LA COULEUR DE LA GRENADE / COMPAGNIE KÄFIG : EXTASIANTE ENCONTRO DA TRADIÇÃO ARMÊNIA COM A DANÇA URBANA


La Couleur de La Grenade / Compagnie  Käfig. Mourad Merzouki/Concepção Coreográfica. Setembro/2025. Julie Cherki / Fotos.


Em 1969, o cineasta armênio Sergei Parajanov estreava seu filme A Cor das Romãs, uma obra que se tornaria polêmica por seu desafio aos padrões conservadores do realismo socialista. Mas, ao mesmo tempo, tornando-o emblemático por seu vanguardista dimensionamento estético, merecendo entusiásticos aplausos de nomes como Godard, Antonioni, Fellini.

Na proximidade ao centenário de nascimento de Parajanov (1924/1990) o coreógrafo franco-argelino Mourad Merzouki, incentivado pela atriz de origem armênia Satê Khachatryan, decidiu fazer uma diferencial releitura do filme para sua Compagnie Käfig, utilizando o título original La Couleur de La Grenade.

Num simbólico processo de criação como tributo a um cineasta que usava múltiplas linguagens artísticas em seu filme, onde era narrada a trajetória do poeta armênio do século XVIII - Sayat Nova. Com efeitos cinéticos especiais nas danças e cantos tradicionais, alegorias na representação teatral, numa ambiência visual plena de plasticidade em cenários com referências ancestrais.

O que Mourad Merzouki transmuta para um palco coreográfico de realidade imagética-onírica, adornado com vistosas tapeçarias antigas, onde seus sete excepcionais bailarinos transitam entre imagens virtuais, imersos em delirante magia luminar de projeções e efeitos aquarelados.


La Couleur de La Grenade / Compagnie  Käfig. Mourad Merzouki/Concepção Coreográfica.
Setembro/2025. Julie Cherki / Fotos.


Demonstrando suas convictas habilidades físicas na energia acrobática das danças urbanas, alternadas pela espontaneidade de incursões instantâneas sob o sutil sugestionar de passos clássicos, no entremeio prevalente de técnicas contemporâneas. E que propiciam o contraponto de um irradiante lirismo, especialmente nas cenas com a corporeidade  feminina,  centralizada sempre na figuração misteriosa de uma mulher  de mítico e transcendente presencial, bastante similar à mesma imagem no filme.

Com figurinos leves, incorporando a tipicidade de elementos cotidianos, na busca de uma funcionalidade maior para a fisicalidade energética do estilo street dance e hip-hop, em proposta cênica de conexão a indumentárias mais artesanais com o uso de trajes típicos da cultura armênia tradicional.

Tudo isto ampliado pela envolvência de uma trilha que equilibra bem as passagens de acordes de canto corais de caráter ritualístico com sonoridades eletroacústicas mais ritmadas, marcadas estas últimas por uma instrumentação percussiva que estimula a vigorosa gestualidade de corpos atirando-se ao chão.

Para quem conhece o filme (de raras exibições mas até encontrável nas plataformas digitais) é fácil a percepção de que toda esta encenação nunca perde o conceitual plástico-estético que liga o resultado coreográfico ao estilo fílmico. Idealizado e descrito por Sergei Parajanov em suas enunciadoras palavras : “queria criar aquela dinâmica interna que vem de dentro da imagem, as formas e a dramaturgia da cor”.

Lembrando que o cineasta chegou a ser bailarino e artista  plástico, mas teve sua carreira bruscamente interrompida pela violência discriminatória da censura  soviética em 1969, condenando-o à prisão, onde a liberdade só foi retomada tardiamente. Morrendo em 1990, quase às vésperas da dissolução definitiva da União Soviética.

Enquanto, neste mesmo período, começava o projeto idealista do jovem coreógrafo Mourad Merzouki para dar um lugar de destaque às danças urbanas como uma autêntica manifestação, merecedora de estar ao lado de toda movimentação inventiva da dança contemporânea.

Sua Compagnie Käfig atua desde 1996, com turnês por mais de 700 cidades, incluído o Brasil em 2016, com o espetáculo Pixel, além de seus experimentos com bailarinos brasileiros em algumas de suas obras anteriores. E no ano passado sendo a Cia. escolhida para a abertura festiva em Paris dos Jogos Olímpicos.

Sobre esta temporada da Compagnie Käfig, com Pixel,  em novembro de 2016, deixo aqui o registro da crítica autoral postada, então, pelo blog Escrituras Cênicas :

https://www.escriturascenicas.com.br/2016/11/pixel-energica-e-lirica-fisicalidade.html

   

                                       
                                             Wagner Corrêa de Araújo

 

 
A Compagnie Käfig / La Couleur de La Grenade, depois da Cidade das Artes /RJ, no último final de semana, segue para São Paulo, com apresentações nos próximos dias 9 e 10 de setembro, no Teatro Bradesco.

NOUVEAU MONDE/CIA HÍBRIDA : IMERSIVO SALTO COREOGRÁFICO EXPERIMENTAL NUM FUTURO DISTÓPICO


Nouveau Monde / Companhia Híbrida. Renato Cruz/Direção Geral e Coreografia. Agosto/2025. Carol Pires / Fotos.


Como a criação coreográfica reagirá diante do desafio de um futuro distópico onde os avanços tecnológicos convivem com perspectivas sombrias como a devastação ambiental ou a desumanização do corpo sob o domínio do homem robotizado?

Este questionamento nos remete ao século XX quando o universo da dança moderna começou, através da inciativa pioneira de Merce Cunnnigham, a integração de efeitos cinéticos e de vídeo em suas coreografias. Uma tendência que se acentuaria com os recursos digitais da sequencial era dos computadores e da internet.

