.

Salvando-se pela envolvência de uma trama capaz de encantar gerações dos oito aos oitenta pelos carácteres oníricos e fantasiosos desta transposição dramatúrgica sobre um garoto voador recusando-se a crescer e mudar de idade na sua trajetória, de substrato metafórico, pela Terra do Nunca.

Com as paralelas situações, dramático/cômicas, do enfrentamento do Capitão Gancho e seus piratas e o encontro com os irmãos Darling –Wendy, John e Michael - que o herói faz compartilharem de suas aventuras delirantes, no entremeio dos pós mágicos da fada Sininho, meninos perdidos e tribos indígenas. Tendo rendido, inclusive, populares versões cinematográficas como a de Walt Disney, além de séries de animação e de quadrinhos.


Há, aqui, neste Peter Pan – Um Musical da Broadway uma apurada funcionalidade na criação cenográfica (Renato Theobaldo e Beto Rolnik), embora sem nenhum avanço inventivo com sua  proximidade absoluta do realismo tradicionalista. Quebrado apenas pela tecnologia dos efeitos luminares (Eduardo Esdra e Rangel Dantas), mirabolantes insumos cinéticos e intrépidos voos espaciais dos personagens protagonistas (Peter Pan, a fada Sininho, Wendy e seus dois irmãos).

Na envolvência móvel de sua caixa cênica a travessia dos três momentos básicos - o quarto da família Darling, a casa florestal dos meninos perdidos e a clareira dos índios mais o navio pirata - com retorno, no epílogo, ao primeiro quadro (mostrando, então, maior fluência nesta volta à cena domiciliar). Extensivo, para a sua completude plástica, aos chamativos figurinos (Thanara Schönardie e Toninho Miranda) alternando de tonalidades mais discricionárias ao exagero aquarelista.

Lamentando-se apenas a falta ao vivo da brilhante execução paulista dos arranjos e da direção musical (Carlos Bauzys), tornada menor na temporada carioca com a base instrumental gravada embora sustentando a autenticidade dos cantares do elenco.

Por outro lado, o coesivo acerto na escolha dos atores/cantores, com aplauso critico, de público e de prêmios teatrais paulistas, sofreu certo prejuízo em determinadas escalações para as apresentações na Grande Sala da Cidade das Artes. Tais como a de uma Wendy (Karina Mathias) sem a força performática/vocal  de uma Bianca Tadini, mesmo tornada substituta desta no meio da saison do Teatro Alfa.

Reparo que se estende a um carismático Capitão Gancho por Daniel Boaventura comparativamente com as limitações vocais de Tuca Andrada no papel, apesar de seu louvável esforço. E na seleção mais adulta de representação das crianças - John Michael - em contraponto a uma mais convincente atuação dos atores infanto/juvenis na Paulicéia.

Completando-se a panorâmica performática original, com a  irreverência  bem humorada e debochada de Pedro Navarro (Smee) e uma poderosa entrega gestual de Carol Botelho ao seu personagem Tiger Li na cena dançante Uga Uga. Com o destaque irrestrito do carismático presencial, em tríplice exercício acrobático/artístico como ator-cantor-bailarino, do protagonista titular Mateus Ribeiro, uma das mais gratas revelações deste genero em nossos palcos.

Sem deixar de falar numa apoteótica incursão coreográfica de Alonso Barros em danças características com sotaque contemporâneo capaz de fazer jus, ao lado do comando concepcional/diretor de José Possi Neto, à integralização de corajoso desafio como realização estética em tempos tornados difíceis e obscuros para o futuro do musical em padrões brasileiros.

                                         Wagner Corrêa de Araújo 


PETER PAN – O MUSICAL DA BROADWAY está em cartaz na Cidade das Artes/Barra, sexta às 20h30m; sábado e domingo, às 16 e às 20h. 140 minutos. Até 18 de agosto

A PONTE : COMÉDIA DRAMÁTICA COM REFERENCIAL TCHEKHOVIANO

FOTOS/ FLAVIA CANAVARRO E ISMAEL MONTICELLI

Você pode imaginar um pedaço do universo / mais adequado para príncipes e reis?/ Eu trocaria dez das suas cidades pela Ponte Marion”... Foi a partir deste verso de uma popular canção folclórica canadense que Daniel Maclvor se inspirou para escrever Marion Bridge,  com versão para o palco e para as telas.

