MAYA : INCURSÃO FÍLMICA-TEATRAL PELO UNIVERSO VISIONÁRIO DE UMA ARTISTA UNDERGROUND


Maya. De Joaquim Vicente. Realização/Cavi Borges /Patricia Niedermeier. Fevereiro/2023. Fotos/Fabricio Duque.


A breve trajetória existencial da cineasta americana de ascendência ucraniana Maya Deren deixou um legado precioso, com sua proposta de uma estética fílmica de investigação da linguagem do corpo e da camera, sob a pulsão dúplice de um simultâneo movimentar-se  técnico e artístico tanto de um lado quanto do outro.

Através, então, de inusitadas técnicas cinematográficas de angulações óticas, slow motions, superposição de imagens, uso de fotogramas em negativo, além de um contrastante uso  de sombras e luzes, criando, assim,  as potenciais bases alternativas para o cinema independente.

E inicializando, ainda, um inovador e emancipativo relacionamento entre o cinema e a dança, até então submetido à mera filmagem documental de uma apresentação performática, desde o seu primeiro registro cronológico, em 1892, com Loie Fuller e sua dança de serpentinas.

Havendo ainda um curioso referencial da descoberta vocacional de Maya Daren e da inclusão da dança em seu imaginário fílmico, após ter se juntado à coreógrafa especialista em afro - Katherine Dunham, a mesma que possibilitou o reconhecimento internacional da precursora brasileira deste gênero - Mercedes Baptista.

Embora muito criticada pelos mentores do cinema industrial, sob o foco comercial do lazer com sotaque hollywoodiano em clara oposição ao seu ideário, Maya em menos de duas décadas, entre os anos 40 e 50, chamou a atenção de artistas assumidamente vanguardistas,  como Marcel Duchamp e John Cage, além de Anais Nin, que aderiram às suas propostas inventivas.


Maya. De Joaquim Vicente. Com Patricia Niedermeier. Fevereiro/2023. Fotos/Fabricio Duque.


Pois é no entorno do múltiplo talento desta enigmática artista marcada por transmutações místicas, aderindo inclusive a um cognome hinduísta e à sua integração aos cultos caribenhos do voodoo, que acontece o espetáculo cênico - fílmico - coreográfico Maya.

Mais uma vez, sendo estabelecida uma brava parceria de teatro/filme entre a atriz/bailarina Patrícia Niedermeier e o cineasta Cavi Borges, através de um luminoso roteiro dramatúrgico de Joaquim Vicente, longe da prevalência de quaisquer linearidades biográficas. Acompanhado por uma elucidativa exposição/tributo às pioneiras mulheres cineastas, daqui e d' acolá.

Desde a simbiótica entrada em cena da atriz trazendo  um barco para Iemanjá, com o sugestionamento paralelo do fascínio de Maya pelo mar e pelas celebrações ritualísticas das entidades do voodoo, fica pactuado um clima de magia na envolvência metafórica da personagem e na proximidade física da intérprete com os espectadores.

Ampliado em processo crescente pelos efeitos de espacialidade plástica, ora das luzes focais sobre a atriz ora das projeções de fragmentos imagéticos dos curtas em preto e branco da cineasta, fundindo-se com a poetizada energia da performance gestual  e dos arroubos sonoros de palavras que dançam junto com a corporeidade de Patrícia Niedermeier.

Onde Cavi Borges, em seu incisivo pensar cênico-concepcional, procura como fazer um simulativo uso de recursos fílmicos para transmitir à representação presencial o clima de onirismo e de situações surrealistas das tomadas originais de Maya Deren.

Numa convicta espontaneidade que se estende à unidade interpretativa de cada gesto, à verbalização dramatúrgica e às expressivas nuances faciais da atriz/bailarina Patrícia Niedermeier e, não por um mero acaso, também cineasta ascendente ja com algumas sequenciais estreias em nossas telas.  

Sabendo, de maneira personalista, conduzir um personagem que a identifica, carismaticamente entre ela e a protagonista titular, num irradiante conceitual hibrido e especular. Tornando, sobretudo, esta qualitativa peça-filme de visão obrigatória tanto para os aficionados  do teatro como do cinema.