Que por sua vez gerou o encontro estético de duas linguagens com o movimento da vídeo-dança que não ficou apenas no registro definitivo das imagens e das câmeras, mas se estendeu aos palcos coreográficos em cias que se tornaram conhecidas priorizando este gênero.

Embora todos estes experimentos procurassem preservar a dança pela dança não deixando que a expressão da corporeidade ficasse submissa ou fosse simplesmente abstraída pelo contexto tecnológico tornando frio, mecanizado e robótico o movimento gestual.

Além de tudo isto, com força crescente, vem aumentando em escala mundial os retrocessos políticos, morais e ideologias radicais, contrapondo-se às identidades de raça, de sexualidade e da livre expressão individual, num iminente risco de regimes totalitários.

E foi pensando nisto transmutar-se, contraditoriamente, num futuro assustador que a Companhia Híbrida, dando continuidade ao projeto coreográfico realizado entre o Brasil e a França, com patrocínios dos dois países, fez surgir a obra simbolicamente titulada como Nouveau Monde.


Nouveau Monde / Companhia Híbrida. Renato Cruz/Direção Geral e Coreografia. Agosto/2025. Carol Pires / Fotos.


O coreógrafo e diretor da Cia Renato Cruz já é conhecido do público e da crítica francesa com vários espetáculos apresentados lá, o mais recente deles Novo Fluxo no inicio de 2025, incluindo também a obra Dança Frágil, em vários espaços parisienses, entre estes o Le Carreau du Temple em coprodução de Nouveau Monde.

Desta vez, utilizando-se, aqui,  de um espaço cênico arena onde seu grupo de 7 bailarinos (Fábio Max, Jefte Francisco, Josh Antônio, Maju Freitas, Rayan Sarmento, Tamara Catarino, Yuri Tiger), um ou outro de comunidades cariocas passando, assim, a representar bem a proposta identitária de estrato social e racial, na assumida pulsão espontânea de uma gestualidade, legado de sua especialização nas  danças urbanas.  

Havendo que se ressaltar que esta obra traz um inédito dimensionamento da corporeidade de cada um deles, isolados em círculos delimitados por traços e efeitos luminares focais, entre sombras e luzes (Renato Machado) e indumentárias (Karla de Luca) com um sutil sotaque atemporal, completadas com capacetes/óculos de realidade virtual.

Onde um facho de luzes led coloridas remete, subliminarmente, a uma ambiência metafórica preenchida por sonoridades eletroacústicas (Gabriel Amorim e Lucas Marcier). O que amplia o efeito sensorial de corpos imobilizados liberando, lentamente, um gestual fragmentado, entre braços, pernas, ombros e mãos, paralelo à representação de um movimento facial sugestionando ansiedade e sufocação.

Até o inesperado surgimento de um cachorro-robô, num referencial a figurações de seres futuristas próprios do universo de ficção científica, por programação computadorizada, contornando o espaço cênico, sob quatro patas mecânicas alternando-se de pé, diante da surpresa e de certo espanto dos espectadores. Numa obra coreográfica diferencial que a aproxima da dança-teatro, tal como um poema concreto ecoando palavras, ao vivo, tornadas visíveis na expressiva fisicalidade dos bailarinos.

Diante deste original ideário temático e coreográfico de Renato Cruz, para sua sempre admirável Companhia Híbrida, fica a pergunta - será que a dança poderá interagir, mantendo intacto seu livre processo de criação, numa dominante realidade virtual?

Quem sabe, indo mais longe, num conceitual de previsibilidade, poderíamos ser levados a crer na reversão deste Nouveau Monde, como Le Meilleur des Mondes (citando a obra de Aldous Huxley)! Ou tudo não passa de uma utopia e, neste futuro distópico, a corporeidade humana gestual na arte coreográfica será assumida, definitivamente, por dançarinos robôs? ...

 

                                                Wagner Corrêa de Araújo

 

Nouveau Monde/Companhia Híbrida encerrou, neste final de semana, sua curta temporada no Sesc/Arena/Copacabana, com a expectativa de que volte ao cartaz.

PEQUENO CIRCO DE MEDIOCRIDADES : IRÔNICO, MORDAZ E BEM HUMORADO RETRATO DRAMATÚRGICO DA CLASSE MÉDIA BRASILEIRA

Pequeno Circo de Mediocridades. Leonardo Netto/Dramaturgia e Direção. Agosto/2025. Dalton Valério/Fotos.

  

Inspirando-se nas considerações traçadas pelo sociólogo Jessé Souza, um celebrado analista das diferentes camadas que integram a estrutura da sociedade brasileira, o dramaturgo e diretor Leonardo Netto está de volta com a peça inédita Pequeno Circo de Mediocridades .

Tendo como ponto de partida especificamente o livro A Classe Média no Espelho, após uma atenta percepção de seus pontos fundamentais, transmutou-os em sete cenas características para o palco. Num retrato burlesco do comportamental conservador e medíocre de personagens que encontramos a toda hora nas esquinas da vida.

Representadas, aqui, por um afinado elenco na formatação de um quarteto integrado por reconhecidos nomes da cena teatral carioca desdobrando-se em papeis alternativos, ora em solo ora em formações grupais. Destacando-se cada um deles pela adequada escolha no entorno da especificidade de seus personagens.

Entre idas e voltas, Alexandre Varella, Elisa Pinheiro, Gustavo Falcão e Marina Vianna numa absoluta unicidade performática que estabelece um apelo imediato com a plateia numa possível identificação singular de cada espectador com as situações ali retratadas.


