CIA SOLAS DE VENTO : LÚDICA E INVENTIVA INCURSÃO DRAMATÚRGICA PELO UNIVERSO FICCIONAL DE JULES VERNE


Cia Solas de Vento. Viagem ao Centro da Terra. Maio/2022. Foto/Mariana Chama.


A temporada com três espetáculos de lavra da paulista Cia Solas de Vento, sob o título geral de Viagens Extraordinárias, sequenciadas com A Volta ao Mundo em 80 Dias, Viagem ao Centro da Terra e 20 Mil Léguas Submarinas,  trouxe um novo alento às tradicionais peças direcionadas a um público infantil, longe dos habituais contos da carochinha.

Normalmente mais ligado à critica analítica da dança e do teatro para adultos resolvi acompanhar, mensalmente, cada uma destas peças inspiradas num trilogia de clássicos de Jules Verne. Primeiro, através da recomendação de especialistas neste gênero de teatro e, segundo, por uma questão nostálgico/afetiva.

Da infância, pelas plagas de várias cidadezinhas de uma Minas interiorana, onde as matinês de final de semana  eram a expectativa das crianças, acompanhadas de seus genitores. No meu caso, o juiz de direito destas comarcas Plácido, que ia ao cinema todos os dias,  única opção lúdica nestas provincianas veredas roseanas entre as montanhas das Gerais, sem televisão ainda e distante do porvir da internet.

Além de acompanhá-lo quase sempre nesta que foi a inicialização à futura paixão pessoal pela sétima arte,  no entremeio deste final dos anos 50 e a década de 60, pelos velhos “cinemas poeira". Inclusive assistindo às primeiras versões em cinemascope a cores destes filmes, inspirados na saga precursora da ficção cientifica, por intermédio do francês Jules Verne.

Todos eles longe ainda da tecnologia e dos efeitos especiais que marcariam tanto o cinema, sem  deixar de falar no futuro com a internet, nas inúmeras versões em filmes e séries destes clássicos. O que me incentivou mais ainda a revê-los confrontando os originais e sua adaptação para o palco nos dias de hoje.


Cia Solas de Vento. Vinte Mil Léguas Submarinas. Junho 2022. Foto/Mariana Chama.


E com isto foram mais surpreendentes as emoções do reencontro destas obras sob os artifícios inventivos da Cia Solas de Teatro, atuante desde 2007 no comando estético/concepcional da dupla Ricardo Rodrigues/Bruno Rudolf, conceituada e dona de merecidos prêmios em júris de teatro infantil por suas reveladoras realizações.

Na prevalência de uma fórmula descortinadora de possibilidades capazes de unir o teatro físico, mímico e de bonecos, às artes circenses e técnicas coreográficas. Paralela à outra especial qualificação quanto ao recurso a elementos dramatúrgicos e cênicos (cenografia, indumentária, luzes, trilha sonora), com exclusiva autoria e resultado de sua múltipla faceta criativa.

Utilizando-se de uma linguagem que privilegia as atitudes criadoras, os integrantes da Cia, aos quais se junta  também a participação valiosa de outros atores tais como André Schulle, todos eles  integralizados em apurada atitude performática à qual nunca falta o entretenimento.

Inseridos em um percurso pleno nas variações risíveis de tonalidades vocais que imprimem diferencial caracterização aos seus personagens com suas especificidades burlesco/circenses. Carregadas de uma corporeidade acrobática e de mimético gestualismo coreográfico, preenchendo a caixa cênica que, sob efeitos luminares e projecionais, se transforma quase numa tela de cinema.

Trazendo também um referencial de identificação estético/cinética com as inúmeras mostras do cinema primitivo de Georges  Méliès (desde o Jules Verne de Viagem à Lua, 1903) aos filmes de animação daqueles anos, a maioria dos países da Europa Oriental. Que organizávamos para espectadores de todas as idades, quando idealizamos a Sala de Cinema Humberto Mauro do Palácio das Artes (BH), já nos idos de 1977 a 1981.

Lembranças, enfim, despertadas por estas nuances delicadas de clímax e pequenos mistérios provocados por uma espontânea criação cênica, quase peças-filmes, e sua cativante interpretação. Que se, por um lado atraiu a cumplicidade entusiasta da plateia de grandes e pequeninos, foi capaz de insuflar indisfarçável emoção memorial, em viagens extraordinárias pelos espaços siderais da mente...


