INTERIOR : SOMOS MARIONETES NO PALCO DA VIDA

FOTOS/ RENATO MANGOLIN

O teatro simbolista de Maurice Maeterlinck, na sua melancolizada retratação da trajetória humana sob a implacabilidade do destino,  revela ora traços do niilismo  de Schopenhauer, ora remete à passibilidade dos personagens de Tchekhov.

E, assim, as criações do dramaturgo belga contextualizam metaforicamente as representações no palco, onde os atores não passariam de marionetes sob o jugo de forças externas, como meros joguetes das adversidades existenciais que os direcionam da vida para a morte.

O que ele induz, com perceptível clareza, no substrato  temático de sua peça de 1894, Interior, originalmente de concepção absoluta para este gênero de representação por fios manipulados, mas que, ao longo do tempo, deixou o rigorismo de sua exclusiva ligação a este particular estilo.

Precedida, em formato tradicionalista,  pela celebrada Pelléas et Mélisande, de 1892, verdadeira síntese de seu teatro simbolista. Inicializando um irresistível pulso inspirador de suas obras para composições musicais de Debussy, Fauré, Honegger, Paul Dukas, Sibelius e Schoenberg.

Num de seus ensaios, o autor explicava as bases  de seu “drama estático” pela prevalência de um códice cênico em que a expressão da realidade no palco deveria acontecer através de alegorias e metáforas, alterativas do não dito ao decifrável, provocando sensorial imersão do espectador na narrativa dramático/poética.

Aqui, em acurada  tradução de Fatima Saad, este Interior, de materialidade lírico/teatral, mostra um núcleo familiar - um casal (Tadeu Matos e Gê Lisboa), suas duas filhas mais jovens (com elenco alternativo) e uma criança de colo - visualizado através de janelas iluminadas de um espaço domiciliar.

Enquanto na área externa, que se estende pela arena e pelas escadas laterais, sugestionando um bosque, há um velho hesitante (Tomaz Nogueira da Gama), seguido por um estrangeiro (Felipe Pedrini), diante do trágico dever de comunicar-lhes a morte, por afogamento, da irmã primogênita, em irrepreensíveis performances em torno da dor e da dúvida.

Via emblematizada arquitetura cenográfica móvel (Mina Quental), sob precisos efeitos luminares (Ana Luzia de Simoni / João Gioia), sugestionando, em sutis marcações, uma ambientação de assombramentos ladeada por galhos secos.

Ampliada por sensitiva trilha sonora (Karina Neves e Jonas Hocherman) de recortes impressionistas, no entremeio dos matizes pastéis de um figurino de época (Tiago Ribeiro) e de impactante mascaração, signo inventivo da Cia dos Bondrés.

Onde a densidade expressiva de um pulsante elenco, entre a silenciosa gestualidade do grupo familiar quais marionetes sob manipulação, confronta-se em atmosfera hipnótica, com o movimento dos aldeões (incluído um coro de teatralidade greco/trágica portando máscaras) na circularidade da paisagem cênica.

Em carismático comando mor de Fabianna de Mello e Souza  transmutado em preciosa surpresa da temporada, capaz de fazer reflexionar, com pungente e rara sensibilidade estética, sobre o difícil  suporte  da fatalista temporalidade da condição humana.

                                         Wagner Corrêa de Araújo


INTERIOR está em cartaz no  Sesc/Copacabana (Teatro de Arena), de quinta a domingo, às 19h. 60 minutos. Até 7 de julho.

PEÇA DO CASAMENTO : RELACIONAMENTO DISFUNCIONAL SOB PAISAGEM CÊNICA ESPECULAR

FOTOS/FLAVIA CANAVARRO

Desde o êxito da abordagem dos conflitos afetivos e profissionais de dois casais em sua peça de 1962 – Quem Tem Medo de Virginia Woolf? – o dramaturgo Edward Albee ficou marcado pela densidade visceral de seus questionamentos, de transcendência metafísica, das relações conjugais.

Temática a que ele volta em 1992 com Peça do Casamento numa espécie de reciclagem do tema. Desta vez, reduzido a um casal e num embate, mais naturalista e sensorial, com prevalência do dimensionamento psicofísico na convivência íntima entre um homem e uma mulher.

