REGRESSO A DOIS MEMORÁVEIS MOMENTOS DA CENA TEATRAL CARIOCA

KRUM. Abril de 2015. Foto/Nana Moraes.

Eu deveria quem sabe agora deixar cair uma lágrima por causa dessa espécie infeliz”. Quando um dos personagens profere esta frase, com seu cortante niilismo, é como se estivéssemos a escutar Schopenhauer : “O destino é cruel e os homens dignos de compaixão”.

Ansiedade, alienação, tédio, miséria, perpassam assim por todos os seres que povoam este pequeno, sórdido e absurdo universo de Krum. Este texto dramatúrgico, do autor israelense Hanoch Levin, é completado na simbologia de seu subtítulo – “Ectoplasma, peça com dois casamentos e dois funerais”.

A resignação, disfarçada pela ilusória perspectiva de mudanças, aproxima-os irremediavelmente de uma postura filosófica de auto-negação, no eterno retorno do fim que não leva ao nada. Aqui a difícil condição de suportar a condição humana não conduz a qualquer espécie de felicidade ou legado.

O anti-herói Krum (Danilo Grangheia) retorna à casa materna com um mala de roupas sujas, mãos vazias e nada mais. Sua vã tentativa de escapar da sufocante mediocridade de uma comunidade provinciana coloca-o, novamente, diante destes habitantes/prisioneiros da ausência de escolhas oferecida pela vida.

E em confronto com a mãe (Grace Passô) ecoando seu insistente jargão de cobrança ao filho - “O mundo só tem isso para te dar”- e também de sua antiga amante Tudra Renata Sorrah) que expõe, com palavras e canto, este em alemão, a poesia amarga de sua dilacerada intimidade em exponencial atuação.

Qualidades interpretativas presentes ainda no enfermiço Tugati (Ranieri Gonzalez) e sua mulher Dupa (Inez Viana) que troca a frustração matrimonial por uma fugaz e fria aventura sexual com Bertoldo (Rodrigo Bolzan). Ao lado do caráter risível de um casal, fazendo o falso intelectualismo de Dolce (Edson Rocha) esconder as vulgaridades de Felícia (Cris Larin), em meio ao cerimonial de casamentos e funerais.

Enfim, uma simbiótica orquestração estética de performances, tendo no podium teatral a carismática regência de Márcio Abreu. Aqui entre solos e conjuntos, sob os precisos efeitos blackouts da iluminação claro/escura (Nadja Naira), recatados figurinos (Ticiana Passos) e décors teatrais (Fernando Marés), propícios sobremaneira a este painel dostoievskiano de humilhados e ofendidos.

Destaque ainda para a expressiva gestualidade (Márcia Rubin), em especial na grotesca mecanicidade da discoteca, e para as preciosas interferências sonoras de ruidosos tremores como “ectoplasmas”, intermediados pelos cantos a capela do elenco, entre o romantismo, o sacro e o pop/rock (Felipe Storino).

Tudo enfim convergindo palco/plateia para uma melancólica catarse, perante a imobilista indiferença de uma sociedade cruel em que o ato de "viver é muito perigoso" sempre, e onde, com a morte : “Você não vai perder nada, Tugati, pode acreditar. Olha bem pra gente, olha pras nossas vidas, olha pras nossas casas...”

O raro “Anti-Nélson Rodrigues”, tragicomédia com todos os elementos característicos da dramaturgia rodrigueana, traz, no entanto, em sua carga de irônico melodramatismo, o triunfo final do amor sobre a corrupção.

Na peça, o inescrupuloso Oswaldinho (Joaquim Lopes) rouba e abusa da fortuna do pai Gastão ( Rogério Freitas) e, sob os mimos da mãe Tereza (Juliana Teixeira) , alcança a presidência de uma de suas fábricas. Ali assedia, com concupiscência e promessas financeiras, a suburbana, evangélica incorruptível, Joice (Yasmin Gomlevsky).

Com primazia absoluta pela auto-referência, retorna um dos alter egos de Nélson, o jornalista aposentado Salim Simão (Tonico Pereira), na crítica e bem humorada abordagem das mazelas da imprensa marrom e dos delírios futebolísticos.

E, paralelamente, entre maiores e menores atuações, sucessivamente, vão e voltam outros personagens como o mensageiro Leleco (Gustavo Damasceno) e a criada Helenice (Carla Cristina). Contracenando todos com as contínuas execuções de um pianista (Francisco Pons) .

A bela concepção cenográfica (Pati Faedo) alterna objetos (cadeira, cama e mesa) e revela rosas vermelhas, ressaltados pela luz cinematográfica de precisos closes (Luiz Paulo Nenem) que incidem também nos detalhamentos elegantes do figurino (Nívea Faso). E, ainda, o destaque da trilha sonora pianística (Mauro Berman), intimista e reflexiva no desnudar sentimentos.

Em exacerbado descortino emocional, desfilam conflitos filiais/paternos de desprezo e ódio, instintos edipianos matriarcais, falsidades morais, despudores da sexualidade e o barato materialismo do poder financeiro.

Tudo isto captado com densidade e poesia pela direção (Bruce Gomlewsky) que vai imprimindo sua originalidade estética sem a perda da identidade rodrigueana, num texto de rubrica titular opositória.

Enfim, esta surpresa da temporada teatral 2015 é obrigatória também pela performance exemplar de um elenco de craques, coeso e qualificativo, na exorcização de um universo sombrio onde, nas palavras do próprio “anjo pornográfico”:

Meus dramas são como a luz cruel do sol caindo sobre um pântano. Talvez algum dia o sol mude de lugar, mostrando então outras partes da paisagem humana”.

                                               Wagner Corrêa de Araújo


ANTI-NÉLSON RODRIGUES. Maio de 2015. Páprica Fotografias.




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