                                         Wagner Corrêa de Araújo


Cia Solas de Vento. A Volta ao Mundo em 80 Dias. Abril/2022. Foto/ Mariana Chama.


A Cia Solas de Vento com suas Viagens Extraordinárias fez temporada, sábados e domingos, às 16h, no Teatro II /CCBB/RJ, entre os meses de abril a junho 2022.

SPCD/COR DO ARCO IRIS : AQUARELADO TRIBUTO COREOGRÁFICO AO MODERNISMO BRASILEIRO


SPCD / Desassossego, de Henrique Rodovalho. Junho/2022. Foto/Charles Lima.


‘’Para você ganhar belíssimo Ano Novo cor do arco-íris, ou da cor da sua paz”...a São Paulo Companhia de Dança faz das palavras do poeta maior Carlos Drummond, o emblema de sua Temporada 2022. Não só pela alegria do resgate dos palcos presenciais depois de um biênio pandêmico, mas também como um simbólico e oportuno  tributo aos cem anos da Semana de Arte Moderna.

Significativo para tempos de tantos desafetos causados pelo distanciamento obrigatório e de tamanho desalento enfrentado pela criação cultural do país, sob o crivo de equivocadas políticas oficiais. Não há, afinal, que se deixar de celebrar a brava resistência da SPCD, no sempre idealizador comando de Inês Bogéa, por esta vitoriosa retomada do fundamental contato palco/plateia, em espetáculos ao vivo, com a Orquestra do Theatro São Pedro, na refinada regência de Cláudio Cruz.

Em necessário projeto de exaltação memorial de um dos mais profícuos movimentos artísticos, através de inventiva incursão coreográfica pela obra de alguns de seus grandes mentores. Desde seu legado musical (Villa-Lobos, Mignone, Camargo Guarnieri) a expoentes de sua criação pictórica, das pinturas de Di Cavalcanti à iconografia indumentária de Flávio de Carvalho.

Partindo, inicialmente, de nossa tradição seresteira, numa retomada emotiva dos encontros e declarações dançantes de casais apaixonados, sob um compasso rítmico de valsas populares em noites enluaradas. Madrugada na concepção coreográfica de Antônio Gomes propicia, assim, delicadas e nostálgicas manifestações gestuais carregadas de recortes musicais que, certamente, pontuaram os melhores anos de encantamentos amorosos de qualquer um de nós.

Com os funcionais figurinos cotidianos de Fabio Namatame e as artesanais transcrições orquestrais das peças pianísticas de Francisco Mignone (por Rubens Ricciardi), ambientadas nos sugestivos efeitos luminares de Wagner Freire, levando a um clima psicofísico de magia e sonho.


SPCD/ Madrugada, de Antônio Gomes. Maio/2022. Foto/Charles Lima.


Referencial nome da dança contemporânea paulista, através de sua trajetória de bailarina/coreógrafa, Miriam Druwe imprime um particular estilo às suas criações voltadas para a releitura dançante da obra de artistas plásticos como Dali, Tarsila e, agora, Di Cavalcanti. Seu Di incursiona pelas paisagens e tipos característicos da realidade urbana carioca, através das projeções visuais de suas telas em dinâmica e interativa frontalidade com os bailarinos participantes da obra.

Numa carismática fusão de corpos, com traços indicativos da indumentária pictórica (Fabio Namatame) e nas inventivas intervenções digitais de luzes cinéticas (Wagner Freire) na caixa cênica, levando ao alcance de uma singular brasilidade, ampliada na envolvência dos acordes melódicos/percussivos dos Choros nº 6 de Villa-Lobos.

O programa 2 inclui Infinitos Traçados (2021) como a segunda obra não inédita, ao lado de Madrugada, trazendo um efusivo recurso das concepções virtuais, com simultânea participação à distancia, numa criação coletiva pelo conluio propulsor de 3 coreógrafos, 8 bailarinos, 8 músicos, em energizada performance e envolvente concepção direcional de William Pereira. Intercambiando visões diferenciais, em processo digital, de artistas canadenses, uruguaios e alemães ao lado dos brasileiros sediados no exterior, numa reveladora convergência estética de múltiplos talentos direcionados à SPCD.