Sem o dúplice enfoque das insatisfações afetivas e intelectuais, presencial nas discussões do dúplice casal da peça de trinta anos antes, onde ambos eram integrantes da comunidade acadêmica. Retratando, aqui, apenas o estereótipo do vazio  ao qual é conduzida a disputa de egos e de sexualidades, contextualizados em claustrofóbica rotina da vida doméstica.

E que o comando diretorial de Guilherme Weber potencializa em metafórica representação de um palco vazio, contornado pelos reflexos simultâneos da dupla de atores (Eliane Giardini e Antônio Gonzalez) e do público em incisiva paisagem cênica especular (Daniela Thomas e Camila Schmidt).

Sem qualquer outro elemento plástico salvo a materialidade de um livro e a simbológica corporeidade de um homem e de uma mulher. Numa indumentária elegante (Bruno Perlatto) sugestionando um casal burguês e ressaltada por um reiterativo desenho de luzes propositalmente vazadas (Beto Bruel).

Na ausência de qualquer trilha incidental, a concepção gestual (Toni Rodrigues) se estabelece sob o suporte  sonoro do jogo verbal e na performance dos insistentes movimentos de vai e vem da dupla atoral. Ora isolados ora na instantaneidade de junções físicas e na simbiótica passagem ao desnudamento total do personagem masculino, já na proximidade do epílogo.

A obsessiva fala do marido (Antônio Gonzalez) em torno de sua iminente partida tem como contraponto uma feroz ironia na postura comportamental da esposa (Eliane Giardini) ao citar passagens memorialistas de seu livro autoral, com luxuriosos relatos, nada condescendentes, das desgastadas transas carnais entre eles.

Que, no entremeio de diálogos irresponsáveis e quase agressivos, revelam súbitas quedas de aproximativo afeto, capazes de confundir o espectador, por estranha e desaforada combinação de feroz malícia e aguda sensibilidade, num casamento em processo de desconstrução.

Onde o domínio, com autoridade cenica, de Guilherme Weber assegura a continuidade do ritmo num núcleo dramático aparentemente simples, mas que expõe criticamente o contraste na construção psicológica dos dois personagens.

De um lado na personificação da insegurança intencional do marido, entre entradas e saídas, ditos e não ditos, em convicta e espontânea atuação de Antônio Gonzalez. De outro, na vigorosa pulsão de talento e técnica em Eliane Giardini avançando, com irrepreensível entrega, em papel de ambíguas nuances emotivas.

Em representação que exige muito dos atores, à causa do despojamento de uma  caixa cênica imagética de reflexão especular palco/plateia, direcionando a concentração do olhar do espectador no substrato interpretativo.

Da palavra ao gesto, em tom confessional, entre a clareza e o subjetivismo da textualidade e da proposta dramatúrgica, em provocativo pensar sobre o arquétipo do casamento disfuncional.
                                       
                                        Wagner Corrêa de Araújo


PEÇA DO CASAMENTO está em cartaz no Teatro Sesc/Ginástico/Centro/RJ, sexta e sábado, às 19h; domingo, às 18h. 60 minutos. Até 30 de junho.

O CASO MAKROPULOS : PRESENTE OPERÍSTICO EM TEMPORADA DESÉRTICA


FOTOS/ HELOÍSA BORTZ

Em tempos nebulosos para montagens operísticas nos palcos brasileiros, há que se ressaltar o belo esforço do paulista Theatro São Pedro que vem resistindo, regular e qualitativamente, com temporadas líricas anuais na contramão dos nossos mais tradicionais templos de ópera. 

Com um diferencial na escolha do repertório. Que não se limita à reiterativa tendência de privilegiar apenas o que seja de fácil apelo ao gosto popular mas procurando inovar com obras praticamente inéditas ou raras em montagens nacionais. Ora em retomadas barrocas ora em exemplares releituras cênicas, sempre com o olhar armado na contemporaneidade.

Depois de apresentar, ano passado, Kátya Kabanová, agora é a vez de outro emblemático exemplar do último inventário composicional do tcheco Leos Janácek com O Caso Makropulos, de 1926, sob o ideário estético de André Heller-Lopes, com direção musical de Ira Levin.

