AS BRASAS : UMA ALMA EM DOIS CORPOS

FOTOS/LEO AVERSA

O escritor Ferenc Molnar se tornou conhecido do público brasileiro, através de sua obra mestra Os Meninos da Rua Paulo, não só pelo original literário mas por suas versões fílmicas e suas transposições para o palco. E tanto a sua origem húngara como a prevalente  temática de amizade, lealdade e heroísmo, estabelecem liames profundos com outro escritor magiar, Sándor Márai.

Seu romance As Brasas, apesar da menor divulgação entre nossos leitores, tem o mesmo dimensionamento clássico da obra de Molnar cujos destinos, no entremeio de duas guerras mundiais, se identificam pelo exílio e morte na América. E na trajetória da fuga de uma Hungria, ora sob a perseguição nazista aos judeus, ora pela opressão como satélite do sistema soviético.

Enquanto a trama de Molnar transcorre em tempo de passagem entre a infância e a adolescência, o livro de Márai, partindo de um relacionamento colegial e de um coleguismo militar, se estende à idade provecta de seus dois personagens, Hendrik e Konrad.

A partir de um reencontro dos dois amigos, após quatro décadas de distancia e silencio e que sustara uma amizade pelo viés da duvida e da suspeita de traição afetiva. Onde houvera no passado a convergência geminada de uma única alma para duas corporeidades,  passível até mesmo a uma subliminar homoeroticidade.  

Ao receber carta sobre a iminente chegada de Konrad (Genézio de Barros), o antigo comparsa de tempos e folguedos militares, o aristocrático general Henrik (Herson Capri), impactado, sabe que não terá apenas nostálgicas lembranças mas um desafiador acerto de contas para enigmático fato do passado.

Sobrepondo-se, ainda, o mistério que uniu estes dois homens a uma mesma mulher e já morta – Krisztina. Em simbiótica performance por Nana Carneiro da Cunha no dúplice oficio como atriz e musicista. Com prevalência de sua execução ao cello de refinados acordes da trilha autoral (Marcelo Alonso Neves), na pulsão simbológica de influente  matéria musical na trama dramatúrgica.

A concepção cenográfica (Bia Junqueira) visualiza sensorial plasticidade no mix ambiental de ancestralidade e instalação contemporânea sob as luzes modulares de Renato Machado. O que se estende também aos figurinos (Marina Franco) com sotaque nobiliárquico para o anfritrião Henryk e de solene recato no traje de Konrad.

Onde, a partir de um acertado lance de dados na teatralização (Duca Rachid e Julio Fischer) do original romanesco, o comando diretorial de Pedro Bricio imprime solidez aliada à intenção crítica para o espetáculo fluir com espontaneidade e envolvência, sem que a progressão dramática fique submissa à linguagem literária.

Complementando-se esta gramática cênica com o jogo teatral vivo assumido pela dupla protagonista com predestinação de  performance de Grande Teatro ou do chamado, até pejorativamente, de teatrão. Mas, antes de tudo, sabendo ambos aliar sobriedade e tensão, introspecção e liberdade instintiva sem nunca se deixarem levar por virtuosismos supérfluos .

Identificados, afinal, pela sincronicidade junguiana, da exploração de recursos técnicos à competência artesanal na construção de seus personagens. Num contraponto emotivo com irrestrita força de persuasão e de luminosidade que faz de As Brasas um destes momentos da arte de representar a serem sempre lembrados.

                                         Wagner Corrêa de Araújo


AS BRASAS está em cartaz no Teatro das Artes, Shopping da Gávea/RJ, terça, às 17h; quarta e quinta, às 20h. Até 30 de novembro.

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