JEAN COCTEAU : UMA ARTE COM SETE FACAS SOB O SIGNO DA MORTE

JEAN COCTEAU, 1950. Foto / Phillippe Halsman.

Envolvido na magia de um mundo mítico, habitado por semi-deuses e personagens cuja realidade se confundia com a fantasia, universo presidido pelo espectro da morte, Jean Cocteau usava seu fascínio sedutor para se tornar mentor de um círculo de amigos e amantes pelos quais seria capaz de dar a própria vida.

Evitando só assim, segundo um de seus biógrafos, “de se render inteiramente ao mundo de sonho que estava sempre a ponto de submergi-lo”. Três paixões masculinas cruzaram visceralmente seu caminho: Raymond Radiguet, Al Brown e Jean Marais.

Radiguet, a primeira delas, objeto de uma obsessão amorosa sem limites, foi colocado por Cocteau, no entremeio do instantâneo período de relacionamento erótico/poético, numa espécie de reclusão com fins criativos, ao reconhecer no atraente rapaz um raro talento.

E foi desta fuga forçada de uma vida desordenada e boêmia que surgiu a primeira, única e definitiva obra-prima – Le Diable au Corps, cuja escritura começou em 1920 mas sua publicação foi póstuma, com a morte súbita do jovem escritor, três anos depois, por um surto de febre tifóide.

Preenchendo esta trágica ausência, Cocteau faz Al Brown um boxeur esquecido reencontrar a glória dos ringues e um promissor ator - Jean Marais - se transformar em dúplice mito do palco e da tela, ambos por terem caído nos braços desse mistificador-mor.

De personalidade estética contraditória, Cocteau afirmou-se como poeta, ficcionista, dramaturgo, artista plástico e cineasta incursionando pelos caminhos das sete musas que, para ele, eram dez. E se não foi um compositor ou um bailarino, suas atuações nos bastidores da música e do balé de seu tempo foram as mais marcantes.

Por não ter tido como meta uma arte específica mas uma exuberante reunião de todas, não se classificou preferencialmente em nenhuma delas, embora considerasse prevalente o ofício de Aedo no substrato conceitual de ancestralidade mitológica greco-clássica: Poeta situado num contexto cósmico universal, cantor intemporal do perene fascínio das coisas vivas, obcecado pelo mito da morte refletida no espelho de Orfeu.

Pois ao se ligar à musa da poesia o poeta estaria, então, se confundindo com o próprio sentido da perenidade e do transitório direcionado à morte, na metafísica equivalência entre o ato de criar e o de morrer.

O OLHO ARQUITETO DE JEAN COCTEAU. Foto/divulgação.

E por isto mesmo de seus próprios amigos e contemporâneos vieram críticas incisivas que questionavam a própria validade de sua obra para um múltiplo talento criador ou manipulador/acrobata de sete facas. 

De Paul Éluard ouviu uma provocação apoiada no jogo sonoro de palavras : “Un cocktail, des Cocteau”. De André Breton : “como a figura mais detestável da nossa geração”. De Igor Stravinsky : “Um jovem impertinente”. Numa crítica parisiense: “Absurdo conglomerado artístico” e na ficha da polícia de Paris - “Cocteau, Jean. Opiômano. Pederasta. Diz que é poeta”.

Sua estréia artística começa como pequeno recitalista de seus poemas. Em 1909, publica o primeiro livro, de poemas, “La Lampe d’Aladin”. Daí até o fim de sua trajetória existencial/artística, atua na dança como autor de argumentos e de cenografias (a mais celebrada delas – Parade – reunindo-se a Picasso, Erik  Satie e Sergei Diaghilev)

Na ópera, o libreto de  Oedipus Rex, de Stravinsky, e os figurinos, cenários e direção de Antigone, de Arthur Honneger. No teatro, Les Enfants Terribles e La Voix Humaine, teatro/ópera em formato de monólogo, mais o êxito de  Les Parents Terribles e L’Aigle de Deux Têtes que o conduziria a transposições cinematográficas. Embora já tivesse estreado nas telas, em 1930, com seu experimento surrealista O Sangue do Poeta.

Além de suas três incursões contextualizadas no universo da lógica imperiosa dos sonhos, do mito e da poesia, manifestadas nos filmes A Bela e a Fera, Orfeu e O Testamento de Orfeu, numa visão estética submetida às leis do pensamento poético, fazendo com que a liberdade de criação inventasse sempre um mundo que lhe fosse absolutamente próprio:

Eu/ E tudo se constrói em torno/ de meu olho arquiteto/ e de minha orelha”.

                                      Wagner Corrêa de Araújo

JEAN MARAIS em ORFEU, de Jean Cocteau, 1950. Foto/divulgação.

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