Já vista, aqui, apenas em formato de concerto cênico no Municipal carioca. E que, em seu referencial dramatúrgico a partir de uma peça de seu contemporâneo Karel Capek, precede a sombria versão Da Casa dos Mortos, com substrato dostoievskiano e  estreada, post mortem do compositor, em 1930.

Há uma particularidade na proposta de Janácek que, ao  tomar como modelo a peça de Karel Capek, acabou surpreendendo o próprio dramaturgo que considerava anti-operística uma trama burocrática, quase um thriller científico, em torno de demandas jurídicas seculares de um caso de inventário.

Ao qual se acresce um sotaque novelesco de mistério alquímico sobre uma cantora de ópera, de sobrevida tricentenária mas sob risco, com a perda da fórmula de prolongamento existencial inscrita em documento secreto.

Através de personagens que remetem ao presente e à ancestralidade tendo como fio filosófico condutor o fatalista processo terminal da  vida  humana diante da velhice e da morte. Onde Emilia Marty (soprano  Eliane Coelho), em seu protagonismo mor, é confrontada pelos personagens que a conduzirão ao desfecho do mistério.

Representados nos principais papéis pelo  tenor  Eric Herrero, como Albert Gregor, o pretenso herdeiro em disputa com o Barão Prus (barítono Michel de Souza), o advogado Dr. Kolenaty (baritono Vinicius Atique), além do escrivão Vitek (tenor Giovanni Tristacci) e sua filha Krista (mezzo soprano Luísa Francesconi).

Com funcional paisagem cênica (Renaldo Theobaldo) ladeada por escadas móveis em planos distintos sugestionando um escritório, uma caixa cênica vazia e um quarto de hotel. Sob luzes (Fábio Retti) ambientalistas em tons claro-escuro e indumentária (André Heller) com sutil recorte de época.

A Orquestra do Theatro São Pedro, nas competentes mãos de Ira Levin, avança nas harmonias modernistas da partitura de Janácek. Longe da recorrência folclorista tcheca de seus antecessores Dvorak e Smetana, mas não radicalizando em invenções atonais. Embora prevaleça uma rudeza quase dissonante de acordes intermediados, para acompanhamento musical de vozes, num  quase recitativo por suas modulações teatrais.

Onde a unicidade de um elenco de onze cantores-atores alcança seu mais prevalente desempenho com a soprano Eliane Coelho. Em passagens mais contidas sensitivamente na linhagem vocal de cromatismo áspero dos dois primeiros atos, para explodir apoteoticamente no alcance dramático-vocal da última cena.

Sem deixar de destacar as atuações do tenor Eric Herrero com uma tessitura melódica mais lírica em papel de predominância galante. No contraponto da menor possibilidade oferecida pelo papel de Luisa Francesconi para dar vazão à sua habitual potencialidade como mezzo soprano.

Além das convictas performances baritonais de Michel de Souza e Vinicius Antique, este último uma das gratas revelações da mais nova geração de cantores líricos do país.

Tudo, enfim, integralizando, via elogiável montagem, a intenção de resistência a favor da ópera em moldes brasileiros. 

                                            Wagner Corrêa de Araújo


O CASO MAKROPULOS esteve em cartaz no Theatro São Pedro/SP, com cinco récitas, de 14 a 23 de junho, dando continuidade à sua Temporada de Ópera 2019.

NORMAL : OU QUANDO A MALDADE É ATO COTIDIANO


FOTOS/PEDRO MURAD

"Estará entre os atributos da atividade do pensar, em sua natureza intrínseca, a possibilidade de evitar que se faça o mal? Ou será que podemos detectar uma das expressões do mal, qual seja, o mal banal, como fruto do não-exercício do pensar?”(Hannah Arendt).

Seria o mal parte intrínseca da condição humana ao contrário do estado bruto dos animais que só matam pela necessidade da auto sobrevivência e não pela ausência da faculdade do pensamento? Ou seria um mero resultado do desajuste social?

O que direciona esta compulsão por violentos e incontroláveis surtos criminais sequenciais em homens sob uma aparência de absoluta normalidade ou a verdade estaria, quem sabe, no verso de Caetano Veloso “de perto ninguém é normal”?

 o contrassenso de uma consentida normalidade para um cotidiano de caótica perversidade. Preenchido pela insanidade das intolerâncias em todas as suas formas. Da gratuidade de atos assassinos do âmbito familiar a um macrocosmo da violência, na insensata desigualdade de condições para o livre exercício do oficio da vida.

