ROMEU E JULIETA : RELEITURA VISCERAL EM COMPASSO PSICOFÍSICO

ROMEU E JULIETA, DE MATTHEW BOURNE. Cordelia Braithwaite e Paris Fitzpatrick. 2019. Foto/Johan Person.

 

A última versão coreográfica/cinética da mais popular das criações shakespearianas, pelo inglês Matthew Bourne, segue os mesmos passos provocadores e polêmicos das releituras de Mats Ek ou de Angelin Preljocaj. Sem nenhum lastro de fidelidade à clássica trama original, como as de Kenneth MacMillan para o Royal Ballet ou a de Franco Zeffirelli para o cinema.

Por sua ambientação nos esteios marginais das urbanidades periféricas contemporâneas está mais próxima das transposições fílmicas de Robert Wise (a partir da West Side Story, de L.Bernstein) ou, na de data mais recente, por Baz Luhrmann. Aqui o cenário é a de uma Verona pelo viés de um opressivo reformatório clínico para adolescentes prisioneiros acompanhados por frios métodos psicanalíticos, enfermeiros teleguiados ou insensatos e brutais guardas.

Onde só é permitida a alegria nas atitudes de acolhimento da Madre Laurence (com seu referencial no Frei Lourenço da peça), sempre pronta a defender os internos. Especialmente a Julieta, dos violentos assédios sexuais do guarda Tybalt, mesmo assim sendo este capaz de estuprar a frágil adolescente.  

A proposta de Matthew Bourne se alinha ao seu ideário estético de sempre provocar uma radical transmutação nos enredos originais. Como já havia feito com o seu Swan Lake onde os cisnes são masculinos e, por isto, afloram os desejos homoeróticos do Príncipe. Ou por intermédio de uma Bela Adormecida gótica mergulhada num universo vampiresco de sangue e delírios eróticos.

ROMEU E JULIETA. Cena do Baile. Cenografia de Lez Brotherston.

No tom transgressor deste Romeu e Julieta, Bourne indo mais longe ainda ao substituir os climas palacianos pela frieza sufocante de um instituto de recuperação psiquiátrica, dimensionado por uma varanda, escadas laterais, portas com grades, sob clínicos azulejos brancos, na concepção cênica de Lez Brotherston, acentuada nos efeitos luminares de Paule Constable.

E, também, outra vez tomando liberdade alterativa nas sequencias narrativas, embora metaforize, em outro contexto, momentos capitais como as cenas de brincadeiras e brigas de rua que levam aos assassinatos sequenciais e à tragédia final. Provocada pelo ódio preconceituoso de Tybalt contra o relacionamento gay de Mercutio por Balthasar e por suas investidas obsessivas de machismo dominador sobre Julieta.

O elenco predominantemente jovem, na faixa a partir de 16 anos, mostra  energizada performance sustentada no frescor juvenil, em ininterrupta pulsão sob clímax nervoso, para conduzir a conturbada trajetória mental deste grupo de  adolescentes encarcerados.

Onde a ingenuidade de um baile comandado pela Madre é transcendida, aos poucos, por uma explosão de desejos sexuais reprimidos. E, no desenrolar sucessivo de cenas sincopadas, pela equivalência a um thriller de sangue e violência com um inusitado epílogo.

Além da personificação de um brutamontes Tybalt (Dan Wright), com cínico comportamento de agressividade, destaca-se o casal protagonista. De um lado um Romeu, assumido com bravura pelo jovem ator/bailarino Paris Fitzpatrick, capaz de conectar, junto a Julieta de Cordelia Braithwaite, paixão sonhadora e vulnerabilidade emotiva.

Enfim, teatro e dança  numa performance  onde há que se relevar a jovialidade de um elenco semiprofissional recrutado, em boa parte por testes, sem malabarismos técnicos por estarem todos em período de formação. Mas, atendendo aos apelos da Cia New Adventures de Matthew Bourne, em processo revelador de talentos expressando-se com rara maturidade para super jovens atores/bailarinos.