Pequeno Circo de Mediocridades. Leonardo Netto/Dramaturgia e Direção. Em cena, Gustavo Falcão e Elisa Pinheiro. Agosto/2025.Dalton Valério / Fotos.


A concepção cenográfica (André Sanches) minimalista usa um tablado frontalizado entre as duas plateias laterais, utilizando-se inicialmente de uma mesa e quatro cadeiras, aparecendo nelas cada um dos atores. Sequencialmente, sendo transformado nas ambiências sugestionadas pelos quadros dramatúrgicos.

Os figurinos (Luiza Fardini) sob sotaques cotidianos apresentam ligeiras variações atendendo, com precisa  funcionalidade, à proposta das sete cenas. Incluída uma espontaneidade gestual (Márcia Rubin) que agiliza a sintonização ator/personagem no tratamento irônico assumido pela textualidade dramatúrgica.

Às vezes pré-decifrada em sua intenção temática por sua própria titularidade tais como Cena de Jogo, Fatalidade, Olhos de Ressaca, Monstros Embaixo da Cama, Buraco no Salão, Atropelamento e Fuga, Selvageria. Mas nunca deixando de provocar uma inesperada surpresa em seu descortino final evitando, assim, qualquer obviedade narrativa.

A sutil interveniência de acordes musicais (Leonardo Netto) gradualiza o controle das nuances psico-emotivas, de caráter mordaz e risível, no desenvolvimento dos quadros. Estes sempre sendo acentuados na prevalência de luzes vazadas entremeadas por subliminares efeitos focais (Paulo Cesar Medeiros).    

Leonardo Netto, além de retratar as mediocridades deste extrato denominado classe média, potencializa a reflexão especular comparativa sobre as vivências de uma casta humana “circense” imersa na  hipocrisia do seu fútil mundo, consumista de privilégios romantizados. Que entre pesares está por todos os lados, a começar pelos seus anseios de ascensão politica o que só contribui para a crescente desmoralização  das instituições de nosso país.

E que simplesmente se torna alheia às desigualdades sociais, sentindo-se isenta de qualquer culpa ao se julgarem protegidos por suas recessivas crenças políticas, religiosas e morais que, em verdade, os transformam em verdadeiros párias da cidadania.

O núcleo do inventário dramático conciso, em sua aparente narrativa coloquial, é recheado assumidamente por lugares comuns do dia-a-dia, o que faz mais contundente a provocação do riso atuando como um contraponto crítico.

Extensivo ao alcance de uma gramática cênica que, através da coesão interpretativa de seu quarteto atoral por intermédio do perceptivo acerto de sua  direção concepcional, acaba tornando difícil sinalizar o destaque individualizado de tão convictos intérpretes em sete momentos diversificados .

Num destes avanços da dramaturgia sólida e inventiva de Leonardo Netto capaz, ao mesmo tempo, de abrir as portas para o entretenimento pelo senso crítico engajado a um sotaque de conscientização reflexiva, reafirmando a força da última geração do teatro em moldes brasileiros...

 

                                                  Wagner Corrêa de Araújo

   

Pequeno Circo de Mediocridades. Leonardo Netto/Dramaturgia e Direção. Em cena, Marina Vianna e Alexandre Varella. Agosto/2025. Dalton Valério/Fotos.


Pequeno Circo de Mediocridades esta em cartaz no Teatro Poeirinha/Botafogo, de quinta a sábado às 20h; domingo às 19h, até o dia 31 de agosto, com expectativa de novas temporadas.

BALÉ FOLCLÓRICO DA BAHIA : A DANÇA AFRO-BRASILEIRA SOB UM IRRADIANTE COMPASSO ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE


A Dança Que Ninguém Vê / Balé Folclórico da Bahia. Vavá Botelho/Direção Geral. Agosto/2025. Jorge Bermudes Castro / Fotos. 



Desde sua memorável estreia abrindo o Festival de Dança de Joinville, no final dos anos oitenta, o Balé Folclórico da Bahia surpreendeu a crítica e o público por seu original dimensionamento estético imprimido ao legado coreográfico e musical afro-brasileiro.  

E é para celebrar seus 37 anos que a Cia está apresentando, em sua primeira grande temporada pelo Brasil afora, o espetáculo O Balé Que Você Não Vê, começando pelo Rio de Janeiro. Direcionado sempre pela artesanal competência de um de seus fundadores Walson Botelho ao lado de José Carlos Arandiba, reconhecidos, cada um deles, pelos apelidos de Vavá e Zebrinha.

Sempre aplaudido pela energizada e imersiva  envolvência  palco-plateia que alcança em todas as suas performances, de sua sede em Salvador à Bienal de Dança de Lyon (1994/1996). Não apenas pela peculiaridade de suas temáticas no entorno da cultura popular baiana, como pelo tratamento inventivo que assume em sua dramaturgia da corporeidade.

Trazendo, agora, neste programa quatro criações coreográficas Okan, 2.3.8, Bolero e Afixirê - concebidas, em ordem sequencial, por Nildinha Fonseca, Slim Mello, Carlos dos Santos e Rosangela Silvestre, para 17 bailarinos, acompanhados ao vivo por quatro instrumentistas e duas cantoras, sob a responsabilidade musical de José Ricardo Souza.


A Dança Que Ninguém Vê / Balé Folclórico da Bahia. Vavá Botelho/Direção Geral. Agosto/2025.
Jorge Bermudes Castro / Fotos. 
 

Onde a caixa cênica, em proposta minimalista, é preenchida basicamente pelo corpo dançante e pela alternância presencial do grupo vocal/instrumental, tendo como visão frontal projeções virtuais em movimento. 