Já na última criação de Henrique Rodovalho, intitulada muito a propósito de Desassossegos, há um mergulho profundo e provocativo em novas descobertas na dinâmica de corpos em potencializada conexão. Além da alusão modernista, nos traços gráficos das imaginárias figurações originais de Flávio de Carvalho para A Cangaceira, na histórica Cia de Balé do IV Centenário.  

Capaz, em visceral vocabulário do movimento, de desafiar aqueles momentos do inquieto desassossego que tomou conta dos artistas diante do período pandêmico e das adversidades financeiras e ideológicas na luta pela sobrevivência da criação cultural.

Enquanto a composição musical de David Lang completa o ideário inovador de um vocabulário do movimento onde as contrações musculares e fragmentárias de sete bailarinas, na intensidade de suas performances solistas ou grupais, fazem despertar um sopro de superativa fé em meio às trevas.


                                        Wagner Corrêa de Araújo


SPCD/ Di, coreografia de Miriam Druwe. Maio/2022. Foto/Charles Lima.

Os programas 1 e 2 da Temporada 2022 da SPCD foram apresentados entre os dias 26 de maio e 05 de Junho, no Theatro São Pedro/SP. 

 

GIRA E PRIMAVERA/GRUPO CORPO : DESCARREGO E ESPERANÇA POR DIAS MELHORES

    Primavera / Grupo Corpo. Coreografia Rodrigo Pederneiras. Junho/2022. Foto/José Luiz Pederneiras.

 

Neste reencontro do gestual/signo na trajetória coreográfica do Grupo Corpo estão de volta os remelexos e requebros de quadril acrescidos, agora, dos agachamentos na desconstrução/descontração da verticalidade postural em tensas dobraduras/elipses/giros, propícios sempre ao ato de receber as “entidades”. Fazendo de Gira, sem artifícios virtuosísticos e sem concessões folcloristas, um carismático ritual coletivo de arte/vida, com total apelo de sintonização palco-plateia.

Um dialetal encontro terreno/celeste do Corpo acionado na incorporação das  entidades presididas por Exu, o Orixá mor, via Gira. E transubstanciado no comando do cerimonial de encantamento religioso/popular, com sutil visagismo sanguíneo entre o pescoço e a carne de peitorais desnudados. “Metá Metá”, macho e fêmea unificados nos circuitos umbandistas do Gira, em território candomblé - o metafórico espaço cênico de descendimento dos orixás.

Alternando saídas e entradas de bailarinos, confinados  sob véus em coxias/santuários, na funcional envolvência de uma instalação ambiental (Paulo Pederneiras), ora entre blackouts e pontos luminares (Paulo/Gabriel Pederneiras), ou mesmo  que seja  entre as sombras, modulando torsos despidos sobre rústicas saias incolores (Freusa Zechtmeister).

Na última proposta coreográfica antes que viessem os tempos sombrios de um biênio sob perspectivas sombrias - da tragédia encimada pelo surto pandêmico ao paralelo obscurantismo a que foi relegada a condução político/cultural brasileira. Diante de tudo isto Rodrigo Pederneiras, mergulhado em tempos de forçado isolamento, sob um ideário do resgate da crença pela superação, pensou numa Primavera coreográfica como antecipação pela vinda de um futuro mais promissor.


Gira. Grupo Corpo. Coreografia Rodrigo Pederneiras. Junho 2022. Fotos/José Luiz Pederneiras.


Afinal, não é a Primavera a estação das alegrias trazida pelas cores e flores, e não passava já da hora de celebrar novamente o reencontro das proximidades afetivas e de uma corporeidade marcada pelos desejos sensoriais?  É o que se faz presencial neste retrato coreográfico, no entretempo de marcas profundas de dor e solidão à causa do distanciamento, no anseio pela luminosidade da soltura libertária através de um corpo a corpo.

Sustentado, aqui, pela energizada trilha sonora inspirada no repertório de canções infantis do grupo Palavra Cantada (Paulo Tatit/Sandra Peres). Em precisos arranjos instrumentais privilegiando um estilo percussivo sob sotaque jazzístico/afro. Mas sem perder os acordes originais de melodias vocais que sempre entusiasmaram um público tanto de crianças como de adultos.