E, em caráter mais que especial, num reflexivo contraponto critico capaz de completar o processo de busca investigativa sobre sua vida e obra (ressaltando que os filmes de Maya Deren estão disponíveis nas plataformas digitais), no instigante descortino do percurso histórico e das relações estéticas entre a  dança e o cinema.

 

                                          Wagner Corrêa de Araújo


Maya está em cartaz no espaço Estação Net  Rio/Botafogo, todos os sábados, às 21h30m.

A AFORISTA/CIA. STAVIS DAMACENO : UM INSTIGANTE EXPERIMENTO PERFORMÁTICO / MUSICAL

A Aforista.Cia Stavis Damaceno. Direção e Dramaturgia/Marcos Damaceno. Fevereiro/2023. Fotos/Renato Mangolin.


A morte atravessa as indagações do escritor austríaco Thomas Bernhard nos seus escritos filosófico/literários e sinaliza especialmente suas obras Árvores AbatidasUma Provocação, de 1984, e O Náufrago, de 1983. Que, não por um mero acaso, acabaram por inspirar duas das melhores realizações da Cia. Stavis Damaceno, de Curitiba, em proposta a ser completada  como um tríptico cênico.

Apresentadas em formato monologal, com uma sempre instigante presença da atriz Rosana Stavis, atuando sob um ideário estético questionador sob o seguro comando concepcional de Marcos Damaceno. Acompanhada por solos instrumentais ao vivo, na inquieta inventividade da trilha musical de Gilson Fukushima, em mais uma de suas partituras direcionadas aos palcos teatrais.

O que aproxima a representação dramatúrgica, com seu fluxo narrativo ininterrupto e quase desconexo nas propositais combinações verbais aliterativas e sonoridades fragmentárias, de uma performance de música contemporânea. Inicializada e já demonstrada com Árvores Abatidas Ou para Luís Melo e claramente potencializada, agora, em A Aforista

Dimensionada, nesta última, sob uma busca provocadora sustentada na simultaneidade de injunções experimentais de acordes pianísticos aleatórios (por Sérgio Justen e Rodrigo Henrique) para uma narrativa dramatúrgica sublinhada por inusitadas vocalizações recitativas (Rosana Stavis). E, subliminarmente, remetendo a algumas das visionárias criações de John Cage ou às investigativas composições operísticas de Jocy de Oliveira.

Onde Rosana Stavis alterna, burlescamente, nervosos fluxos mentais, entre súbitas lágrimas, gritos e gargalhadas irônicas, com expressões faciais histriônicas e um gestual alucinado, despenteando os cabelos tal como uma mítica medusa ou revelando os surtos tresloucados de uma alienada qualquer.

A Aforista. Peça inspirada em Thomas Bernhard. Rosana Stavis/Protagonista. Fevereiro/2023. Fotos/Renato Mangolin.

Trajada em bizarra indumentária (Karen Brusttolin) negra, hilária como uma comediante ou soturna como uma entidade propugnadora de ritos secretos. No entremeio de luzes (Beto Bruel) sombreadas que aumentam o clima de delírio nos efeitos focais sobre as contorções do rosto angustiado ou das mãos trêmulas da atriz. 

Hieraticamente situada fixamente no centro da caixa cênica (dúplice resultado da direção de Damaceno) sem nunca sair dali, num plano espacial como se ocupasse uma lápide tumular, encimado ao fundo pelo sugestionamento de uma cornucópia, ladeada  pelos dois pianos de meia cauda.

Quanto à trama dramatúrgica, a partir de uma releitura que Marcos Damaceno fez tanto de Árvores Abatidas como de O Náufrago, emblemáticas obras literárias de Thomas Bernhard, há pontos identitários entre as duas e que o diretor transcende com sua própria visão autoral, em primeiro lugar na titulação que confere às duas peças.