Como a tipicidade fílmica de um trajeto em transporte cotidiano pelas periferias de Salvador, numa certa similaridade com os guetos nova-iorquinos, na obra de Slim Mello – 2.3.8.- intimista conhecedor residencial das duas ambiências.

Ou na plasticidade documental de preciosas gravuras e fotografias, priorizando a ancestralidade da raça africana, na coreografia Okan, de Nildinha Fonseca, fazendo um tributo à relevância e à resistência do feminino. Recorrendo ao papel atribuído à mulher pelas crenças mitológicas africanas, via sua titularidade inspirada nesta divindade conciliadora.

Ao lado do registro, no formato de um mural móvel, sobre personalidades marcantes da cultura negra brasileira e mundial, referenciadas no significativo simbólico de Afixirê, como uma festa da felicidade, pelo ideário de Rosangela Silvestre, sendo considerado um dos signos do repertório da Cia baiana de dança.

Todas estas obras ampliadas em seu recado de valoração da herança cultural e artística afro-brasileira por um aquarelado figurino numa diversidade autoral de cores vibrantes ressaltadas sob luzes vazadas (Marcos Souza), remetendo a cenas pictóricas de pintores baianos de ontem e de hoje.

Mas, sem dúvida alguma, o grande momento do espetáculo é a versão do Bolero, usando as linhas mestras da composição de Ravel, em que todos os elementos estéticos alcançam sua culminância na coreografia original de Carlos dos Santos, pela releitura por Vavá Botelho e Zebrinha.

Com uma sonoridade puramente percussiva abrindo a obra, entremeada pelos acordes originais de Ravel, numa surpreendente mix adaptação musical afro-brasileira de vigorosa tipicidade para teclados, programação e percussão, da lavra de Renato Neto.

Enquanto a corporeidade coreográfica, num enfoque cenográfico de subliminar proximidade com a maioria de suas mais populares versões, a partir do uso de tablado no qual um exponencial solista é circundado por bailarinos, se destaca na intensidade crescente de contrações musculares sincopadas, extensivas ao movimento aguçado de braços e pernas.

Além de sugestionar um elo de unicidade entre a tradição da dança popular característica e os avanços da contemporaneidade coreográfica, como se este reencontro singular com o Bolero de Ravel, integrando este Balé Que Você Não Vê, ressoasse, ali, em coesivo experimento emotivo tanto para os bailarinos como aos espectadores, pelo metafórico mistério gestual explicitado na magia das palavras de Clarice Lispector : 

"Não se compreende música : Ouve-se! Ouve-me então com teu corpo inteiro”...

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo

 


O Balé Folclórico da Bahia abriu o MOVIRIO Festival 2025, no Teatro João Caetano/RJ, dias 22 e 23 de agosto, seguindo em extensa temporada nacional por diversas cidades brasileiras.

O PAPEL DE PAREDE AMARELO E EU : MULTIFACETADA DRAMATURGIA DE DENÚNCIA ENTRE O TEATRO FÍSICO E A PALAVRA LITERÁRIA

O Papel de Parede Amarelo e Eu. Alessandra Maestrini e Denise Stoklos/Direção Concepcional. Agosto/2025. Com Gabriela Duarte. Priscila Prade/Fotos. 

 

O Papel de Parede Amarelo é considerado precursor da literatura feminista, ao desafiar o moralismo conservador da sociedade patriarcal, tornando o livro de 1892, da escritora norte-americana Charlotte Perkins Gilman (1860-1935), um icônico símbolo de previsão das sequenciais lutas emancipatórias da mulher.

Tendo inspirado, especialmente a partir do início do terceiro milênio, variadas versões cinematográficas, entre curtas e longa metragens, além de adaptações para os palcos no formato dramatúrgico e até operístico, incluindo aqui, neste gênero uma recente criação tcheca de 2024.  

Todas estas adaptações usando uma titularidade homônima ao celebrado conto, dando espaço também a um diversificado teatro de apelo coreográfico dividindo a narrativa entre a performance de uma bailarina e de uma atriz, ora com projeções cinéticas e atuação atoral, ou então por uma cantora solista em obra musical de câmera.

E, entre nós, pelo alcance da original autoridade cênica-direcional de duas absolutas representantes femininas de um teatro brasileiro conectado aos mais inventivos avanços da contemporaneidade dramatúrgica - Alessandra Maestrini e Denise Stoklos - no espetáculo nominado O Papel de Parede Amarelo e Eu, tendo como protagonista uma convicta e diferencial Gabriela Duarte no primeiro monólogo de sua trajetória como atriz.


O Papel de Parede Amarelo e Eu. Alessandra Maestrini e Denise Stoklos/Direção Concepcional. Agosto/2025. Com Gabriela Duarte. Priscila Prade/Fotos. 


Em imersivo mergulho na narrativa de Charlotte Perkins, com subliminar recorte biográfico-intimista, de uma rompante personagem demonstrando sua rebeldia, frente ao dúplice autoritarismo de um marido e médico. Na prescrição imaginária da cura de sintomas histéricos, pelo isolamento total em enigmático quarto/cela, circundado em suas paredes por um decrépito papel amarelo.

Sugestionado pela ambiência soturna de uma caixa cênica (Márcia Moon), ocupada pela imagética figuração simultânea de cama-mesa atrás de uma grade de metal, frontalizando um mural/parede desbotado. Onde as tonalidades amarelas transparecem pela queda contínua, no compasso de uma chuva, de fragmentos de papel e tecidos desabando sobre o palco.

Ressaltados cenograficamente em efeitos de luzes psicodélicas (Cesar Pivetti) alternadas por sufocantes sombras que referenciam o clima de terror claustrofóbico de um thriller, transmitindo palco-plateia uma inquietante provocação sensorial.

