MATAR OU MORRER / DILERMANDO E EUCLIDES : O OLHAR CONTEMPORÂNEO SOBRE UM ACERTO DE CONTAS LAVADO EM SANGUE

Matar ou Morrer - Dilermando de Assis e Euclides da Cunha. Myriam Halfim/Dramaturgia. Agosto/2023. Fotos/Guga Melgar.



Num momento em que a sociedade brasileira assiste a uma absurda sequencialidade de assassinatos brutais de mulheres, causa e consequência de uma pulsão machista insana, reviver a saga trágica que envolveu os nomes de Euclides de Cunha e Dilermando de Assis, com o olhar na  retomada metafórica de um julgamento pela  contemporaneidade, soa mais que oportuno diante de tudo isto.

Afinal quem seria o verdadeiro culpado por um crime de amor e morte que abalou o ferrenho tradicionalismo da sociedade brasileira ao final da primeira década do século XX? Que tal reavaliar o fato homicida num encontro imaginário dos dois partners de paixão e sexo, marido, amante e uma mesma mulher Anna Emilia, confrontando-os num tribunal de nossos dias?

Depois do sucesso da série televisiva (Desejo), de um livro da historiadora Mary del Priore (Matar Para Não Morrer) e também de uma  recente ópera brasileira de João Guilherme Ripper (Piedade) é a vez também de Miriam Halfim surpreender, numa releitura do mesmo tema, com outra de suas precisas e diferenciais incursões dramatúrgicas.

Que, sob uma fictícia abordagem e personalíssimo sotaque autoral, a partir de um episódio de vivência realista, aparece, aqui, sob a simbólica titulação de Matar ou Morrer – Dilermando de Assis e Euclides da Cunha. Com um luminoso comando direcional de Ary Coslov para um estelar tríptico atoral - Marcelo Aquino (Dilermando), Sávio Moll (Euclides) e Maria Adélia (Juíza). Ao lado de outro trio de craques - Marcos Flaksman (cenografia), Aurélio de Simoni (iluminação) e Wanderley Gomes (figurino).


Matar ou Morrer - Dilermando de Assis e Euclides da Cunha. Ary Coslov/Direção Concepcional. Agosto/2023. Fotos/Guga Melgar.


Numa ambiência de sugestionamento emblemático, a começar pelo palco (CCJF) num tradicional espaço arquitetônico que foi sede do Supremo (STF), nos  tempos do Rio Capital Federal, desde sua inauguração em 1909. Abrangendo, assim, o período de acontecência da “Tragédia da Piedade” e tornando maior a subliminar comoção a partir da peça estar acontecendo ali.

Com sua caixa cênica (Marcos Flaksman) preenchida frontalmente por um espelho de época fissurado por tiros e uma solene tribuna jurídica, com luzes (Aurélio de Simoni) vazadas favorecendo um clima psicológico de confronto entre os dois “réus” perante uma autoridade jurídica, sob indumentária atemporal de traços cotidianos (Wanderley Gomes).

Buscando, de um lado, redimir a culpa assassina atribuída exclusivamente ao jovem aspirante militar Dilermando (Marcelo Aquino) que se tornara, segundo depoimento literário do próprio, “um eterno e irremediável condenado" pelo exacerbado conservadorismo familiar e social brasileiro extensivo à opinião pública, tentando vencer a pecha de um pária até sua morte nos anos 50.

E de outro, procurando ouvir as razões do escritor e acadêmico Euclides (Sávio Moll) que justificava sua revolta e tentativa homicida, pelo desvio amoral do comportamento de sua esposa Anna com um amante domiciliar, em palavras rompantes e classificatórias de um amor blasfemo, insano e indecente.

Onde a postura conciliatória de Maria Adélia, no ritualístico papel presencial da Juíza, é exposta com expressiva dignidade dramática para compreender e decifrar o desalento dos dois personagens/réus daquele julgamento de volta ao futuro.

Sendo correspondida, com coesa tensão interior e unidade interpretativa, pela manifestação de espontânea e vigorosa maturidade dos atores Marcelo Aquino e Sávio Moll que, junto a Maria Adélia, estabelecem um carismático intercambio de cumplicidade emotiva palco/plateia.

Tudo se ampliando pela originalidade autoral de uma linguagem dramatúrgica de  poética contundência  (Miriam Halfim) que alcança uma envolvente transposição cênica no reconhecido domínio direcional de  Ary Coslov.

Em espetáculo necessário e reflexivo quando tanto se expande a violência punitiva e de apelo vingativo em nome de uma suposta lavagem da honra nas relações amorosas. Valendo relembrar, nesta hora, as palavras de desabafo confessional nas letras literárias de Anna Emilia, tornada escritora como o marido Euclides e o amante Dilermando de quase uma vida inteira, com seu transcendente e especular eco feminista:

Homem não peca, por isso pode prevaricar (...) Só os maridos tem honra a vingar”...


                                         Wagner Corrêa de Araújo


Marcelo Aquino (Dilermando de Assis), Maria Adélia (Juiza) e Sávio Moll (Euclides da Cunha). Fotos/Guga Melgar.

Matar ou Morrer – Dilermando de Assis e Euclides da Cunha está em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal, Cinelândia,  quinta e sexta, às 19h; sábado e  domingo, às 18h. Até 27 de agosto.

4 comentários:

Anônimo disse...

Tema apaixonante. Sucesso com certeza. Parabéns 👏👏👏👏👏

Anônimo disse...

Miriam é sempre fascinante! Muito corajosa tocou num tema até hoje sem solução.

Anônimo disse...

Obrigado pelo olhar carinhoso sobre o meu trabalho e este espetáculo.

Anônimo disse...

Excelente crítica e reflexão de um espetáculo fascinante!

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