A Hora do Boi. Idealização/Vandré Silveira/. Daniela Pereira de Carvalho/Dramaturgia. André Paes Leme/Direção. Janeiro/2023. Fotos/Lorena Zschaber. |
O “devir animal do
homem e o devir homem do animal”, este aliterativo enunciado verbal, fruto do
pensamento e da meta linguagem do filósofo Gilles Deleuze, pode ser inserido à
proposta conceitual de construção dramatúrgica por Daniela Pereira de Carvalho, na peça A
Hora do Boi.
Sendo capaz, no seu processo de busca investigativa, de remeter ao universo fabular de um convívio
mítico do homem e do animal e que se torna paralelo, em dimensionamento antropomórfico, a um impulso reflexivo de relação entre os dois seres.
E não por um mero acaso, este boi é titulado Chico em tributo afetivo e memorial ao
santo de tempos medievos, na representatividade como portador de denominação
similar, remetendo aqui ao fraternalismo identitário dos humanos às outras
criaturas da natureza.
E que ganha o palco, através de um ideário inicial do ator
Vandré Silveira, sob uma diferencial concepção cênica pelas artesanais mãos
diretoras de André Paes Leme. Na imaginária dialetação poética-animalista, por
intermédio de um personagem capataz, possuído por convicto apelo altruísta no
entorno de certo boi que ele ama como a um
filho.
Conflituado, no entanto, pela visionária sofrencia do saber que este amado boi não escapará do terminal cutelo, destino de um por um dos outros animais do pasto. Nas instâncias cruéis da frieza de interesseiro fazendeiro e proprietário (em off participativo do ator Claudio Gabriel), incapaz de decifrar os olhos tristes no crânio de um ser destinado à morte e considerado, apenas, como mote imediatista para ganhos monetários.
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A trajetória narrativa sendo desenvolvida em dois planos cênicos,
em ação sequencial dimensionada pela descrição metamorfoseada, sob um sotaque de
realismo mágico, de um boi pelo ângulo das vivências do capataz (Vandré
Silveira) confrontadas por um lastro de imaginários afetos com o ente bovino.
Capaz, assim, de se expressar sensorialmente como se o animal
ao vivo estivesse, afirmando sua presença, seja falando por sua voz, seja pela
sua energizada corporeidade, na envolvência de uma dúplice criatividade de substrato
gestual e coreográfico (Toni Rodrigues/Paula Águas).
Num espaço cenográfico e indumentário (Carlos Alberto Nunes) minimalista,
entre sombras e luzes focais (Renato
Machado e Anderson Ratto), com prevalências tonais rubras, destacando ao fundo a
plasticidade de uma instalação expositiva composta por partes ósseas de carcaças bovinas.
Que se integram à divisória interpretação assumida pelo ator,
ora hierática ora atirando-se ao solo, numa postulação mimético/facial em que
suas mãos e pés se transmutam figurativamente nas patas do ser bovino ou,
ainda, fissurando a quarta parede em interregnos dialetais com a plateia.
Estes preenchidos com sugestionamento alegórico de citações
de passagens sertanistas tanto de Euclides da Cunha com seu “sertanejo, antes de tudo, um forte” ou
das aventuras míticas no protagonismo empático do Riobaldo do Grande Sertão :
Veredas.
Extensivo a fragmentários recortes de letras emblemáticas de
Chico Buarque a Zé Ramalho, apresentadas aqui com um sotaque de recitativo
jogralesco, entre incidentais acordes e ruídos sonoros da trilha de Lucas de
Paiva.
Levando estas súbitas rupturas cênicas a provocar um certo estranhamento
na quebra do clima ilusório e de uma mais acomodada compreensão textual pelo
espectador. Mas sem prejudicar substancialmente o tônus dramático de espetáculo
sustentado por sólida direção (André
Paes Leme) e potencializado pela maturidade performática de um ator (Vandré Silveira).
E, antes de tudo, por sua fundamental ênfase sobre a importância do
empenho pela transmigração de valores afetivos entre os habitantes do planeta Terra, que podem e devem ser aplicados,
simultaneamente, ecoando a estoicidade exemplar da lição franciscana, da parte de um para o outro, direcionada tanto aos humanos como aos
animais...
Wagner Corrêa de Araújo
A Hora do Boi está em cartaz no Teatro Poeirinha/Botafogo, de
quinta a sábado, às 21h; e domingo, às 19h. Até 26 de fevereiro, com pausa na
semana de Carnaval.
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