Ampliada em multifacetadas expressões de susto e de ansiedade da atriz confrontadas, por vezes, numa assumida ingenuidade facial, entre risos e caretas, tudo convergindo para um chamativo visagismo (Wilson Eliodorio),  propiciado sob  vistosa peruca ruiva (Feliciano San Roman) e uma quase fetichista indumentária (Leandro Castro) vermelho sanguíneo, contrastando numa aquarela pictórica, com as pinceladas cênicas amareladas.

A dúplice direção sendo imprimida por uma potencial ressignificação do teatro físico, paralela à vocalização textual em off pela própria atriz, conferindo, assim, à representação dramatúrgica, a tensão gestual de um corpo-linguagem dialogando com a afetiva vocalização pré-gravada da textualidade literária.

O que faz com que a performance de Gabriela Duarte, no silêncio de quaisquer interveniências musicais, seja carregada da consistência irradiada na compreensão do significado intimista da desolação de um personagem. Que ela atravessa no entremeio de uma perspectiva onírica como fuga ao pesadelo da ancestral repressão ao prevalecimento da condição feminina.

Isto tudo demonstrando a permanência oportuna de uma temática ficcional/metafórica de significativo eco libertário contra todas as formas de opressão e aprisionamento limitativo do pleno direito de ir e de vir da mulher, do final do século XIX aos dias de hoje.

Por intermédio de uma dramaturgia sólida que, pela extensiva capacidade experimental de suas atitudes criadoras, abre novas perspectivas estético/ideológicas para um teatro brasileiro de conscientização e denúncia que referencia, antes de tudo, sobre o necessário enfrentamento ao crescente risco do despertar de todos os tipos de retrocesso em escala mundial...

 

                                                  Wagner Corrêa de Araújo

  


O Papel de Parede e Eu está em cartaz no Teatro Prio/Jóquei/Gávea, de quinta a sábado às 20hs; domingo, às 18h, até 21 de setembro.

HAIR : MUSICAL EMBLEMÁTICO DOS ANOS 60 ECOANDO NA CONTEMPORANEIDADE SEU RECADO DE REBELDIA E ESPERANÇA

 

Hair. Charles Möeller e Cláudio Botelho / Direção Concepcional. Julho/2025. Caio Gallucci /Fotos.
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Ao estrear, em 1967, no New York Festival Shakespeare numa direção concepcional de Joseph Papp, este musical já no ano seguinte, sob a titulação definitiva como Hair, se tornaria um dos maiores fenômenos midiáticos não só por sua trilha sonora (Galt MacDermont) como por sua mensagem de rebeldia contra o establishment político americano em seu libreto (Gerome Ragni e James Rado). 

Este protesto especialmente provocado pela obrigatória convocação militar dos jovens para a Guerra do Vietnam, ao lado da então ascendente mobilização pacifista nominada Flower Power. Sob o envolvimento, imersivo e anárquico, do amor livre e do psicodelismo das drogas e do rock, através de uma filosofia comportamental denominada hippieE por uma rompante tendência usando temas roqueiros pela primeira vez no universo do teatro musical da Broadway, o que acabou levando aos seus palcos a chamada opera rock.

Ampliando seu alcance por intermédio da simbólica versão cinematográfica, em 1979, por Milos Forman, sem falar nas diferenciais montagens e releituras mundo afora até os nossos dias. Sendo que nos palcos brasileiros a primeira delas, foi no inicio dos anos 70, pelo diretor Adhemar Guerra desafiando os padrões da censura e da ditadura militar.

E, agora, voltando oportunamente ao cartaz, depois de sucessivos retrocessos comportamentais na (des)governança anterior e pelos riscos políticos atuais além fronteiras, numa dúplice retomada da peça quinze anos depois, pelo ideário sempre inovador da mais celebrada parceria carioca do teatro musical  - Charles Möeller e Cláudio Botelho.


Hair. G. Ragni/J. Rado/Dramaturgia. Galt Macdermot/ Música. Nicolás Boni/Cenografia. Caio Gallucci/Fotos.


Trazendo, desta vez, a surpreendente concepção cenográfica do argentino Nicolás Boni, um expert em espetáculos operísticos, sugestionando nos detalhes de seu décor arquitetônico um daqueles requintados teatros em processo de abandono, incluindo frisas de onde ecoam os lisérgicos acordes da trilha sonora, num conluio de vozes e instrumentos, sob os arranjos e direção musical de Marcelo Castro.  

Tudo direcionado a uma ambiência onírica sob potencializados efeitos luminares (Vinícius Zampieri), na retomada cênica da mensagem de protesto do musical com novas contextualizações. Via subliminares referências ao mundo de hoje inseridas nas letras de suas canções por Cláudio Botelho, extensivas às projeções cinético-documentais (Nicolás Boni, Plínio Hit, Alba Trapero) conectadas à contemporaneidade.

Paralelo ao psicodelismo nas cores vibrantes de indumentárias (Charles Möeller) com apelos tribalistas além da inspiração nominal na tipicidade dos cabelos masculinos, longos ou desgrenhados, se estendendo até os ombros, sequenciando um característico visagismo (Fernando Torquato) tornado signo de toda uma geração, com ressonância na fluidez energizada da corporeidade dançante (Alonso Barros).

Contando prioritariamente em seu afinado elenco com cerca de 30 integrantes, onde destacam-se pela peculiar personificação de tipos fundamentais entre protagonistas e coadjuvantes. Inserindo-se na narrativa em tom de denúncia e reflexão, no compasso da irreverência e do inconformismo, através de temas que se tornaram clássicos do rock - Aquarius, Let the Sunshine In, Good Morning Starshine, além da canção titular Hair.  