Num referencial à fase das plataformas digitais na pandemia, a coreografia se estrutura sob um estética com prevalência de solos e apenas três pas-de-deux daqueles bailarinos casados na vida real. Preenchendo inventivamente o vazio do palco com o recurso cinético da projeção instantânea e frontal do ir e vir destes bailarinos em cena, com uso de efeitos de movimento e congelamento das imagens. Em eficaz concepção cenográfica de Paulo Pederneiras, com parceria de Gabriel Pederneiras na  iluminação.

As vibrantes cores primaveris e florais tem prioridade nos figurinos (Freusa Zechmeister) femininos de saias de musseline, enquanto a indumentária dos bailarinos fica entre o branco e o preto. Esta diversidade imaginária de tons é, assim, capaz de transcender um simbolismo  aquarelado, sugestionando pictórico referencial aos toques azuis e amarelos, como aqueles dos vasos com girassóis impressionistas de Van Gogh, ou o dos verdes e vermelhos boreais da Primavera renascentista de Sandro Botticelli.

E num alcance mais longe, em caráter comparativo, enquanto as vigorosas danças terra-a-terra de Gira em processo ritualístico/religioso trazem subliminares traços da Sagração russa transportada ao Candomblé, a delicadeza expressiva do movimento nesta Primavera, em sua conotação de espontânea leveza espacial, sintetiza o resgate de um respirar fundo direcionado à esperança de que dias melhores virão...   

 

                                        Wagner Corrêa de Araújo



GIRA E PRIMAVERA-GRUPO CORPO, cartaz no Teatro Multiplan Village Mall/Barra RJ/ quarta a sábado,  às 20h; domingo, às 17h. 90 minutos. Até 19 de junho.

JUDY – O ARCO IRIS É AQUI : OU QUANDO NASCEM AS ESTRELAS

 

Judy -O Arco-Íris é Aqui. Com Luciana Braga. Junho de 2022. Foto/Beti Niemeyer.


A propósito do "star system" afirma Edgar Morin, em seu livro As Estrelas Mito e Sedução no Cinema : “Hoje em dia, as fotografias das estrelas continuam a aparecer em primeiro plano em jornais e revistas. Sua vida privada é pública, sua vida pública é publicitária, sua vida na tela é surreal, sua vida real é mítica”.

Nada mais adequado para definir a trajetória existencial e artística de Judy Garland com seus breves quarenta e sete anos de uma carreira de ascensões absolutas, no entremeio de uma vida privada marcada por quedas e desafetos, consumida pela dependência de anfetaminas e barbitúricos e regada com muito álcool.

O que vem inspirando uma saga mítica, incluída a de ser musa do movimento gay na simbologia das cores do arco-íris, desde sua morte na solidão de uma madrugada londrina. Através de biografias, filmes, musicais e séries televisivas, com um referencial extensivo às glórias e decadências - o árido preço da fama na vida de muitos artistas.

E foi pensando em um diferencial retrato e numa quase similaridade na busca de caminhos artísticos que o dramaturgo e diretor Flávio Marinho promoveu uma espécie de encontro metalinguístico e atemporal entre  estas duas  atrizes cantoras - a americana  Judy Garland e a carioca Luciana Braga.

Judy - O Arco Íris é Aqui. Flávio Marinho, autor e diretor. Junho 2022. Fotos/Beti Niemeyer.

A partir da constatação de uma certa semelhança física entre as duas e que, segundo Luciana Braga, tornou-se um insistente mote comparativo entre ela e Judy, desde a infância quando ela gostava de interpretar, à sua maneira peculiar de mimética imitação, alguns de seus temas clássicos como Over the Rainbow.

O que levou Flávio Marinho a um desafio no estabelecer pontos de ligação entre as duas, em transcendente propósito de criar liames conceituais entre artistas de épocas diferentes, além fronteiras, numa abordagem afetiva do seu oficio e da sua missão universal .

Com um dimensionamento  equilibrado das descobertas especulares de duas trajetórias, sem que nenhuma delas tenha prevalência absoluta sobre a outra. Mas, sim, criando um metafórico e lúdico jogo psicológico dos relatos biográficos, ora de uma ora de outra, tornando a proposta fascinante tanto para os espectadores comuns como para os inveterados seguidores de Judy.