Musicalmente, este Romeu e Julieta também é ousado ao condensar, através dos arranjos (por Terry Davies) para um grupo camerístico de 15 músicos, a partitura sinfônica de S.Prokofiev, sabendo conservar as harmonias básicas através de novas sonoridades, via solos e combinações instrumentais.

Se a alguns isto possa soar como uma afronta, os temas dos pas-de-deux do casal titular procuram conservar a pureza da obra original e são selados com a envolvência de um longo beijo de amor e com a crueza sanguinolenta da despedida fatal dos amantes, numa Verona claustrofóbica que remete aos tempos pandêmicos que estamos vivendo...

                                               Wagner Corrêa de Araújo

ROMEU E JULIETA, de Matthew Bourne, está disponível nas redes virtuais, via You tube,  através da Dell Arte Digital. Até 01/04/2021.

GLAUBER : O LEGADO DE UM DRAGÃO PROVOCADOR NUM PAÍS EM TRANSE

GLAUBER ROCHA. Legado cinematográfico. Cartazes montagem/Wikimedia Commons.

Quarenta anos depois da morte de Glauber Rocha, o que terá acontecido com os questionamentos do maior agitador cultural depois de Oswald de Andrade? Especialmente neste momento em que o País vive uma crise sanitária, junto a um surto de obscurantismo e de retrocesso político propugnados por uma insensata desgovernança.

Anarquista, barroco, apocalíptico, gênio, anunciador, guerrilheiro, incompreendido, messiânico - para definir o talento múltiplo deste mistificador-mor da cultura brasileira não faltarão nunca vocábulos. Como não deixarão de existir, entre os descontentes da geleia cultural nativista e entre os que choraram lágrimas de crocodilo à beira de seu caixão, classificações de louco, caótico e oportunista.

Como não falar neste inicio de mais uma década do terceiro milênio, em exato situacionismo talvez de sua pior crise político/cultural dos últimos anos, depois do esfacelamento da política de incentivos financeiros, do fechamento e abandono de órgãos artísticos e de um quase fim da indústria cinematográfica brasileira.

Nos anos 60 e 70, quando as ideias, os textos e os filmes de Glauber marcavam uma geração de artistas de todas as áreas além do cinema, a cultura enfrentava as pressões do autoritarismo militar. Mas a turbulência dos movimentos contra a ditadura deixava um saldo positivo : a efervescência de ideias e a vontade de fazer o que se pensava levaram, afinal, a um dos mais ricos períodos da criação cultural. A poesia de vanguarda, a bossa-nova, o teatro político, o tropicalismo, a arte conceitual, o cinema novo, em todos estes campos, do intelectual ao artístico, faziam de sua atuação um instrumento revolucionário.

E é  nesta hora que Glauber se torna, com sua anarquia combativa, o mais poderoso inovador de seu tempo. Com a consagração internacional, o prêmio de melhor direção em Cannes 1969 e a inclusão de seus filmes entre os melhores da crítica, Glauber começa a inquietar sua geração. “Eu vim para confundir. Temos que começar tudo de novo”. E daí para a frente seu comportamento provocador e suas atitudes inusitadas criam prós e contras entre o intelectualismo brasileiro : “Estão confundindo minha loucura com minha lucidez”.

Quando Glauber faz as pazes com o regime militar, elogia Geisel e chama o general Golbery de “gênio da raça” transforma-se no mais atacado e mais incompreendido intelectual do País. Com sua morte que muitos amigos chamaram de assassinato cultural, Glauber torna-se uma espécie de santo guerreiro, um símbolo frente ao desencanto estético e à miséria cultural brasileira. Hoje, quarenta anos depois continua a pergunta : o que terá restado do seu inconformismo intelectual e qual seria o seu real legado estético sob o olhar da contemporaneidade?

Aquele que Hélio Pellegrino denominou de parteiro da verdade e que Paulo Emílio Salles Gomes classificou de profeta alado (Profeta não tem obrigação de acertar, sua função é profetizar) continua, com sua herança estética apocalíptica, a provocar um permanente estado de  transe na inteligentzia brasileira de nossos dias.