Este encaminhar à beira do caos em compasso pré-apocalíptico vem sendo abordado com perceptível frequência pela dramaturgia contemporânea. E outra vez surge como um referencial, na temática da peça Normal, do dramaturgo escocês Anthony Neilson (em cartaz há pouco com O Censor), sob direção de Luis Furlanetto e um elenco tríplice integrado por Ricardo Soares, Fifo Benicasa e Nara Monteiro.

Tendo como tema o caso verídico do serial killer alemão Peter Kürten (Ricardo Soares), acusado pela brutalidade de seus atos em nove homicídios entre crianças e adultos, meninas e mulheres em sua maioria, crueldade com animais, além de incêndios criminosos na segunda década do século XX.

E sobre as instâncias de defesa pelo advogado Justus Wehner (Fifo Benicasa), até sua condenação à pena capital em 1931, com episódicas intervenções do terceiro personagem  Frau Kürten (Nara Monteiro).

Tendo funcional e criativo aproveitamento de minimalista espaço cênico (José Dias), com um design luminar (Rogerio Medeiros) acentuando os aspectos in tenebris da narrativa quase como numa lembrança dos efeitos, entre luz e sombras, do cinema expressionista alemão dos anos 20.

Completando-se nos sutis traços de época dos figurinos (Patrícia Tenius) que servem bem à climatização soturna da trama, sob sublinhados acordes incidentais da trilha autoral (João Schmid), extensiva às marcações da mascaração e do gestualismo (Stefano Giglietta).

Na convicta contextualização sensorial de Ricardo Soares como um psicopata acreditando ser normal tudo que fez sem lugar para qualquer remorso. Como o dimensionamento psicológico presencial em Fifo Benicasa, na missão defensiva pelos crimes de um louco, mas descobrindo-se, também, portador de visceral confusão mental.

Enquanto por seus próprios papeis femininos de subjacente interveniência no conflito condutor dos dois personagens masculinos, Nara Monteiro tem menor prevalência na progressão dramática da trama.

Com detalhado realce nas súbitas passagem dos estados emocionais, de irônico tratamento subjetivista, nestas transmutações psicofísicas da normalidade entre os personagens, sob um competente comando diretorial de Luis Furlanetto.

Em espetáculo que, por sua assumida mas funcional simplicidade como saída de crise e carências, é capaz, mesmo assim, de dar seu oportuno recado para dias inquietos e de pesadelo.

Onde Normal é a insanidade ser confundida com a inocência, o porte de armas ser a solução para a criminalidade e o ato de matar se equiparar ao simples lance de dados do prazer, num destes jogos virtuais de vida e de morte.

                                           Wagner Corrêa de Araújo


NORMAL está em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim/Espaço Rogério Cardoso/Ipanema, terças e quartas, às 19h. 70 minutos. Até 26 de junho.

LUZ NAS TREVAS : LIÇÃO BRECHTIANA PARA NOSSOS DIAS


FOTOS / RENAM BRANDÃO

Pertencente ao primeiro ciclo das obras de B. Brecht, Luz nas Trevas (Lux in Tenebris) de 1919, ainda apresenta traços do teatro dramático na construção de seu substrato narrativo embora já se sinta ali o delineamento daquela que seria sua grande marca estética – o teatro épico.

Pelo uso do método, detalhadamente exposto em sua mais importante obra teórica (Kleines Organon für das Theater), do assumido distanciamento na encenação. Ainda que sem a completude de traçado ideológico das peças destinadas a despertar a conscientização no proletariado.

Mas já, aqui, com o propósito de levar ao espectador não um mero ato de fruição lúdica mas na intencionalidade de motivar um pensar acional. Em mais uma rigorosa montagem da Cia Ensaio Aberto em prol de um teatro político na linhagem brechtiana, com a direção sempre artesanal de Luiz Fernando Lobo.

No caso, mostrando os embates entre a proprietária de um bordel (Tuca Moraes) e um pretenso moralista (Leonardo Hinckel) que, impedido no prostibulo por uma dívida não paga, torna-se um feroz emissário do combate às doenças venéreas e à prostituição. Entremeado pelos reclames de seu assistente (João Raphael Alves) e por citações evangélicas de um padre (Gilberto Miranda), no fundo todos eles apenas armando os olhares à iminência dos lucros.