E que, agora,  tem sua primeira montagem brasileira titulada A Ponte, sob o comando concepcional de Adriano Guimarães para bem cuidada tradução de Bárbara Duvivier, dramaturgicamente viabilizada por Emanuel Aragão.

E não há como não detectar traços que tornam próximo o drama doméstico das três irmãs de Daniel Maclvor daquele vivenciado pelo celebrado trio familiar feminino no retrato dramatúrgico de Anton Tchekhov.

Numa província da pequenina comunidade de Marion, na Nova Escócia, identificando-se no mesmo desejo de alcançar o paraíso do sonho, onde o lugar da distante Moscou, aqui,  é metaforizado como uma ponte.

Perceptível, ainda, na prevalente angústia de uma melancólica expectativa pelo ansiado dia neste espaço que, enfim, transcenderia, em processo redentor, as adversidades na trajetória existencial das três irmãs.

Agnes (Debora Lamm), uma atriz frustrada refugiando-se no álcool, Theresa (Bel Kowarick), freira de santidade prosaica numa comunidade agrícola, e Louise (Maria Flor), a caçula, disfarçando suas inseguranças nas novelas e séries  televisivas.

Na patética busca por acertos de conta do passado e pelo questionamento do futuro, em vidas paralelas pela consanguinidade, no decisivo reencontro deste tríduo feminino parental motivado pela iminência terminal da mãe agonizante.

Onde a paisagem cenográfica realista (Adriano Guimarães e Ismael Monticelli) lembra uma instalação plástica na sua prevalência tonal rubra e sob dispersivos elementos materiais. Sugestionando uma cozinha, centralizada por uma extensa mesa ladeada por objetos de uso doméstico, encimada no painel ao fundo por uma cruz em néon.

Com ambientalistas efeitos luminares vazados (Wagner Pinto) e figurinos de sotaque cotidiano (Ticiana Passos), extensivo ao gestual (Denise Stutuz), no entremeio de saídas e entradas das atrizes, sob sutis e episódicas intervenções sonoras.

Ao compasso das lembranças dos tempos de convívio familiar e das pós-experiências vivenciais de cada uma das personagens, afloram ressentimentos, explosões nervosas e desabafos amargos, na esperança de uma contemporização só passível num possível passeio à ponte.

Em potencializada representação da irreverência desmoralizante com a Agnes, de Debora Lamm, reabrindo feridas em torno da sua gravidez indesejada e da ausência paternal, num dos melhores papéis de sua carreira. Confrontando-se com os silêncios  e a apatia de uma Louise taciturna conceituando o mundo pela televisão, em performance mais discricionária de Maria Flor.

Ambas sendo direcionadas pelas interveniências com apelo moral/religioso de Theresa (ainda que esta disfarce sempre suas dúvidas e descrenças pessoais) para fazer frente aos estigmas disfuncionais, em polos radicalmente opostos, das duas outras irmãs. Numa convicta entrega psicofísica de Bel Kowarick ao papel, este de reflexo mais conciliador. 

Para fazer frente a um texto mais conservador de Daniel Maclvor, depois da maior ousadia e avanços de peças suas já vistas na cena brasileira (In on It, à Primeira Vista, Aqui Jazz Henry, Cine Monstro), a direção de Adriano Guimarães, mais uma vez, procura para dar livre pulsão a um teatro sintonizado na contemporaneidade.

Com as inventivas rubricas de seu jogo cênico, tanto na competência artesanal para conferir ao espetáculo um substrato estético plástico, como pelo alcance de uma energizada teatralidade de coesa interação das passagens mais dramáticas àquelas com maior lastro de comicidade, fazendo, assim, de A Ponte uma das boas surpresas da presente temporada teatral.

                                              Wagner Corrêa de Araújo


A PONTE está em cartaz no Teatro II, do Centro Cultural do Banco do Brasil/RJ, de quinta a segunda, às 19h30m. 120 minutos. Até 12 de agosto.

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