Tanto no caso de Árvores Abatidas ou para Luís Melo como na sua concepção para a A Aforista, trata-se de uma reflexão cética e cruel sobre a vida frente à morte através de um suicídio que marca os dois enredos. Aliás, as adversidades da condição humana funcionam, aqui, como um leitmotiv em dois planos cênicos, o da representação teatral em si e o do acompanhamento musical.

Dirigindo-se a um funeral de um antigo parceiro de estudos musicais, a atriz e narradora (num reflexo especular do pensamento de T. Bernhard) reflete, com uma raiva patética, sobre as razões controversas de ter perdido dois amigos pianistas. Um deles supostamente por um enfarte fatídico, o outro pelo suicídio causado pela conscientização de que jamais alcançaria o brilho virtuosístico e a fama do colega. 

No texto original, este personagem bem sucedido tem seu referencial no celebrado pianista canadense Glenn Gould, simbolicamente transmutado nesta versão cênica para o metafórico cognome (John Marcos Martins) de conhecido intérprete brasileiro, enquanto o suicida (Wertheimer) é figurado como Polacoviski.

E é exatamente por intermédio do retrato, entre o fracasso, a inveja e a morte assumida, que a pesonagem titular, na estelar atuação de Rosana Stavis e no hipnotizante comando de Marcos Damaceno, configura o seu relato confessional, pleno de sarcasmo, frustração, amargura e desesperança, no entorno da insensatez da vida diante de sua fatal terminalidade.

Com a palavra, Thomas Bernhard : “Não há nada a louvar, nada a amaldiçoar, nada a condenar, mas muito há de ridículo; tudo é ridículo quando se pensa na morte...’’


                                        Wagner Corrêa de Araújo


A Aforista está em cartaz no Teatro I do CCBB, Centro/RJ, de quarta a sábado, às 19h30m; domingo, às 18h.  Até 5 de março.

O INCIDENTE : UM EMBATE DRAMATÚRGICO ENTRE O RACISMO E A VIOLÊNCIA POLICIAL

 

O Incidente-American Son. De Christopher Demos-Brown. Direção/Tadeu Aguiar. Fevereiro/2023. Fotos/Carlos Costa/Ricardo Brajterman.


A peça American Son, titulada como O Incidente em sua primeira versão para os palcos brasileiros, sob uma dupla responsabilidade de Tadeu Aguiar como tradutor e diretor, estreou originalmente na Broadway em 2016. Alcançando dois anos depois uma adaptação cinematográfica por Kenny Leon, com produção da Netflix.

Numa criação autoral de Christopher Demos-Brown, um advogado americano de causas sociais já há algum tempo se dedicando também à escritura dramatúrgica, e que aborda uma temática polêmica no entorno tanto do preconceito de cor como das relações inter raciais.

Transmutada na habitualidade violenta do sistema policialesco no tratamento dos envolvidos nestes casos, sem distinção para acusados e vítimas, especialmente quando são oriundos das áreas de marginalidade social. Sendo comuns as atitudes insensatas e até homicidas dos próprios agentes responsáveis pela cobertura in loco destes fatos.

Extensiva à forma desprezível como são tratadas as pessoas de pigmentação negra quando demandam a apuração de um suspeito desaparecimento de familiares, numa delegacia em altas horas da noite. Cenário específico desta peça reunindo numa ante sala de sua sede os quatro personagens, a saber uma mãe negra, seu ex-marido de pele branca, um simples oficial de plantão e um tenente/chefe, encarregados ambos de apurações que requerem uma suposta urgência.

Numa tensa narrativa expositiva da intuitiva ansiedade materna - em sensorial performance de Flávia Santana no papel de Kendra - pela suspeita não volta de seu filho Jamal, com suas características de afrodescendente de 18 anos e que saiu em carro próprio, sem quaisquer notícias sobre seu paradeiro até aquelas horas tardias.


O Incidente-American Son. Direção concepcional/Tadeu Aguiar. Em cena, Flávia Santana e Leonardo Franco. Fevereiro/2023. Fotos/Carlos Costa/Ricardo Brajterman.