Mas, ironicamente, no contrassenso de estar perdendo ao mesmo tempo seus ganhos financeiros com prescrições medicinais, ao ver diminuída a clientela das prostitutas por questionadora advertência da proprietária do cabaré/bordel. Ambos, afinal, conduzidos pela pulsão da desenfreada gana do individualismo capitalista.

Em clima farsesco, a concepção de Brecht mostra certa proximidade com os esquetes dadaístas/expressionistas de cinema e teatro de seu contemporâneo o celebrado comediante Karl Valentin. Um mestre na enunciação da dubiedade de sentido no jogo das palavras, com influência decisiva na inicialização da carreira do dramaturgo.

Com funcional reconstituição em espaço cenográfico (Luiz Fernando Lobo) da ambiência de um cabaré anos 20, onde os espectadores ocupam mesas, enquanto são servidos por envolventes atrizes (Ana Moura, Letícia Viana, Luiza Moraes, Natália Gadiolli e Tayara Maciel) caracterizadas como as prostitutas do bordel, em caprichosos figurinos de Beth Filipecki e Renaldo Machado.

Sob um design de luz (Cesar de Ramires) equilibrado entre velas nas mesas e refletores focais nas cenas laterais e frontais, no entremeio de um pequeno palco e uma tenda ladeada por um púlpito. Com prevalente seleção de antológicos temas musicais de lavra da dúplice parceria Brecht/Kurt Weill.

Onde Paduk (Leonardo Hinckel) faz suas pregações falso/moralistas, mostrando, através de pequenas esculturas, partes corporais afetadas por moléstias venéreas, mas sendo também confrontado pela cafetina, a sra. Hogge (Tuca Moraes). Com episódicas intervenções de outros personagens e a interativa atuação com a platéia por atraentes atrizes/garçonetes.

No direcionamento mor de Luiz Fernando Lobo, conferindo consistência a uma proposta concepcional tanto de espetáculo como por seu contextual crítico. Onde a transmutação da hipocrisia moral em irreverência a favor do prazer sexual, alcança expressivos níveis nos personagens protagonistas de Leonardo Hinckel e de Tuca Moraes.

De um lado na liberdade espontânea e instintiva com que o ator assume sua contraditória fisicalidade comportamental na travessia da pregação moral à luxúria. Do outro, na convicta segurança da performance de Tuca Moraes com seu sotaque de sutil sagacidade na recondução do opositor ao nicho dos prazeres eróticos.

Esta facilitação de falseados parâmetros moralistas a favor do predomínio pela atração capitalista em negócios lucrativos, traz à luz uma temática comum ao legado brechtiano mas muito próxima da contemporaneidade e das presentes vivências de uma certa nação do hemisfério sul.

Com simbológico referencial da exploração farmacêutica e dos mecanismos do poder pelas vantagens pessoais, incitando provocação reflexiva, ao privilegiar o signo opressor da mais-valia no alheamento social aos menos favorecidos, marca registrada das nossas inconsequentes classes políticas e governanças

                                          Wagner Corrêa de Araújo  


LUZ NAS TREVAS está em cartaz no Armazém da Utopia/Boulevard Olímpico/RJ, sexta e sábado, às 20h30m; domingo, às 19h30m. 60 minutos. Até 30 de junho.

PI–PANORÂMICA INSANA : DRAMATURGIA PÂNICA PARA TEMPOS DISTÓPICOS


FOTOS/ JOÃO CALDAS

Depois da surpresa inventiva na dramatização da icônica narrativa ficcional roseana “Grande Sertão: Veredas”, Bia Lessa volta com visceral imersão cênica no que ela classifica como “uma geografia de almas” para contextualizar sua mais recente criação : PI – Panorâmica Insana.

Uma proposta sob o signo do risco, da polêmica, do susto, da provocação, do questionamento, a partir da desconstrução dos abalados sustentáculos de um vertiginoso avanço tecnológico da civilização e que, sob a ilusória aparência de propiciar tempos paradisíacos, torna-a cada vez mais próxima do irreversível direcionamento para o caos.