Pontuando-se em vigorosas performances solo desde o inconformado Claude (Eduardo Borelli) diante de sua repulsiva convocação para a guerra, incentivado pelos posicionamentos políticos radicalizados de Sheila (Estrela Blanco), ambos brilhantes em sua tessitura vocal.  Com certa limitação na  vocalização cantada, Rodrigo Simas enfatiza melhor sua atuação presencial no sotaque libertário do seu personagem Berger. Sem esquecer as tiradas irônicas de Thati Lopes, no papel da grávida Jeannie e da impetuosa figuração de Drayson Menezes para Hud.

Transmutando, ainda, na quebra da quarta parede em efusiva conexão palco/plateia, sob inédito experimento de avanços temáticos e musicais, para continuar fazendo de Hair, um convicto experimento estético de vida e de liberdade. Do seu emblemático legado de contracultura à conscientização pela denúncia política, em destemida oposição a  todas as formas de intolerância de ontem, de hoje e de sempre...

 

                                               Wagner Corrêa de Araújo

 

Hair está em cartaz no Teatro Riachuelo/Cinelândia/RJ, quinta e sexta, 20h; sábado, 16h e 20h; domingo, 15h  e 19h, até 21 de setembro.

VEIAS ABERTAS 60 30 15 SEG. : OPORTUNO RECADO CÊNICO DE DENÚNCIA E RESISTÊNCIA SOB O COMPASSO PROVOCADOR DE UM TEATRO COREOGRÁFICO

 

    Veias Abertas 60 30 15 Seg. Carolina Lavigne/Pedro Kosovski/Dramaturgia. Marco André Nunes/Direção Concepcional. Julho/2025. Ligia Jardim/Fotos.


Em plenos anos 70, no entremeio de regimes ditatoriais que se estendiam em processo ascendente na América Latina, o escritor uruguaio Eduardo Galeano publicava um - livro Veias Abertas - que se tornou ideário para autênticos cidadãos/patriotas  que sempre se opuseram a todas as formas de exploração imperialista.

Inspirando-se na titulação da obra original Aquela Cia,  reconhecida como postulante de um teatro brasileiro esclarecedor em sua dialetação social, política e cultural com um tempo histórico conectado à atualidade, registra assim a passagem de seus vinte anos com a peça Veias Abertas 60 30 15 Seg.    

Outra vez reeditando a parceria de seus criadores, Marco André Nunes na direção concepcional e Pedro Kosovski em artesanal e inventiva dramaturgia dúplice, com a valiosa colaboração de Carolina Lavigne. Contando com um excepcional staff atoral, integrado por Carolina Virguëz, Juracy de Oliveira, Matheus Macena e Rafael Bacelar.

Onde Marco André Nunes assume uma desbravadora direção concepcional, sob a proposta performática de um corpo-linguagem caleidoscópico,  a partir de uma instigante dramaturgia de alcance latino-americano, indo além da temática exclusivamente pátria da trilogia carioca anterior, inicializada pela peça tornada emblemática como seu ponto de partida - Caranguejo Overdrive.


  Veias Abertas 60 30 15 Seg. Carolina Lavigne/Pedro Kosovski/Dramaturgia. Marco André Nunes/Direção Concepcional. Julho/2025. Em cena, Carolina Virguëz, Matheus Macena, Juracy de Oliveira e/ou Rafael Bacelar. Lígia Jardim/Fotos.


Em Veias Abertas na imersiva fluidez de uma gramática cênica sustentada pela contagem numérica de 80 cenas rápidas entre 60, 30 e 15 segundos, num conceitual dramatúrgico de instantaneidade das relações humanas, em característico ressignificado estético dos dias de hoje, com sua prevalente e irrestrita dependência às plataformas digitais.

Baseando-se em citação do livro de Eduardo Galeano e também referenciada por Gabriel Garcia Marquez, sobre o trágico episódio denominado “Massacre das Bananeiras” na Colômbia, 1928, promovido pelo exército do país junto à pressão de uma empresa americana United Fruit Company, em sua recusa ao atendimento reivindicatório dos operários locais.

Em diferencial manipulação da palavra e da corporeidade  por intermédio de uma sala com danças latinas, incluindo salsa, merengue, bolero, samba, através das aulas de uma professora (Carolina Virguez) para um afetivo casal de alunos na iminência de um pretendido laço matrimonial, sendo um deles  militar (Juracy de Oliveira em papel alternativo com Rafael Bacelar) e o outro operário (Matheus Macena) da referida multinacional.

No preenchimento de um retrato cênico (Aurora Campos e Marco André) disposto na imaginária plasticidade de um tablado de jogos, entremeado pela vivacidade aquarelada de máscaras e indumentárias típicas (Fernanda Garcia), sendo ressaltado em efeitos luminares ambientais (Renato Machado). Onde três atores se apresentam, ora na envolvência de performances coreográficas / vocais, ora sugestionando a violentação sanguinária de corpos submetidos a atos de tortura política.

E é na hora das núpcias, com a farda militar e o vestido de noiva, sob os acordes melodramáticos de clássicos do cancioneiro latino em substanciais arranjos da trilha ao vivo (Felipe Storino) e uma sensorial e energizada corporeidade gestual (Márcia Rubin) que acontece o morticínio coletivo.

Destacando-se a convicta entrega a uma despudorada transgressividade contrastante tanto no papel de Juracy de Oliveira como no de Matheus Macena, da pulsão machista a uma ironizada feminilidade visualizando os dolorosos desafetos de seus personagens.