Com momentos de extrema sensitividade e feliz revelação quando Luciana interpreta a célebre canção (You Made Me Love You) expositiva da paixão adolescente de Judy Garland diante de uma foto de Clark Gable que, aqui, é substituído por Marcos Paulo, um galã com quem ela sempre sonhava em contracenar nos seus primeiros tempos de gravação de novelas.

Ao contrário do mais recente filme, protagonizado por Renée Zellweger e focado na fase terminal, aqui a abordagem é de uma vida inteira, desde quando Judy, a menina adolescente, já estivesse a postos nos estúdios para gravar por uma jornada alucinante de pelo menos 12 horas diárias.

Onde Luciana Braga exibe sua potencialidade como exímia intérprete de alguns dos hits musicais de Judy, sob os artesanais arranjos da pianista Liliane Secco, dividindo o acompanhamento camerístico com o músico André Amaral. Com um minimalista arcabouço cênico de Ronald Teixeira, responsável também pela elegante indumentária da atriz, ressaltados em discricionárias luzes ambientalistas (Paulo Cesar Medeiros).

Tudo, enfim, fazendo desta peça uma reveladora surpresa em tempos tão adversos para a criação cultural brasileira. Encenação sintonizada pela reconhecida autoridade cênica de Flávio Marinho, sob a força arrasadora de um texto de envolvência sensorial.

E que encontra idêntico grau de coesão e luminosidade através de uma atriz (Luciana Braga) concedendo ao personagem a dimensão de magia que ele tem, ao mesmo tempo como vivencia o papel dela mesmo e alcança, assim, a mais completa cumplicidade da plateia.

 

                                       Wagner Corrêa de Araújo

 


Judy, o Arco-Íris é Aqui está em cartaz, no Teatro Vannucci, Shopping da Gávea,  nas sextas e sábados, às 21h. e nos domingos, às 20h. De 10 de junho a 07 de agosto

 

AÍDA SEGUNDO BIA LESSA : SOB O CONFLITO ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE

Aída, ópera sob concepção cênica/diretorial de Bia Lessa. Temporada 2022. TMSP. Fotos/Stig de Lavor.

 

A primeira grande produção de ópera em moldes brasileiros, pós interregno de um biênio à causa do surto pandêmico, é Aída, segundo a concepção diretorial de Bia Lessa, para o TMSP. O que remete à questão das montagens de ópera no Brasil, cada vez mais raras e não ultrapassando no caso paulista, divididas entre o Municipal e o Teatro São Pedro, um alcance, em média,  de dez produções anuais, considerando-se os dois palcos.

E também não deixa de ser um mérito em relação, por exemplo, ao Municipal do Rio. Decididamente melhor em temporadas ancestrais e que teve ainda a feliz ousadia, na direção artística de João Guilherme Ripper, de iniciar um projeto de coproduções com o similar teatro paulista. Solução com perspectivas para, além da divisão de custos, de dar ao público mais opções de óperas a serem vistas em cidades diferentes.

A interrupção do projeto mostra como, aqui, os caminhos e soluções para este carente gênero cênico/musical continuam cada  vez mais intransponíveis. Lembrando este fato a propósito da polemizada espécie de releitura de uma ópera básica do repertório tradicional – a Aída em cartaz no TMSP

Ao contrario dos palcos de ópera europeus e americanos, com suas temporadas longas e com dezenas de títulos, entre montagens rigorosamente presas à tradição ou aquelas, sob configuração de livres retomadas, com o olhar armado na contemporaneidade. Direcionando o gosto diversificado do espectador, ora por gregos, ora pelos troianos...O que não é favorecido, no caso brasileiro, ao optar na raridade de suas temporadas, por investir em qualquer prevalência seja de uma tendência ou outra, especialmente quando se aventura por certas óperas de repertório que dificilmente resistem a uma releitura mais ousada.

Como no presente caso, numa transgressiva visão da guerra, além do Egito Antigo, com suas relações de poder e submissão, potencializadas no momento culminante da ópera - a Marcha Triunfal do Ato II. Onde a tradição coreográfica do balé  se limitou a uma inspirada e sensual dança das sacerdotisas e escravas seminuas, sequenciada por alusões à violência, estupros e morte, integralizando uma provocação sem atenuantes dos horrores de uma batalha sanguinária.


