O HOMEM DE LA MANCHA E RENT: MUSICAIS EXEMPLARES


FOTOS/JOÃO CALDAS FILHO


Numa mesma semana os palcos cariocas tiveram o privilégio de estrear duas excepcionais montagens paulistas de musicais originais da Broadway,com características estéticas diferenciais mas que os tornaram favoritos no aplauso do público e da crítica.

Ambos originais do século passado, fizeram história com suas marcas estilísticas composicionais de contraponto crítico absoluto, particularizado em sua concepção musical/dramatúrgica. Embora, haja neles a similaridade da antecedência especular em duas conhecidas narrativas literárias.

De um lado, O Homem de La Mancha, da dupla Mitch Leigh (música) e Joe Darion (libreto), na trajetória do típico musical clássico, com uma das mais sucedidas carreiras dos anos 60 (desde sua première em 22/11/1965). Tendo como ponto de partida uma versão para teleteatro (Dale Wasserman) para o épico de Miguel de Cervantes,  respeitando-se o espaço da Inquisição Espanhola, mas priorizando um delírio narrativo entre a representação teatral e a contextualidade literária.

Enquanto Rent (roteiro, trilha e letras de Jonathan Larson), estreado três décadas depois, simboliza a  retomada de um musical rock metaforizando os anseios libertários e as frustrações  da juventude  anos 90 sob o pesadelo da Aids. Em contraposição às viagens alucinógenas do sonho hippie vivenciado em outro musical - Hair . 

Desta vez, mais distanciado em sua sutilização de um retrato geracional com um olhar armado na contemporaneidade, com mais da ópera de Puccini (La Bohème) que da novela do escritor romântico francês Henry Murger ( Cenas da Vida Boêmia), a fonte da versão operística de 1896.

Trocando-se um romantizado compasso lírico parisiense, entre o convencionalismo do amor e da amizade jovial, por uma conturbada pulsão dramática em enérgicos acordes roqueiros, de um grupo de artistas emergentes em busca de afirmação no East Village, sem quaisquer preconceitos raciais,  culturais ou  sexuais.

Havendo, ainda, um elemento de aproximação que aumentou a abrangência na cumplicidade do público com estes dois musicais – a transposição cinematográfica sintonizando duas linguagens artísticas do palco à tela, respeitados os limites cênicos mas sem tolher a especificidade fílmica. O que funcionou melhor para O Homem de La Mancha, por Arthur Hiller, em 1972, que em Rent, por Chris Columbus, em 2005, este um flagrante fracasso de bilheteria.

As exemplares montagens paulistas destes dois emblemáticos musicais americanos transitam entre a tradição e a vanguarda, com prevalência maior do receituário clássico no Homem de La Mancha, nesta sua segunda incursão brasileira, inicializada por Flavio Rangel com perceptível substrato politico em 1972 e retomada, com outro parâmetro inventivo, na artesanal concepção de Miguel Falabella de 2014.

Onde tudo segue rigorosamente o formato do grande musical, na riqueza de seu suporte cenográfico realista (Matt Kinley), no alterativo desenho de luzes e sombras (Drika Matheus) e, especialmente, na transposição do imaginário plástico de Bispo do Rosário para a original indumentária de Claudio Tovar, racionalizando visualmente um manicômio brasileiro em lugar de uma prisão inquisitorial espanhola.

Complementados artisticamente por uma sólida conduta musical (Carlos Bauzys), com um funcional, mas sem grandes avanços, traçado coreográfico (Kátia Barros), com vigorosa interpretação dramática do tríduo protagonizador – Cleto Baccic (Cervantes/Quixote), este com admirável tessitura vocal, mais o luminoso presencial de Sara Sarres (Aldonza/Dulcineia) e a irradiante espontaneidade de Jorge Maya (Sancho).

RENT/FOTO CAIO GALLUCCI

Quanto à episódica passagem do musical Rent em apenas duas performances, a excelente receptividade da privilegiada plateia que ali esteve (Teatro Riachuelo, a pretexto do Dia dos Namorados), valeu como forte apelo por uma temporada de verdade.

Embora o caráter lúdico do espetáculo prenda-se mais à singularização de um apurado ensemble vocal/gestual, com uma banda/sexteto afinada que amplia o potencial tanto da nervosa trilha rock, com incursões ao soul e ao funk (guiada por Daniel Rocha), como da expoente força da linguagem corporal dos quinze atores/cantores. Todos fluindo energização sob as mãos direcionais de Susana Ribeiro que obtém maior rendimento no segundo ato, depois de um primeiro que resiste na demora para dar o arranque e,enfim, acelerar.

Afinal, praticamente quase  todo o elenco está quase o tempo todo em cena o que torna mais exigente a conexão performática, num cenário (André Cortez) de bonito minimalismo mas um pouco dificultoso para as marcações simultâneas de outras ambiências. Com interessante registro de figurinos em tons pastéis ( Fause Haten ) de cotidianidade pop/urbana,  ressaltados nos recortes focais e pela vazada iluminação de Wagner Freire sublinhando as ocasionais incidências coreográficas de Kátia Barros.

Onde os personagens masculinos, de maior destaque, são assumidos por um convicto Bruno Narchi(Mark), dividindo-se entre a representação e como o único com direito a falas narrativas a capella; Thiago Machado em vigorosa entrega como Roger; um carismático Collins  (Guilherme Leal) e um sensorial Angel (Murilo Armacollo).

E, entre as atrizes, além das rompantes intervenções na bissexualidade de Maureen (Giovana Moreira) e Joanne (Priscila Borges), a única réplica nominal de uma personagem originária da ópera de PucciniMimi (Corina Sabbas).

Sabendo, identificada dentro do conceitual das adversidades e conflitos existenciais dos personagens de Rent, como bem dimensionar as nuances psicofísicas de sua personificação da ansiedade de viver cada  momento que se passa, sempre, entre a poesia e o pânico.

                                          Wagner Corrêa de Araújo


O HOMEM DE LA MANCHA está em cartaz no Teatro Bradesco/Shopping Village Mall/Barra, quinta e sexta, às 21h; sábado às 17h e 21h; domingo, às 20h. 110 minutos. Até 27 de julho.

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