Enquanto é atendida por Larkin, o subalterno oficial de serviço, com uma assumida falta de interesse em prestar qualquer esclarecimento mais elucidativo, ampliada em nível similar pela atitude autoritária de Stokes, o tenente que surge algum tempo depois. Em funcionais atuações, respectivamente de Daniel Villas e Marcelo Dias.

Até que a trama alcance um clímax nervoso com o súbito aparecimento de um impositivo personagem - Scott, o pai de Jamal e, não por acaso mais respeitado pelos dois integrantes do departamento policial por sua graduação superior como agente do FBI. Mas que estabelece um agitado diálogo pleno de ressentimentos direcionados à sua ex-mulher, com insinuações ferinas até de vitimização racista.

A partir daí, aumentando a envolvência iniciada pela angustiosa insegurança quanto ao destino real do filho, através de instigantes falas do casal que remetem ao dossier dramático da sua birracialidade. E chega aos conflitos e causas da sua separação matrimonial, sob um energizado e convicto desempenho psicofísico da dupla atoral - Flávia Santana e Leonardo Franco.

Onde a plasticidade da ambiência cenográfica (Natalia Lana) tem um caráter aproximativo da versão fílmica, cercada por uma estrutura que sugestiona uma chuva intermitente, visualizada através de vidraças que ladeiam a sala de espera do órgão policial. Ressaltada em discricionários efeitos luminares (Daniela Sanchez) que se estendem a uma indumentária (Ney Madeira/Dani Vidal) mais cotidiana e a ocasionais inserções sonoro/musicais (João Callado).

A fidelidade especular à tessitura textual americana, por vezes, deixando escapar um reiterativo mergulho quase didático na problemática comum das relações sociais, vistas pelo olhar do preconceito racial submisso aos habituais abusos do sistema policial. Sendo suas extensas dialetações apontadas inclusive como o problema mais perceptível na adaptação cinematográfica, com sua prevalência da estética teatral sobre o tratamento fílmico.

Mas, subliminarmente, superada no prioritário dimensionamento concepcional imprimido por Tadeu Aguiar a um teatro feito para denunciar e fazer refletir sobre a necessária resistência à segregação racial. Aqui ou acolá, sempre dando um referencial eco ao apelo humanitário de Martin Luther King : “a injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar”...

 

                                            Wagner Corrêa de Araújo


O Incidente está em cartaz no Teatro Firjan/Sesi, quinta e sexta, às 19h: sábado e domingo, às 18h. Até 12 de fevereiro.

A HORA DO BOI : EM FABULAR DIALETAÇÃO COM SEU CAPATAZ SOB UM COMPASSO ANTROPOMÓRFICO

A Hora do Boi. Idealização/Vandré Silveira/. Daniela Pereira de Carvalho/Dramaturgia. André Paes Leme/Direção. Janeiro/2023. Fotos/Lorena Zschaber. 


O “devir animal do homem e o devir homem do animal”, este aliterativo enunciado verbal, fruto do pensamento e da meta linguagem do filósofo Gilles Deleuze, pode ser inserido à proposta conceitual de construção dramatúrgica por Daniela Pereira de Carvalho, na peça A Hora do Boi.

Sendo capaz, no seu processo de busca investigativa, de remeter ao universo fabular de um convívio mítico do homem e do animal e que se torna paralelo, em dimensionamento antropomórfico, a um impulso reflexivo de relação entre os dois seres.

E não por um mero acaso, este boi é titulado Chico em tributo afetivo e memorial ao santo de tempos medievos, na representatividade como portador de denominação similar, remetendo aqui ao fraternalismo identitário dos humanos às outras criaturas da natureza.

E que ganha o palco, através de um ideário inicial do ator Vandré Silveira, sob uma diferencial concepção cênica pelas artesanais mãos diretoras de André Paes Leme. Na imaginária dialetação poética-animalista, por intermédio de um personagem capataz, possuído por convicto apelo altruísta no entorno de certo boi  que ele ama como a um filho.

