O Homem do Planeta Auschwitz. De Miriam Halfim. Direção/Ary Coslov. Julho/2022. Fotos/Rafael Gandra. |
“Venho de outro planeta,
o planeta das cinzas que se chama Auschwitz...O tempo lá era diferente do que é
aqui na Terra. Cada fração de segundo transcorria em um ciclo de tempo diferente.
E os habitantes daquele planeta não tinham nomes. Seus nomes eram os números”, palavras do escritor polonês Yehiel De-Nur em seu testemunho perante
o julgamento (1961) de Adolf Eichmann, em
Jerusalém.
Diante deste mesmo tribunal, como correspondente da revista “New
Yorker", se encontrava a filósofa e ideóloga politica Hannah Arendt que, a partir dali, desenvolveu sua teoria da banalidade
do mal – “Nossa percepção do que é ser
humano está limitada pelo movimento de alienação e banalização do mal”.
E é inspirando-se num encontro presencial imaginário entre o
escritor polonês e a filósofa alemã, ambos de ascendência judaica, que é
desenvolvida a narrativa dramatúrgica de
Miriam Halfim – O Homem do Planeta
Auschwitz, na concepção direcional de Ary Coslov, tendo como atores Mário
Borges e Susanna Kruger.
Embora Yehiel De-Nur
tenha sido um dos prisioneiros de Auschwitz,
antes de se tornar um reconhecido nome da literatura judaica em Israel, ao
contrario de Hanna Arendt que
conseguiu escapar à sanha nazista como refugiada nos Estados Unidos, o
conceitual estético/conceitual da peça acontece exatamente pelo confronto
polêmico das posturas de vida assumidas pelos dois personagens.
O Homem do Planeta Auschwitz. Com Mário Borges e Susanna Kruger. Julho/2022. Fotos/Rafael Gandra. |
Onde Hannah Arendt
condena a atitude midiática de vitimização catártica do depoimento de Yehiel que, inclusive, chega a desmaiar
quase em caráter dramático, no que ela classifica de “teatro da justiça”. Como se quisesse refletir apenas sobre si,
tornado celebridade judaica após tantos reveses, a pioneira transmissão televisiva
global. Ele que fora titulado, na humilhante classificação prisional da macabra
dança do Holocausto, pelo apelido de Ka-Tezetnik
135633, com obrigatória tatuagem no braço.
Por outro lado, na incisiva reflexão dramatúrgica da autora
sobre um conflito de vontades, Yehiel De-Nur
(com o significado substantivo do aramaico - "de fogo") acende um pavio polêmico ao questionar o
não enfrentamento presencial de Hanna
Arendt, como foi no caso dele sobrevivente, entre tantos outros mortos, do trágico processo ao vivo de aniquilação naquele “planeta das cinzas”.
Em cena, Mario Borges no papel do escritor Yehiel e Susanna Krieger, protagonizando
Hanna dialogam, ora em clima de
confronto, ora em perceptível e solidária denúncia de um trágico estado de
coisas. Na lembrança memorial dos estágios da forçada deportação para os campos
de extermínio, no interregno de inimagináveis formas de opressão, até o
cumprimento da solução final nos fornos
crematórios.
Fisicamente caracterizados numa indumentária (Wanderley
Gomes) sinalizando tons mais cotidianos no caso masculino e certo formalismo na
representação feminina. Em sintonia especular na simbologia performática dos
personagens, pela vocalização mais discricionária sob hierático gestual em
Susanna Kruger e atitudes comportamentais e de verbalização nitidamente exacerbadas
em Mario Borges.
A acurada direção concepcional de Ary Coslov, também mais uma
vez responsável por eficaz montagem de climas sonoros, aqui graves e soturnos –
sustenta o inventário dramático de uma criação sóbria que transforma o palco
num circuito critico e reflexivo de ideias.
Em espaço cênico minimalista ocupado apenas por dois bancos laterais e uma metafórica alegoria de uma cerca eletrificada de arame farpado, ressaltado
pelas luzes entre sombras (Aurélio de Simoni), com emotivo referencial ao
pesadelo do “Planeta Auschwitz”.
E trazendo, sobretudo, oportuna advertência através do emblemático
legado de uma lição de horrores, para que diante de iminentes riscos de
radicalismos totalitários pela banalização do mal, não ousemos repetir a simplória
justificativa de Eichmann por seus
crimes: eu apenas obedecia e cumpria as ordens dos que mandam...
Wagner
Corrêa de Araújo
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