Paralela a uma irradiante força performática imprimida por Carolina Virguëz, na autenticidade da sua identificação psicofísica sinalizada pela indisfarçável emoção sensitiva de uma atriz entre duas nacionalidades - Colômbia/Brasil.

Tudo, enfim, numa simbólica alegoria da opressão politica colonialista sobre os povos originários, traçada com sangue e alma pelo empenho de uma provocante e reflexiva criação teatral, em mais que oportuno investimento pela resistência estético/ideológica diante do risco especular de retrocessos políticos incentivados por falazes “patriotas”, daqui e de acolá, abaixo e acima da linha equatorial...

                        

                                         Wagner Corrêa de Araújo


Veias Abertas 60 30 15 Seg. / Aquela Cia. está em cartaz no Espaço Multiuso/Sesc/Copacabana, de quinta a domingo, às 20:30, até  domingo, 10 de agosto.

DZI CROQUETTES SEM CENSURA : O TRAJETO DE PRECURSOR PROJETO CÊNICO/MUSICAL - ANOS 70 - PELA LIBERTÁRIA EXPRESSÃO DA CORPOREIDADE MASCULINA

Dzi Croquettes Sem Censura. Ciro Barcelos/Dramaturgia e Direção Concepcional. Julho/2025. Ronaldo Gutierrez/Fotos.


Foi em plenos e sombrios anos da ditadura militar, precisamente em 1972, que Wagner Ribeiro e Lennie Dale tiveram a idéia de criar um grupo performático masculino, integrado por 13 atores-bailarinos-cantores, os Dzi Croquettes. Como uma forma de denúncia, em compasso dramatúrgico, aos progressivos abusos contra a liberdade de ação e de pensamento dos cidadãos brasileiros da época.

Indo mais longe ainda, numa avançada e corajosa expressão comportamental de uma livre e rebelde manifestação cênica da masculinidade, fora de quaisquer limites de censura em contraponto à resistência de um machismo tóxico e misógino.

Permitindo, assim, que cada um daqueles intérpretes assumisse, conscientemente, a representação de uma postura longe de amarras sociais, sempre de acordo  com o desejo intimista de cada um deles de aceitar e de conviver com as preferências de sua própria condição humana.

Seja através de seu gestual, de suas indumentárias, de suas falas, de suas ideias e de seu comportamento cotidiano na indentitaria escolha sexual de seus parceiros, ampliando-se isto tudo em sua irreverência quanto a ideários políticos, morais e religiosos priorizando, antes de tudo, uma liberdade de ser e de agir, dando vazão nacionalista aos movimentos mundiais da contracultura, vigentes a partir das década de 60/70. 



Dzi Croquettes Sem Censura. Ciro Barcelos/Dramaturgia e Direção Concepcional. Em cena, Ciro Barcelos e Daniel Suleiman. Julho/2025. Ronaldo Gutierrez/Fotos.

E é exatamente na passagem, pouco mais que cinquentenária do surgimento daquele revolucionário grupo teatral, num conturbado período de triste lembrança inclusive no que se refere às proibições e interferências na criação cultural e artística, que surge um referencial espetáculo - Dzi Croquettes Sem Censura, em oportuna direção concepcional de Ciro Barcelos.

Onde além deste ofício, em dúplice atuação como narrador e ator, no papel do bailarino norte-americano Lennie Dale, aqui retomando sua fundamental participação na histórica Cia, ao lado de uma trupe da nova geração teatral brasileira que, por sua vez, revive alguns nomes fundamentais dos Dzi Croquettes.

Destacando-se entre estes, o do jovem Ciro Barcelos (Daniel Suleiman), Bayard Tonélli (por Fernando Lourenção), Claudio Tovar (André Habacuque), como alguns dos poucos sobreviventes da trupe brilhando ainda em nossos meios teatrais.

Além de marcantes personagens que se celebrizaram ali, a saber Carlinhos Machado (por Akim), Paulette (Bruno Saldanha), Wagner Ribeiro (Juan Becerra). Sem deixar de citar os outros atores, alguns escolhidos por testes, afinal por uma busca investigativa no entremeio de aproximativas similaridades psicofísicas,  tais como César Viggiani, Kaiala (Nêga Vilma e Benê) e Feccini, fazendo Reginaldo de Poli.

A caixa cênica (Gabriele Souza) sob minimalista ocupação de elementos materiais, mostra frontalmente uma espécie de plataforma de madeira que ora serve para cenas domésticas da vida privada de uma comunidade de atores, ou se transforma no cenário de um show ao lado da sugestão da ocasional ambiência de um camarim, com penteadeira, cadeira e espelho.

A iluminação (Kaiala) variando entre claridades vazadas na primeira parte e efeitos quase psicodélicos na surpreendente cena do cabaré em Paris, ressaltando de um lado os figurinos (Ciro Barcelos) com uma tonalidade hippie no início da peça e a exuberância colorida de uma performance com a tipicidade destas noites num night clube gay no ato final da peça, incluindo-se ali os exageros burlescos da maquiagem (Shary Camerini). 

E é nestas cenas que o espetáculo sobretudo cresce, se comparado ao início onde não deixa de persistirem, em meio à convicta entrega de um elenco jovem, ocasionais inseguranças na espontânea e debochada desconstrução verbal e corporal da masculinidade sob um sotaque gay.

O que não acontece, em momento algum, na sequencial abordagem musical - coreográfica da temporada  parisiense,  através de uma diversificada exibição de ritmos dançantes, brasileiros, latinos e internacionais, do jazz e do samba ao rock, numa trilha sonora comandada por André Periné.  Que possibilita a envolvência de uma corporeidade dançante paralela a uma coesa unidade vocal, de um revelador elenco priorizado por uma performática jovialidade, anárquica e contestadora. 