Conflituado, no entanto, pela visionária sofrencia do saber que este amado boi não escapará do terminal cutelo, destino de um por um dos outros animais do pasto. Nas instâncias cruéis da frieza de interesseiro fazendeiro e proprietário (em off participativo do ator Claudio Gabriel), incapaz de decifrar os olhos tristes no crânio de um ser destinado à morte e considerado, apenas, como mote imediatista para ganhos monetários. 


 A Hora do Boi. Com Vandré Silveira.  André Paes Leme/Direção. Janeiro/2023. Fotos/Lorena Zschaber. 


A trajetória narrativa sendo desenvolvida em dois planos cênicos, em ação sequencial dimensionada pela descrição metamorfoseada, sob um sotaque de realismo mágico, de um boi pelo ângulo das vivências do capataz (Vandré Silveira) confrontadas por um lastro de imaginários afetos com o ente bovino.

Capaz, assim, de se expressar sensorialmente como se o animal ao vivo estivesse, afirmando sua presença, seja falando por sua voz, seja pela sua energizada corporeidade, na envolvência de uma dúplice criatividade de substrato gestual e coreográfico (Toni Rodrigues/Paula Águas).

Num espaço cenográfico e indumentário (Carlos Alberto Nunes) minimalista, entre sombras e luzes focais  (Renato Machado e Anderson Ratto), com prevalências tonais rubras, destacando ao fundo a plasticidade de uma instalação expositiva composta por partes ósseas de carcaças bovinas.

Que se integram à divisória interpretação assumida pelo ator, ora hierática ora atirando-se ao solo, numa postulação mimético/facial em que suas mãos e pés se transmutam figurativamente nas patas do ser bovino ou, ainda, fissurando a quarta parede em interregnos dialetais com a plateia.

Estes preenchidos com sugestionamento alegórico de citações de passagens sertanistas tanto de Euclides da Cunha com seu “sertanejo, antes de tudo, um forte” ou das aventuras míticas no protagonismo empático do Riobaldo do Grande Sertão : Veredas.

Extensivo a fragmentários recortes de letras emblemáticas de Chico Buarque a Zé Ramalho, apresentadas aqui com um sotaque de recitativo jogralesco, entre incidentais acordes e ruídos sonoros da trilha de Lucas de Paiva.

Levando estas súbitas rupturas cênicas a provocar um certo estranhamento na quebra do clima ilusório e de uma mais acomodada compreensão textual pelo espectador. Mas sem prejudicar substancialmente o tônus dramático de espetáculo sustentado por sólida direção (André Paes Leme) e potencializado pela maturidade performática de um ator (Vandré Silveira).

E, antes de tudo, por sua fundamental ênfase sobre a importância do empenho pela transmigração de valores afetivos entre os habitantes do planeta Terra, que podem e devem ser aplicados, simultaneamente, ecoando a estoicidade exemplar da lição franciscana, da parte de um para o outro, direcionada tanto aos humanos como aos animais...


                                               Wagner Corrêa de Araújo


A Hora do Boi está em cartaz no Teatro Poeirinha/Botafogo, de quinta a sábado, às 21h; e domingo, às 19h. Até 26 de fevereiro, com pausa na semana de Carnaval.

CIA DOS ATORES / "JULIUS CAESAR-VIDAS PARALELAS" : O PALCO COMO UM CAMPO DE BATALHA ENTRE PERSONAGENS E ATORES


Julius Caesar - Vidas Paralelas. Gustavo Gasparani/ Concepção Cênica/Diretorial. Janeiro/2023. Fotos/Nil Caniné/Batman Zavareze.



Espetáculo idealizado para comemorar os 35 anos da Cia dos Atores, com uma das mais sólidas e vitais trajetórias nos palcos cariocas e brasileiros, Julius Caesar-Vidas Paralelas está chegando na hora certa de um incerto e conturbado momento politico ainda vivido pelo país, após uma insensata tentativa de golpe contra as instituições  do sistema democrático.

Nesta sua retomada em cena de uma conspiração milenar que levou ao assassinato de Cesar, um general romano, pelos punhais nas mãos de Brutus e Cassio, sob a justificativa de que insinuava tornar-se ele um tirano como pretenso imperador, mas contestada por seu partidário fiel Marco Antônio, em visceral discurso no Senado incitando a multidão contra o crime político.