Aída, ópera verdiana na releitura de Bia Lessa. TMSP. Junho de 2022. Fotos/Stig de Lavor.


Aída é dessas óperas cujas adaptações radicalizadas constituem um verdadeiro desafio por seu contextual historicista arcaizante e, raramente, sendo assumidas como êxito de público ou de crítica. Vejam-se casos recentes de uma Aída na Ópera de Paris, em novembro último, transpondo seu enredo para 1871, data em se inaugurava o Canal de Suez e, na nova Casa de Ópera do Cairo, estreava a criação de Verdi, como encomenda especial para a ocasião.

Priorizando a trama com enfoques políticos da época, onde Radamés é sugestionado como Napoleão e sua pulsão por conquistas colonialistas. Sendo os personagens egípcios meras marionetes gigantes, manipuladas em cena, e a voz correspondente dos cantores soando quase como um playback. Com rejeição absoluta do público e da crítica e retirada de cartaz em curto tempo.

A versão cênico/diretorial de Bia Lessa não se ateve ao rigor da tradição mas, ao mesmo tempo, ficou no meio do caminho sem grandes avanços inventivos. Onde a estética cenográfica, com incidentais referencias inspiradas em pinturas tumulares e hieróglifos, pouco funcionou com suas caixas/mobiles, fissurando toda monumentalidade faraônica a que esta ópera induz.

Além de um figurino atemporal (Sylvie Leblanc/Maira Himmesltein) revelando algumas caracterizações bem equivocadas. E mesmo os efeitos luminares de um craque da iluminação coreográfica (Paulo Pederneiras) acabaram funcionando mais nas cenas de luz entre sombras, talvez pelo disfarce do deficitário visual da caixa cênica.

Sendo a parte musical superior, não só pela energizada e digna condução da Orquestra Sinfônica Municipal por seu regente titular (Roberto Minczuck). Pelo que enfrentou em substituições emergenciais, incluído o Coro Lírico, com pelo menos 16 abstenções, na incidência de crescentes contaminações pandêmicas.

Basta dizer que, na segunda récita, no sábado 03/06, o Radamés do tenor Paulo Mandarino, recém saído de uma má recuperação pós Covid, teve sua atuação prejudicada e às pressas, a partir do ato seguinte, entrou no seu lugar o integrante do coro conhecido por Marcelo Vanucci. Cujo desempenho cênico revelou maior firmeza, clareza e extensão vocal, destacando-se melhor, no naipe masculino, que a discricionária e hierática interpretação do barítono Douglas Hahn, como Amonasro.

Enquanto a Amneris da meio-soprano Andreia Souza foi significante por seus dotes vocais, sem o alcance absoluto das cores sonoras como marcas presenciais de seu personagem. O que ficou para o protagonismo titular de Marly Montoni, não só pela riqueza de sua tessitura e de seus timbres puros, como por sua convincente e sensorial performance como atriz e soprano dramático.


                                        Wagner Corrêa de Araújo


Aída.Cenas da Marcha Triunfal onde Bia Lessa ousou mais e criou polêmica.Fotos/Stig de Lavor.

Aída, de Verdi, por Bia Lessa, está em cartaz no Teatro Municipal de São Paulo, em horários diversos, com dois elencos, de 2 de junho sexta-feira a domingo, 11 /06.



16º PRÊMIO APTR : EM NOITE DE RESGATE DA CRIAÇÃO TEATRAL BRASILEIRA SOB TEMPOS ADVERSOS

Em Nome da Mãe. Com Suzana Nascimento. Quatro Prêmios : Melhor Espetáculo, Direção, Atriz e Música. Foto/Elisa Mendes.




A concorrida e significativa noite da premiação, em caráter nacional, do 16º Prêmio APTR aconteceu na última segunda feira, 6 de junho, no Teatro Claro Net. Diante do enfrentamento de mais um ano (2021) ainda marcado por dúplice pânico, do surto pandêmico mortal à controversa crise de governabilidade, com seu assumido retrocesso no  total descaso à criação cultural brasileira.

Transformando a cerimônia num ato simbólico de reencontro presencial e afetivo da classe artística mas, ao mesmo tempo, trazendo a representatividade de vozes e segmentos sócio culturais, numa manifestação unanime - palco/plateia – de necessário anseio por tempos melhores.