Com seu cinema, onde a narrativa, entre a poesia e o pânico, e o sotaque político prevalecem sobre os aspectos puramente comerciais, Glauber acabou tendo problemas com a turma do Cinema Novo : “Todos os diretores do cinema novo me traíram”, afirma ele enfaticamente”.

GLAUBER ROCHA - 40 anos de Morte (1981). Foto/divulgação/Tempo Glauber.

Walter Lima Jr., que iniciou a sua participação no Cinema Novo como assistente de Glauber em Deus e e o Diabo na Terra do Sol, tem uma resposta esclarecedora : "A contribuição de Glauber é extremamente valiosa mas o que fazemos com ela? A gente simplesmente esquece. Se ele estivesse vivo, continuaria produzindo uma obra incômoda mas a estética brasileira é exatamente a do comodismo”.

Intelectual integrado ao seu tempo com um potencializado pensar de inventiva  lucidez,  Glauber achava que o cinema tinha assumido o espaço sagrado do espetáculo teatral. Ele sabia, como poucos, dosar o ato da representação teatral dentro da linguagem visual do cinema. Na sua concepção, a única diferença entre o ritual do palco e o do cinema era o de que este último tinha a mesma força do teatro mas sob a ótica da fotografia.

E é Glauber que diz sobre o aspecto dramatúrgico de A Idade da Terra : “Eu já estava mais ligado aos rituais primitivos, quer dizer, ao teatro do irracional que é o teatro popular, mas já  não no sentido de documento histórico, político ou etnográfico, mas no sentido órfico, quer dizer, no sentido de pegar naquela matéria e transforma-la numa matéria audiovisual”.

A premonição em Glauber era a de que morreria mesmo aos 42 anos. Foi ainda longe na sua transcendência da própria criação cinematográfica, tendo seus amigos e contemporâneos mais próximos como Darcy Ribeiro ou Neville de Almeida, sentido sempre sua propriedade messiânica, seu dom profético. Coisa que veio de sua própria formação protestante ao auto-intitular-se de Judeu/Cristão/Baiano. E como se visse a luta interminável que sua mãe Dona Lúcia Rocha iria enfrentar na preservação de seu acervo memorial, extensiva ao próprio legado cultural brasileiro, em tempos de tanta adversidade como os que estamos vivendo:

“Tenho que assumir os riscos da incompreensão – isso para mim faz parte do jogo dramático da cultura”, dizia Glauber em tom premonitório para o caótico transe com que se depara, aqui e agora, a criação cultural brasileira...

                                             Wagner Corrêa de Araújo

A IDADE DA TERRA. O referencial dramatúrgico na obra de Glauber Rocha. 1980. Tarcísio Meira e Ana Maria Magalhães. Foto/divulgação. 

RUDI VAN DANTZIG E TOER VAN SCHAYK : COLÓQUIOS COM DOIS MENTORES ESTÉTICOS DO HET NATIONALE BALLET

HET NATIONALE BALLET. Episodes van Fragment, de Toer van Schayk.2016.Foto/Juri Hiensch.

Através dos colóquios pessoais com estes dois baluartes da inicialização do Balé Nacional da Holanda, lembramos, aqui, que tanto Rudi van Dantzig como Toer van Schayk sempre foram parceiros de grandes momentos da criação coreográfica de sua pátria. Colaboração que se estendeu, até a morte de Rudi van Dantzig em 2012, a outras áreas como a cenografia, figurinos e abordagens temáticas. Aliás, foi Toer van Schayk quem estreou,em 1965, como personagem titular, o carismático balé de Rudi van Dantzig - Monument  for a Dead Boy

O que prevalece em suas concepções coreográficas – o dançarino como solista/ protagonista ou a construção de grupos?