Ao mesmo tempo em que a concepção cênica/autoral do diretor Gustavo Gasparani (aliás, o responsável original pela fundação da reconhecida Cia dos Atores em 1988) conecta, com um simbólico referencial titular "Vidas Paralelas" à obra de Plutarco, a trama de Shakespeare em simultânea e metafórica ação dramática sobre as imperfeições da condição humana. Sustentando-se esta sobre os infortúnios causados por delirante ambição comportamental de cada um dos atores (todos sob nominações fictícias) em suas incontornáveis aspirações carreiristas nos bastidores cotidianos de um espetáculo.

Sem deixar de lado, um enfoque coloquial de reinvenção cênica em que os espectadores são envolvidos, presencialmente, tanto neste clima de intrigas pessoais como no desdobramento da narrativa de William Shakespeare, misturando-se na plateia com personagens e atores, tal como se integrassem, como testemunhas caladas, a revoltada turba romana.


Julius Caesar-Vidas Paralelas. Cia dos Atores. Suzana Nascimento, Gabriel Manita, Gustavo Gasparani, Tiago Herz (em pé). Isio Ghelman, Cesar Augusto e Gilberto Gawronski. Janeiro/2023.

Tudo numa envolvente ambiência cenográfica (Beli Araújo) sintonizada em clima de construção, ora pela proposital informalidade  indumentária (Marcelo Olinto), com o uso de peças de tecido superpostas sobre trajes atuais, para sugestionar sutil caracterização de tipos e de época, ora pelos personagens e seus respectivos intérpretes aguardando serem definidos no compasso de sequenciais ensaios.

Na funcionalidade de efeitos luminares (Ana Luzia Molinari de Simoni) extensivos à plateia e intermediados por projeções cinéticas (Batman Zavareze) desde flashes faciais a antológicos fragmentos fílmicos (algum deles possivelmente do clássico Júlio Cesar, de Joseph Mankievicz, 1953, em preto e branco), sobre manifestações de soldados e populares da Roma Antiga.

Com uma execução instrumental ao vivo pelos jovens atores/músicos Tiago Herz e Gabriel Manita, o último deles na coordenação destes energizados acordes percussivos, com um autoral sotaque pop/jazzístico, entremeados por inspirado solo de saxofone. E também participando do entrecho dramático por intermédio de ocasionais falas e atuações miméticas.

Completando-se o elenco  através da reconhecida maturidade de quatro atores dividindo-se, com especial maestria, na representação dos personagens principais do enredo trágico/histórico de Julius Caesar. Cesar Augusto, Gilberto Gawronski, Isio Ghelman, além de Suzana Nascimento (esta no papel da pretensiosa diretora da peça), cada um deles no alcance de um brilho performático mais estelar que o outro.

Em espetáculo ficcionalmente sendo concebido nas cenas de ensaio e de conversas atorais sobre adequação de personagens, ao lado de muitas crises de ataques de ciúme, brigas e decepção entre eles, na dúvida armada sobre as possíveis escolhas imaginárias da controversa mentora artística.

E, por vezes, provocativo com seu lastro memorial na exposição da popular ancestralidade de emblemáticos motes verbais tais como “Até tu, Brutus” ou versos de precisa advertência, ancorados no aqui e no agora : “Cuidado com os idos de Março”...

Num transcendente conceitual sob um recorte estético contemporâneo, a meta releitura dramatúrgica de Gustavo Gasparani, a partir das maquinações de personagens históricos na busca da legitimação do poder politico no entremeio das vaidosas relações interpessoais dos atores faz, enfim, deste Julius Cesar -Vidas Paralelas uma instigante reflexão sobre o processo investigativo da criação teatral.

 

                                          Wagner Corrêa de Araújo


Julius Caesar-Vidas Paralelas está em cartaz no Oi Futuro, quintas e sextas, às 20h; sábados e domingos, às 19hs. Até 12 de fevereiro

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