Apostando, outra vez, nos espetáculos apresentados nas plataformas digitais, marcados pela impossibilidade de se ater, por motivos de risco sanitário, à tradicional configuração do teatro presencial. Criando-se um formato híbrido, mas não menos válido e, por vezes, sob resultados surpreendentes com perspectiva por possível vida longa.

E, nesta substituição do encontro vivo palco/plateia, pela conquista de um público virtual em nível nacional, dos centros urbanos ao mais interiorano rincão, possibilitando-se, assim, um inédito circuito de alcance social do espetáculo teatral.

Refletido na ampla diversidade de gêneros e temáticas, provando como, apesar de tudo, houve um surpreendente e concentrado esforço de norte a sul do país, para que não fosse interrompida a criação teatral, ainda que sob uma árdua luta de sobrevivência pela  falta de recursos e na crescente pressão de uma equivocada politica cultural em nível oficial.

Abrindo novas frentes, as categorias de premiação divididas em segmentos dramatúrgicos diferenciais, embora sintonizados com as plataformas digitais, mas cada vez mais próximos da retomada do sistema habitual, ao vivo e a cores, dos prêmios dedicados às artes cênicas.

À frente de um ideário de luta afirmativa da força de nossos autores, atores, diretores, ao lado de mestres em cenografia, figurinos, luzes e música, aliados indispensáveis à construção conceitual e estética dos espaços e espetáculos cênicos. Com homenagens presenciais e mais que merecidas aos atores Antônio Pedro, Emiliano Queiroz, Miriam Mehler e Suely Franco.

Em festivo evento na concepção geral do Presidente da APTR – Eduardo Barata, tendo como apresentadores Eduardo Moscovis e Cris Vianna, promovendo um justo tributo ao centenário de Bibi Ferreira. A partir da análise de mais que uma centena de peças do Brasil inteiro a comissão julgadora, formada por Beatriz Radunsky, Carmen Luz, Daniel Schenker, Lionel Fischer, Macksen Luis, Maria Siman, Tania Brandão e Wagner Corrêa, contou com o apoio valioso dos integrantes do  Colegiado da APTR.

O que acabou se constituindo em visceral ato político de convocação da classe teatral para desafiar o caótico estado de subproduto a que foi relegado o fato cultural por nosso atual (des)governo, entre outras coisas, assumido também com o declarado e famigerado veto a projetos de incentivo como as Leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo.

 

                                            Wagner Corrêa de Araújo

 

Beth Coelho em Medéia Por Consuelo de Castro. Premio Atriz Protagonista.



16º PRÊMIO APTR DE TEATRO ANUNCIA OS VENCEDORES DE 2021 


Autor:

Guilherme Gonzalez – Rainha


Direção:

Miwa Yanagizawa – Em Nome Da Mãe


Cenografia:

Analu Prestes – Sonhos Para Vestir


Figurino:

Simone Mina e Carol Bertier – A Gaivota


Iluminação:

Renato Machado – Vozes do Silêncio


Música:

Federico Puppi – Em Nome Da Mãe


Ator em papel Coadjuvante:

Joelson Medeiros – Cuidado Com As Velhinhas Carentes e Solitárias


Atriz em papel Coadjuvante:

Maria Esmeralda Forte – Meu Filho Só Anda Um Pouco Mais Lento


Ator em papel Protagonista:

Filipe Codeço – Aquilo De Que Não Se Pode Falar

Luis Lobianco – Macbeth 2020


Atriz em papel Protagonista:

Bete Coelho – Medeia Por Consuelo De Castro

Suzana Nascimento – Em Nome Da Mãe


Espetáculo:

Em Nome Da Mãe


Jovem Talento – Troféu Manoela Pinto Guimarães:

Elenco – Invencíveis

 

LISTA DE INDICADOS POR MEMBROS DA COMISSÃO DO PRÊMIO

 

Espetáculo Infanto-Juvenil:


A Menina Akili E Seu Tambor Falante, O Musical – Autor: Verônica Bonfim| Direção: Rodrigo França


Categoria Especial:

Ana Beatriz Nogueira – Pelo Projeto “Teatro Sem Bolso”.


Produção:

Pinóquio – Cia Pequod – Teatro De Animação


Elenco da Maré em Invencíveis. Prêmio Jovem Talento - Troféu Manoela Pinto Guimarães.

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