R.van Dantzig : “A construção de grupos, acredito. Mas é muito importante haver um destaque, alguém em primeiro plano, à frente dos grupos, onde o solista ou protagonista saiba destacar, como bailarino,  a expressão das diferentes formas de movimentos. Em que a personalidade do bailarino apareça através da coreografia e não porque tenha, ele próprio, uma personalidade e presença por demais marcantes”.

T. van Schayk: “Isto vai depender exclusivamente do tipo de trabalho a ser realizado. Quando uma obra é bastante abstrata no que concerne aos movimentos, as formas e construções arquitetônicas são muito mais interessantes e importantes. Em outras hipóteses, tenho uma tendência maior em valorizar as qualidades emocionais dos dançarinos, especialmente os solistas”.

É possível a utilização e combinação da coreografia clássica e moderna numa mesma companhia?

R. van Dantzig : “Acredito que não podemos escapar disso em nossa época. Uma companhia contemporânea deve, necessariamente, fazer além do clássico, o estilo moderno, pois não é bom para os próprios bailarinos ficarem submetidos ou apenas presos ao clássico. É verdade que a base é o clássico e para fazer bem o moderno jamais podemos desprezar as regras clássicas. Será, assim, através do aprendizado da técnica clássica que, utilizando-a como base, poderemos expressar bem a dança numa linguagem contemporânea".

Toer van Schayk : “No fundo e à primeira vista, parecem completamente antagônicas estas formas de dança, mas a combinação tem sido sempre possível. É o caso de nossa companhia onde a comunhão tem se dado da melhor maneira e com excepcionais resultados".

Toer van Schayk em Monument for a Dead Boy, de Rudi van Dantzig. Estréia em 1965. Foto/M.Austria.

Os acontecimentos da realidade cotidiana podem se tornar temas do balé e como é possível conciliar essas temáticas com os passos tradicionais do balé?

R.van Dantzig : Sim. Mas é impossível, por exemplo, colocar o Vietnam no palco, isso seria assustador. É como na pintura, não é necessário que as coisas sejam mostradas realisticamente – uma cor pode representar uma ideia, um sentimento. Como a música, podendo expressar melhor um sentimento humano ou tornando viáveis os ruídos da civilização moderna sem que tenhamos que colocar automóveis no palco.

A dança mostra coisas terríveis, as sensações de solidão e de desespero através dos movimentos da coreografia, sem necessidade de uma linguagem linear, discursiva. Não acredito em certos balés que tem até exércitos marchando no palco, sendo utilizados para dar maior clareza à mensagem. Acredito, sim, no trabalho de um Bob Wilson que é coreógrafo e homem de teatro, mas que trabalha não só com atores mas com gente da rua, em espetáculos com duração de seis a oito horas, sabendo fazer magnificamente esse tipo de trabalho”.

Toer van Schayk : “Acho fundamental esse tipo de utilização da realidade cotidiana. Em vários trabalhos meus fiz muitas vezes alusões a coisas do cotidiano combinadas com os movimentos coreográficos do balé – por exemplo, pessoas acendendo cigarros ou outros gestos e atitudes tipicamente característicos do dia-a-dia de um homem. Com referência aos grandes acontecimentos da realidade contemporânea, a sucessão de fatos que vão fazer parte da história, considero impossível deixar de mostra-los, não só através do balé, como por outras formas de criação artística”.

A dança estaria caminhando, em nosso tempo, para uma espécie de teatro total?

R.van Dantzig : “Há tendências crescentes para o teatro total na dança mas, em minha opinião, a dança é, antes de tudo, uma forma de arte pura e espero que ela continue assim, prescindindo da ajuda das palavras, do canto e das outras artes. A dança tem que se expressar por si mesma, de maneira autônoma, e perderia muito de seu vigor original caso se fundisse completamente às outras artes. Cito, como exemplo, Balanchine que é o mais autêntico baluarte da dança no que concerne à conservação de sua pureza original – suas coreografias provam a real força da dança como expressão própria e pura. E é exatamente por isto que o considero maior coreógrafo dos tempos modernos.