Este anti-admirável mundo novo, onde o sonho acabou, está sujeito a indagações indignadas de seus alterativos personagens, construídos pelo uso aleatório de quaisquer das onze mil peças do figurino (Sylvie Leblanc). Cobrindo toda a extensão do palco, do solo e laterais ao espaço frontal, num referencial plástico de instalação em instigante paisagem cenográfica (Bia Lessa).

A intervenção direcional e conceptiva, titulada como escritura cênica, se estende também a uma iluminação (em dúplice realização Bia/Wagner Freire) de tonalidade mais vazada para, sobretudo, acentuar o dimensionamento metafórico de uma imensa caixa cênica aberta fora a fora. 

Que prodigaliza semiótica definição, de complexidade non sense, sobre a tragicidade da condição humana, deslocada e desestabilizada, diante do melancólico resultado de uma realidade tecnocrática trazendo, no lugar da paz, um estado de dilaceração e aniquilamento.

Presencial no substrato dramatúrgico, ora monologal ora em confrontos dialetais extensíveis à plateia, reunindo textos de André Sant’anna, Jô Bilac e Julia Spadacini, no entremeio de citações literárias de F. Kafka e Paul Auster. Por uma irrestrita e convicta adesão do quarteto atoral integrado por Claudia Abreu, Leandra Leal, Luiz Henrique Nogueira e Rodrigo Pandolfo.

Onde sucedem-se passagens instantâneas, ora patéticas, ora depressivas, ora de cáustico ou irônico humor, em caracterizações sob um sotaque de absurdidade no uso de traços escatológicos e niilistas, desde uma mulher que se satisfaz com as próprias fezes a pulsões sexuais e cadáveres em meio ao lixo.

Nesta abordagem crua de todas as formas de intolerância e fanatismos sociais, políticos e religiosos, há que se ressaltar o preparo de uma corporeidade energizada, em compasso quase coreográfico, sob os acordes e dissonâncias assumidas de um score sonoro (Dany Roland/Estevão Casé) entre vocalizações manipuladas, ruídos e frases musicais.

PI–Panorâmica Insana, na sua literalidade da titulação com simbologia matemática sob síntese vocabular “pi", não é espetáculo facilmente digerível para qualquer espectador diante da incomoda textura contestadora de seu jogo cênico.

Com seu tratamento de teatralidade de choque na exposição de uma imaginária em estado bruto sobre o que está a nossa volta e em sua transgressiva exposição do desregramento a que estamos submetidos, cotidianamente, e que recusamos ver cara a cara.

Na radicalização de sua intimidação antilúdica, sua proposta, afinal, é a de tirar-nos do estado de mera acomodação pois sua verdade é a de um murro na cara quando, referenciando a estética do movimento britânico denominado In-yer-face theateré capaz de nos dizer mais daquilo que somos de fato”...

                                          Wagner Corrêa de Araújo


PI-PANORÂMICA INSANA está em cartaz no Teatro Prudential/Sala Adolfo Bloch/Glória/RJ, de quinta a sábado,às 21h; domingo, às 18h. 80 minutos. Até 16 de junho.

SÃO PAULO CIA. DE DANÇA : PAISAGENS COREOGRÁFICAS DE LUZ E SOMBRAS


TRICK CELL PLAY / FOTO/ ÉDOUARD LOCK

Entrando em sua segunda década de vitoriosa trajetória artística, a São Paulo Companhia de Dança - SPCD – começa a temporada 2019. Desta vez, com um programa síntese de seu ideário estético, dando continuidade à sua abertura aos experimentos e invenções coreográficas, sob o sempre atento comando mor de Inês Bogéa.

Privilegiando, em seu suporte concepcional, um espaço para lançamento de obras inéditas tanto dos nossos criadores como para aqueles além fronteiras. Sem deixar de lado tanto a revisitação, nos moldes originais, como a releitura de grandes momentos do repertório clássico à pós-modernidade. Com acurada seleção e resultado cênico que se estende à irrepreensível performance técnica de seus bailarinos.

O que vem possibilitando a inserção em seus programas de obras concebidas exclusivamente para a SPCD, por criadores do naipe de Édouard Lock, entre outros. No caso deste último, agora, com a coreografia Trick Cell Play, completando o primeiro ciclo de composições desta saison anual, precedida por Agora, de representativo nome da mais recente geração coreográfica brasileira – Cassi Abranches.

