FOTOS/ CLÁUDIA RIBEIRO |
Imune ao vinagre, às
amarguras e aos rancores, ecoando as palavras energizadas de Zélia Gattai para o enfrentamento da difícil travessia, entre os dissabores e o desalento, de uma Nação quando imersa em
estado de alerta e de assombramento.
Para amenizar as chuvas cinzentas, o retrocesso político e
comportamental, com a cultura no front dos ataques, nada como navegar, em metafórica compensação, pelo inventário amoroso de um dos mais sensitivos e poéticos casais
da história literária do País.
Onde a artesanal transposição dramatúrgica e diretorial de
Renato Santos titulada Na Casa do Rio
Vermelho – O Amor de Zélia e Jorge, reune a atriz Luciana Borghi e o
músico dublê atoral Pedro Miranda na personificação de uma trajetória memorialística,
concebida originalmente como homenagem ao centenário da escritora.
Na simplicidade funcional de uma proposta cênica de envolvente
textualidade, dividida entre o relato confessional e o retrato documental, capaz
de resgatar o orgulho cidadão ferido diante de um legado cultural em processo de
desconstrução à causa de uma governança ignara e insensata.
A progressão dramática se desenvolvendo a partir de um suposto
último dia de Zélia Gattai (Luciana
Borghi) na baianidade da Casa do Rio
Vermelho, palco do convívio vivencial com Jorge Amado na profícua relação de quatro décadas
de amor, literatura e arte.
Numa ambiência cenográfica (Renato Santos) de minimalismo
intimista onde são vistas uma cadeira antiga de palhinha, malas e caixas com parte dos
pertences do casal baiano/paulista no imaginário desmonte melancólico da casa logo após a morte do
marido e escritor.
Sob vazados efeitos luminares (Luiz Fernando) sugestionando
um clima de nostalgia propício à contação de passagens existenciais da celebrada
dupla de intelectuais. Com os dois atores vestidos coloquialmente (Goya Lopes) e onde a elegante túnica branca bordada da atriz traz um sutil
referencial indumentário dos terreiros de candomblé.
Extensivo aos instrumentos percussivos típicos, acrescidos de
um violão, na espontaneidade interativa de Pedro Miranda (dúplice de ator-diretor
musical) em autentificadas personificações dos cantares vocais-instrumentais
de Dorival Caymmi a Vinicius de Moraes, passando por Jackson do Pandeiro, sem
deixar de fluir a prevalência das falas do próprio Jorge Amado.
Tudo integralizado, em irrestrita pulsão emotiva, nesta retomada da parceria (Borghi e
Miranda) de musicalidades teatrais através dos autos de cultura folclórico/nativista.
Aqui, com uma proposta diferencial via recortes ficcionais
memorialistas dos livros de Zélia, além de depoimentos sobre uma época que abrange
fatos e personalidades do Brasil e dos anos de exílio europeu.
Com um destaque mais que especial para amigos como Neruda,
Sartre, Glauber, Tom Jobim, João Ubaldo, Carybé, entre muitos outros habitués dos ricos encontros domiciliares regados por temas políticos e literários e muita cultura
popular, das tipicidades gastronômicas ao sincretismo religioso.
Em seu livro A Casa do Rio Vermelho, de
similaridade titular com a peça, Zélia denominava aquele espaço de A Casa
da Memória do Outro, em desambiciosa atitude tributária ao amante/escritor
como se ela fosse apenas um apêndice daquele universo mágico.
Dez anos após a sua publicação, Luciana Borghi, com sustento
valoroso da despretensiosa visão concepcional sob o comando mor de Renato Santos,
dá uma resposta luminosa à postura comedida de Zélia Gattai, com este afetuoso
desdobramento interpretativo entre a autora e a personagem.
Tomada de paixão e plena de técnica, em reverente performance
dedicada a uma das mais lídimas representantes
do poder feminino na história pátria de ontem e de hoje, em veemente colocação do seu justo papel nesta
comovente e carismática história de poesia e amor.
NA CASA DO RIO VERMELHO–O AMOR DE ZÉLIA E JORGE está em
cartaz no Teatro Prudential/Glória, sábados às 17h. 70 minutos. Até 7 de
setembro.
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