Toer van Schayk : "Não sou, em princípio um grande adepto desta tendência, chego mesmo a não acreditar em teatro total. Já vi várias apresentações inteiramente convencionais de teatro que me deixaram completamente entusiasmado, enquanto certas performances a que se convencionou chamar de teatro total tiveram um efeito exatamente oposto, tornando-me completamente frio".

Há um “estilo holandês” de dança ?

Rudi van Dantzig : “Acredito que sim, pois  temos alguns trabalhos holandeses realmente originais. É uma pena que nas turnês ao Brasil tivéssemos que excluir algumas de nossas criações mais características para dar lugar a coreografias mais tradicionais ou de mais fácil acesso ao grande público. Mas mesmo nas poucas peças autenticamente autorais pode-se notar, claramente, a presença de um estilo holandês de dança”.

Toer van Schayk – “Pode  haver um estilo holandês de dança mas, pelo menos por enquanto, ainda bastante calcado nas formas do balé norte-americano. Por outro lado, estamos assimilando, dia a dia, as experiências do balé inglês, russo, além do americano, e na pesquisa constante dessas formas vai, talvez, surgir aí um estilo propriamente holandês de dança”.

                                        Wagner Corrêa de Araújo  

TOER VAN SCHAYK E RUDI VAN DANTZIG. Em 1975, ano de sua primeira turnê brasileira. Foto/ Het Nationale Ballet. 

A TRÍADE COREOGRÁFICA DOS "VAN" E SEU PAPEL NA INICIALIZAÇÃO DO BALÉ NACIONAL DA HOLANDA

ROMEU E JULIETA, na versão coreográfica de Rudi van Dantzig para o Balé Nacional da Holanda. Remi Wörtmeyer e Anna Oll. Foto/Altin Kaftira.

Há seis décadas começava a trajetória de uma das mais exponenciais cias européias de dança – o Balé Nacional da Holanda, a partir da conexão do então Ballet de Amsterdam com o Nederlands Ballet. Reunindo, a partir de uma idéia de Sonia Gakell, os coreógrafos Rudi van Dantzig e Toer van Schayk, seguidos por Hans van Manen.

Na sua primeira temporada brasileira, em 1975, tive a oportunidade de manter um profícuo colóquio com estes coreógrafos, especialmente da parte de Rudi van Dantzig. Através dos anos continuei acompanhando sua criação coreográfica que acabou se desdobrando em outras linguagens, a literatura e o cinema.

Neste tempo de pandemia, constato aqui a disponibilização virtual do filme Para um Soldado Perdido, de Roeland Kerbosh, 1992, e também de uma parte da coreografia original no You Tube. Inspirado no relato ficcional de similar titularidade, por R.van Dantzig e, por sua vez, causa e efeito desta que é uma de suas mais celebradas coreografias - Monument for a Dead Boy.  

Um dos grandes êxitos no repertório de Rudolf Nureyev que tinha predileção por esta coreografia protagonizando-a, enfim, pelo Dutch National Ballet, numa versão de R.van Dantzig, datada de 1968. Aliás, um dos livros de R.van Dantzig é sobre a trajetória do bailarino - Remember Nureyev -The Trail of a Comet.

O romance é obra confessional, de temática antenada contra o preconceito pela livre identidade sexual, no seu relato da uma paixão homoerótica desenvolvida entre um adolescente holandês e um soldado canadense, no último período da ocupação nazista na Holanda. Que mesmo com seu tratamento mais sutil, ainda assim provocou polemicas, chegando a ser comparado, em contexto aproximativo da sedução de um menor, à trama ficcional de Lolita, por Vladimir Nabokov.

Muitos acham o filme inferior ao livro por não enveredar a fundo no dimensionamento psicofísico dos dois personagens, e em caráter especial do jovem de cerca de 12 anos em processo de atração sexual/emotiva por um soldado canadense de 20 anos, integrante das tropas aliadas ao final da Grande Guerra.

Cena coreográfica do filme For a Lost Soldier, 1992, de Roeland Kerbosh, inspirado no romance de Rudi van Dantzig.