Recorrendo à temporalidade memorial, Agora propõe um inventário, mais abstrato que propriamente narrativo, sobre as incursões físico/emotivas de uma personagem feminina secular que vê desfilar diante de seus olhos a completude de sua  trajetória existencial (Cassi Abranches admite aqui o mote inspirador do romance símbolo de Garcia Márquez).

Neste retomar de uma vida pela expressão da corporeidade, a obra se desenvolve em tríplice modulação, com formações de conjunto no prólogo e no epílogo (ainda com certa recorrência à tipicidade do gingado de R.Pederneiras), no entremeio de passagens de maior individualização gestual e de menor referencial coreográfico aos doze anos de Cassi como bailarina do grupo Corpo.

Sublinhadas por uma solarização visual, à base de energizada trilha (Sebastian Piracés), entre acordes percussivos e sonoridades roqueiras, marcando as idas e vindas da fisicalidade in motion no seu caminhar pelo espaço cênico, como se a exposição dos corpos dos bailarinos fosse direcionada por inventivos efeitos videográficos de uma ilha de edição.

AGORA / FOTO/RODOLFO DIAS PAES

Egresso, desde 2015, da cia La La Human Steps que o celebrizou no panorama da dança contemporânea, o canadense por adoção, de ascendência marroquina - Édouard Lock, desde o despontar de sua carreira coreográfica, vem dialogando com outras linguagens artísticas, da cena pop/rock ao cinema, passando pelo teatro e pela ópera.

E nesta sua enigmática titularidade – Trick Cell Play – mais literalmente voltada para o universo biológico/científico das células e suas mutações, é como se referisse ao entendimento da condição humana, através de enfoque metafórico, na materialidade de corpos em movimento.

Indo mais longe, na busca assumida de um nonsense, para deixar fluir livre acepção a significados intuitivos na leitura particular de cada espectador, com proposital senso irônico, concedendo uma possível pista na provocação desconstrutora da iconologia da grande ópera. Ampliada no acompanhamento ao vivo de um quinteto (clarone, cordas e piano) executando temas (Gavin Bryars) que apenas sugestionam sutilmente uma melodização de apelo lírico.  

Num conceitual semiótico e crítico de caractéres psico-estéticos dos personagens operísticos com sua dramaturgia melodramática e grandiloquente, induzida entre simultâneas luzes focais no formato de círculos, sob efeitos cinéticos, que aprisionam bailarinos em solos, duos ou pequenas formações grupais, numa ambientação de substrato noir.     

Sabendo bem como explorar o convívio de posturas clássicas, via sapatilhas de pontas e piruetas, com exigentes pontuações míméticas do movimento dimensionado pela dança contemporânea. Enfatizando uma melancolizada dramatização dos relacionamentos afetivos, paixões e conflitos entre corpos de destinação tão efêmera e passageira quanto cada gesto coreograficamente visualizado.

Em espetáculo que, sobremaneira, potencializa a São Paulo Companhia de Dança por seu permanente incentivo às atitudes criadoras sem fronteiras, sintonizadas com o tempo presente.

                                             Wagner Corrêa de Araújo

TRICK CELL PLAY / FOTO/ÉDOUARD LOCK

A SÃO PAULO CIA DE DANÇA está em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso, SP, com o programa 1 da SPCD 2019. 70 minutos. De 06 a 09 de junho.

TEMPORADA PAULISTA - BILLY ELLIOT: COMOVENTE LIBELO MUSICAL CONTRA O PRECONCEITO


FOTOS/JOÃO CALDAS

Ainda hoje, em pleno terceiro milênio, ouvimos o estupidificante aforismo de uma sociedade machista e conservadora com seu hostil preconceito contra a vocação masculina para a profissão de bailarino – Balé é coisa de menina.

Cuja incidência, por curioso fenômeno social brasileiro, tem diminuído nas camadas mais desfavorecidas pela marginalização, das favelas às comunidades periféricas, onde o chamado para o tráfico e para o roubo vem sendo surpreendentemente substituído, episodicamente, pela perspectiva profissional dos projetos socializantes de ensino da dança.