Replicando o signo emblemático que marcou a instantânea trajetória de uma cia que se dispersou após esta turnê, na impossibilidade imposta pela censura ditatorial de continuar nos palcos brasileiros. Mas que deixou, sem dúvida alguma, um legado precursor contra todas as formas de opressão, no enfrentamento da tentativa de silenciar a livre expressão da diversidade sexual e da plenitude filosófica e política do pensamento...      

                                          

                                              Wagner Corrêa de Araújo


 

Dzi Croquettes Sem Censura estreou em São Paulo, julho 2025, devendo seguir para Belo Horizonte e outras capitais, terminando com uma grande temporada popular, entre setembro e outubro, no Rio de Janeiro . 

OS PESCADORES DE PÉROLAS : SOB UM ORIENTALISMO OPERÍSTICO À FRANCESA, TMRJ CELEBRA O SESQUICENTENÁRIO DA MORTE DE BIZET

 

Os Pescadores de Pérolas. Ópera de G. Bizet/TMRJ. Julianna Santos/Direção Concepcional. Luiz Fernando Malheiro/Regência . Ludmilla Bauerfeldt /Protagonista feminina. Julho/2025. Daniel Ebendinger/Fotos.


Considerada a segunda ópera mais conhecida de Georges Bizet, ainda que sem o alcance popular da Carmen, Os Pescadores de Pérolas teve uma trajetória limitada desde a sua polêmica estreia em 1863. Criticada à época, com ferina ironia, pelo Le Figaro - “Não havia pescadores no seu libreto, nem pérolas em sua música”- e friamente recebida pelo público foi relegada ao esquecimento.

Voltando ao repertório apenas tempos depois da morte prematura de Bizet, após passar por algumas revisões em seu libreto e na sua estrutura musical, com a inclusão de temas retirados de outras óperas suas não bem sucedidas, recurso a que já tinha recorrido o seu próprio compositor.  

Através de uma narrativa equivocada até para os padrões operísticos vigentes então, com uma história de reviravoltas quase ingênuas que abrangem sua temática e seus personagens, alcançando culminância em seu novelesco final.

Onde uma comunidade de pescadores de pérolas nos mares do ancestral Ceilão e o respeitado aldeão Zurga, escolhido por eles como líder,  aguardam a vinda de Leila, mulher virgem considerada  figura mística, uma espécie de emissária do deus da Índia - Brahma.


Os Pescadores de Pérolas/TMRJ. Barítono Vinicius Atique (Zurga) e tenor Carlos Ullán (Nadir). Julho/2025. Daniel Ebendinger/Fotos.


Por outro lado, nesta sua volta à aldeia, Zurga reencontra um amigo de infância Nadir, ambos celebrando a fidelidade dos seus laços fraternais. Até a precipitação fatalista dos acontecimentos com o despertar de velhas paixões amorosas que envolvem Leila, tanto com Nadir como por Zurga, através de um enigmático colar de pérolas...

Em mais uma das artesanais direções cênicas/concepcionais de Julianna Santos reconstituindo, aqui, a ambientação comportamental do grupo de pescadores cingaleses. Imersos no ofício que mantém e dá vida à comunidade - a pesca marítima, no caso priorizando a riqueza das pérolas - no entremeio de crenças religiosas e conflitos de poder e por violentos ciúmes de amor.

Numa precisa ocupação da caixa cênica (Desirée Bastos) com alguns elementos materiais, completados por projeções frontais de imagens digitais, para sugestionar o imaginário movimento das ondas marítimas e das mutações nos espaços siderais. Incluindo-se, ainda de sua lavra, indumentárias camponesas com traços de exotismo orientalista.  

E que se expande também por intermédio de danças caraterísticas e um gestual esotérico (em dúplice ideário por Bruno Fernandes e Mateus Dutra), sob prevalências luminares mais vazadas que focais (Paulo Ornellas).

O maestro Luiz Fernando Malheiro frente à OSTM, um dos grandes experts brasileiros na regência de obras operísticas, imprimindo um dimensionamento expressivo ao encontro entre cordas, sopros e solos de harpa, nos acordes vocais melodiosos de temas que se celebrizaram, especialmente pelo leitmotiv na cena coral, já no prólogo.

Além de uma afinada e coesa participação do Coro do Municipal, há que se destacar o convicto quarteto protagonista. Desde um correto Sumo Sacerdote na voz do baixo Murilo Neves como Nourabad ao trio amoroso integrado pelo barítono Vinicius Atique (Zurga), tenor Carlos Ullán (Nadir) e a soprano Ludmilla Bauerfeltd (Leila).

Com uma tessitura suave de tenor lírico o argentino Carlos Ullán tem uma bela mas contida performance na ária “Je crois entendre, encore”, diante da voz mais exuberante e de maior ressonancia do barítono Vinicius Atique em “L’orage s’est calmé”, mas ambos conectando-se em segura performance atoral tanto no inspirado dueto entre eles (Au fond du temple saint), como aqueles ao lado da protagonista feminina.

Destacando-se também, sobretudo, o evocativo presencial da personagem Leila por Ludmilla Bauerfeldt, via sua tão requintada voz, das passagens mais líricas à firme clareza nos vibratos (Comme autrefois dans la nuit sombre), fluindo sobre a orquestra enquanto ecoa carismáticamente no aplauso do público...

                            

                                           Wagner Corrêa de Araújo



Os Pescadores de Pérolas, ópera de Bizet, está em cartaz no TMRJ, com dois elencos alternativos, de 16 a 26 de julho, em horários diversos.

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