A coreografia do balé em ato único tem como trilha uma partitura do maior compositor holandês de música eletrônica Jan Boerman (por coincidência morto em plena pandemia no ultimo mês de outubro), sem qualquer referencial melódico e quase ríspida em seus acordes percussivos sob sonoridades eletro acústicas.

Nada que lembre o leitmotiv de patética melancolia do Adagio da 5ª. Sinfonia de Mahler, marcando a perturbadora paixão de um velho maestro pelo jovem Tadzio, do livro "Morte em Veneza", de Thomas Mann para o filme de L. Visconti.

Remetendo esteticamente ao romance, de sotaque autobiográfico, por Rudi van Dantzig. Com uma narrativa de substrato proustiano ao mostrar a pulsão repressiva, no entorno familiar e social de um menino abafado frente aos seus desejos homoeróticos. Mas extremamente carregada de provocativa envolvência psicológica, via energizado e expressivo gestual.

Aproveito, assim, para registrar aqui alguns extratos destas conversas que tivemos pessoalmente e via correspondência com este coreógrafo que certa vez escreveu : “Que estas memórias das interessantes conversações que tivemos se estendam um dia, pessoalmente, do Brasil à Holanda”. R.van Dantzig morreu em 2012 enquanto Toer van Schayk, seu partner de vida e de arte, continua em Amsterdam atuante com sua obra autoral, paralela ao legado de Rudi.

Reuni estas reflexões de R.van Dantzig e T.van Schayk, através de temas comums, desenvolvidos em dois segmentos, começando pelo conceito do que seria, para cada um deles,  o ponto vital da dança.

Dantzig : “Para mim, a beleza, a força criativa da dança está na composição teatral, na comunhão das formas de arte, no poder da música e na expressividade dos bailarinos através das modalidades e da vitalidade da coreografia”.

Schayk: “É o uso do espaço, mais do que qualquer outra forma de teatro, sendo utilizado de uma maneira absolutamente visível. Isto leva à possibilidade de emoções que nenhuma arte talvez seja capaz de proporcionar – emoção metafisica, única e fantástica”.

                                            Wagner Corrêa de Araújo


Hans van Manen, Rudi van Dantzig e Toer van Schayk. 1968. Foto/Jorge Fatauros.

LIFAR/DAYDÉ, HÁ SETENTA ANOS O INÍCIO DE UMA BELA PARCERIA NA ÓPERA DE PARIS




Serge Lifar, 1951.Releitura de Suite en Blanc para o Ballet de l'Opéra, com Liane Daydé e Yvette Chauviré. Foto montagem/ Coleção S.Lifar.


Neste último 27 de fevereiro, registro a passagem dos 89 anos da bailarina francesa Liane Daydé que exatamente há quase meio século (1972) apresentava-se em turnê brasileira, incluindo o Palácio das Artes(BH). Onde tivemos o privilégio de registrar o depoimento desta que foi uma das étoiles, anos 50/60, do Balé da Ópera de Paris, especialmente através de diversas coreografias que Serge Lifar dedicou a ela.

Seu nome me veio à lembrança, em data recente através do acervo de programas de colecionadores norte-americanos e europeus que conheci por intermédio da página virtual Les Balletomanes. Com os nomes de Liane Daydé e de Lifar aparecendo em espetáculos da Ópera de Paris, várias vezes. Com feliz redescoberta também de registros de Tatiana Leskova dos anos 30, inclusive uma adorável foto (1937) desta grande mestra, linda como sempre e em plena adolescência ao lado de seu partner e também primeiro namorado George Skibine.

A primeira impressão, naquele final de ano de 72, era a de que Liane Daydé ressaltava o seu tipo mignon com os cabelos soltos e quase longos, marcando um transbordamento de simpatia, charme e inteligência. Completada pela revelação carinhosa de que o Brasil fora a fortuita causa da sua ascensão ao patamar de estrela absoluta. Numa primeira temporada sua no Municipal paulista quando, em última instância, foi convocada a fazer o papel substitutivo da solista impossibilitada devido a um mal súbito.