Capaz, assim, de possibilitar a opção por uma nova forma de trabalho com resultados reveladores de talentosos bailarinos jovens ganhando espaço em festivais e concursos, tanto no Brasil como no exterior. Muito embora ainda tenhamos que digerir delirantes retrocessos político/morais como “meninos só vestem azul e meninas o rosa”...

Temática referencial que se faz presente, com rara força sensitiva, no espetáculo Billy Elliotcom a mesma titularidade de um bem sucedido filme de 2000, dirigido por Stephen Daldry. Neste sucessivo musical londrino de 2006 à sua versão da Broadway 2009, agora, em sua primeira montagem brasileira, com direção geral e concepcional do canadense e habituée dos palcos da Times Square, John Stefaniuk.

Billy é um garoto que, no decorrer de uma greve dos mineradores britânicos de carvão nos anos 80 da era Margaret Thatcher, navega em direcionamento contrário aos desejos de um meio rústico e brutalizado, trocando corajosamente a prática do box pela do balé.

Onde, apesar de enfrentar as adversidades radicais de seu pai Jackie (Marcelo  Nogueira) e do irmão mais velho Tony (Beto Sargentelli), ambos participantes da rebelião operária, segue em frente, incentivado pela reiterativa frequência às aulas de Mrs. Wilkinson (Vanessa Costa), a professora de balé.

Acabando, no entremeio de muitos embates políticos/sexuais, por embaraçar os conceitos e amolecer o coração de um pai, avançado na luta de classes mas bronco nas posturas comportamentais, ao enxergar no emergente talento do filho um sonho de redentora salvação pela arte.


Na presente recriação paulista, atuam nomes básicos do musical original, além do comando mor de John Stefaniuk, como o coreógrafo Peter Darling e o cenógrafo Michael Carnahan.  Este, na paisagem cênica, reproduzindo o clima cinzento e ferruginoso de uma mina de carvão em extenso muralismo frontal rodeado por estruturas metálicas móveis, ora sugerindo interior residencial ora estúdio de dança, mais as ambiências externas da greve.

De extrema funcionalidade sob os efeitos luminares, ora focais, ora vazados, de Mike Robertson. Ficando na coreografia (Peter Darling) o grande destaque do musical, num inventivo e energizado mix de gestual neo-clássico, contemporâneo e sapateado, a partir da trilha sonora autoral de Elton John, apesar não ter esta a força incisiva de suas melhores composições.

Complementada na equipe brasileira, por acurada releitura musical de Daniel Rocha, com direito a um  insert  tchaikovskiano  e a uma apoteótica cena acrobática sob os acordes de Eletricity. E resultando na indumentária cotidiana por Lígia Rocha e Marco Pacheco, em tons de predominância ocre nos trajes operários e de traços mais clarificados nos figurinos femininos.

No elenco, a convicta entrega  protagonista de um juvenil Tiago Fernandes (um Billy alterativo com os garotos Richard Marques e Pedro Sousa) em irrepreensível performance dúplice como ator/bailarino. Com inclusiva envolvência palco/plateia, extensiva também a caracteres de outros personagens, como a impositividade de Vanessa Costa (Mrs. Wilkinson) e o sotaque hilariante de Inah de Carvalho (a avó).

Sem falar na expoente  nuance emotiva da tessitura vocal de Sara (o espectro da mãe) e numa vigorosa representação atoral de Marcelo Nogueira (Jackie), aliada ao seu reconhecido alcance como um dos mais especiais intérpretes no naipe masculino do musical pátrio.

Havendo dois momentos emblemáticos por seu significado antipreconceitual : quando Michael (Paulo Gomes) o amigo de Billy fascina pela libertária postura gay dançando vestido como mulher (Expressing Yourself) e no extasíaco duelo (Solidarity) entre os mineradores/grevistas e os policiais, ladeado pelas pequenas  bailarinas e o menino dançarino, marcando o contraponto entre a opressão e a esperança, entre a rudeza  e a sensibilidade artistica.

                                             Wagner Corrêa de Araújo


BILLY ELLIOT está em cartaz no Teatro Alfa/Santo Amaro/SP, sexta, às 20h30m; sábado, às 15 e 20h; domingo, às 15 e as 19h. 170 minutos. Até 30 de junho.

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