Acontecimento seguido por vitoriosa performance  protagonizando Giselle no Bolshoi: “Os russos sempre souberam como avaliar o trabalho de um  artista no palco e se ele não possui a necessária aptidão, se lhe  falta a técnica e expressão, de nada lhe valerá ser indicado como um grande nome”.

Marcada em sua passagem pela Ópera de Paris, por personagens com que se identificaria para sempre além de Giselle, Coppelia, Bela Adormecida e Romeu e Julieta. Na estreia em Moscou, mereceu crítica entusiasta no Pravda: “Sua Giselle é tão juvenil, ingênua e infinitamente confiante que a cena da loucura leva o público às lágrimas”.

SERGE LIFAR E LIANE DAYDÉ, na Ópera de Paris, início década de 50.

Adoro morrer em cena”, ela exemplifica assim suas parcerias como solista em criações do coreógrafo e bailarino Serge Lifar que, em anotação de um de seus livros, ressalta “a imperecível imagem deixada por Liane Daydé e Michel Renault dos Amantes de Verona”.

Segundo ela, foi Lifar que “me formou tecnicamente, enquanto o partner de Anna Pavlova – M.Alexandre Violinine – seria o responsável pelo aprofundamento de minha expressão e personalidade artística. Na escola de dança de Paris, em que estudei nos anos de formação, havia uma exagerada preocupação com os exercícios das pernas, enquanto os russos davam maior importância ao trabalho dos braços, à expressão corporal e facial. E aí acreditei ter sido realmente Lifar minha maior influência”.

Uma das mais envolventes recriações de Lifar para Liane foi Suite en Blanc que, retomada em 1951, tornou-se a mais significativa obra do coreógrafo para a bailarina no seu período na Ópera de Paris. Dali ela partiu, a convite do Marques de Cuevas, para fazer a Bela Adormecida que se tornou uma performance de significado emblemático pois antecedeu, em apenas três meses, a morte súbita do empresário e diretor do Grand Ballet du Marquis de Cuevas.

Tornando-se logo depois, através de seu marido e empresário Claude Giraud, a estrela de sua companhia Grand Ballet Classique de France, dando ênfase à dança clássica e a compositores franceses, do período clássico e romântico a um olhar do contemporâneo sustentado em peculiar releitura neoclássica, na linha prevalente adotada por Lifar e Skibine.

Quando escrevi sobre o programa do Grand Ballet Classique foi destacando a impressionante versatilidade da Swanilda por Liane Daydé, em Coppelia, no entremeio de lágrimas e riso, amor e ódio, sempre com enérgica naturalidade, provocando surpresa e alegria. Com um salto para a contemporaneidade de “Interferences” (poema coreográfico de Gilbert Mayer), em envolvente jogo de tênis em formatação de dança pantomima sob efeitos sonoros percussivos.

Sobre a Julieta, na versão de Lifar, uma trajetória provocadora, prioriza a essência do sotaque dramático quase de dança teatro, tendo Daydé ao lado de Juan Guiliano remetendo a alguns de seus mais transcendentes partners como Michel Renault e Rudolf Nureyev. Julieta não pode dançar sozinha e seu partner, aqui,  tem que ser o parceiro de uma paixão definitiva e total, compartilhada através de uma vertigem que conduz à morte. O que Serge Lifar soube imprimir conectando a emoção à fisicalidade, a corporeidade ao espírito.

Concordando com Paul Valéry de que “dança é o ato puro das metamorfoses”, Liane Daydé havia, em nossa conversa, afirmado, convicta, de que sempre teve este poeta como um de seus guias estético-espirituais. Sem deixar de incluir, sobretudo, Théophile Gautier por sua metafórica e transubstancial reflexão : “Le Ballet est une musique que l’on regarde”...

                                           Wagner Corrêa de Araújo

LIANE DAYDÉ como Giselle. Cena do filme Mayerling, de Terence Young. 1968.

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