INGRID SILVA, UMA BAILARINA NEGRA : RESGATE SOCIAL PELA INCLUSÃO ARTÍSTICA

Ingrid Silva  numa das vias externas da New York City. Novembro 2018. Foto/Érika Garrido.


A simbologia histórica da identidade racial na trajetória de bailarinos negros em palcos brasileiros foi inicializada, no desafio contra a prevalência da branquitude na dança clássica, através de Consuelo Rios e Mercedes Baptista, pelo desejo dúplice de se tornarem integrantes do Corpo de Baile do Theatro Municipal carioca.

Frustrado, em 1945 para Consuelo Rios, na tentativa de ser admitida para uma vaga então impossível na Cia pela simples condição de ser negra, mesmo revelando qualitativo potencial de base clássica. E, no caso de Mercedes Baptista, sendo incluída em 1948 mas nunca alcançando os balés de repertório, salvo em coreografias de embasamento folclórico/nacionalista.

Quase meio século depois, o espaço foi sendo conquistado a duras penas mas, ainda assim, priorizado  apenas na especifica  individuação estética de carreiras internacionais. Como a de Ismael Ivo, em sólidas vivencias europeias pela dança contemporânea através de parcerias criativas com Pina Bausch e William Forsythe.

Paralela a de Bethania Gomes que, depois de instantânea passagem pela Escola Maria Olenewa do TM/RJ, renuncia ao sonho de ser uma bailarina clássica de cor sob tantas rejeições. Para, aos 15 anos, ser vencedora de uma prova na escola do Dance Theatre of Harlem, no despontar dos anos noventa, onde após rápida ascensão, tornar-se-ia uma de suas principais solistas.

Foto ilustrativa do cartaz da Temporada de Abril 2018, do Dance Theatre of Harlem.

Havendo que se ressaltar também, em similaridade narrativa, entre outras surpresas da identidade racial, a emblemática escolha de Bruno Rocha, como primeiro bailarino negro a assumir o papel de Albrecht numa Giselle, em 2003 pelo Balé do Municipal, contracenando com Ana Botafogo.

E foi no incentivo do necessário projeto comunitário Dançando Para Não Dançar, idealizado por Thereza Aguilar, que a jovem bailarina de pele escura Ingrid Silva despertou, em aula presencial, a atenção de Bethânia Gomes na insistência do envio de um vídeo demonstrativo para a escola do Dance Theatre of Harlem.

Selecionada, partiu para New York sob o sistema de cotas, onde em 2007, fez uma audição para o diretor do DTH - o celebrado coreógrafo Arthur Mitchell, pioneiro bailarino negro no elenco anos 60 do American Ballet Theatre. E passando, outrossim, a integrar a Cia, entre idas a Nova York e vindas ao Brasil, a partir de 2013.

Agora, Ingrid Silva acaba de lançar um livro – A Sapatilha Que Mudou Meu Mundo, em edição da GloboLivros, onde ela conta toda esta história autobiográfica de luta social e vitória artística, sob um sotaque de depoimento afetivo pleno de arrojo confessional. Em titularidade inspirada no transcendente dimensionamento psicofilosófico do uso de uma sapatilha da mesma pigmentação de sua pele, nas suas jornadas existencialistas como artista e mulher negra. 

Afinal, ela neste oito anos americanos, tem alcançado diversas láureas não só como bailarina, mas no ofício de ativista na representatividade negra de uma causa. Sustentada, aqui, com firme empenho no enfrentamento de tantas adversidades, ora diante do preconceito de cor, ora pela superação de sua humilde condição social de origem. 

Entre tantos outros relatos de palco e de vida, Ingrid Silva lembra algumas de suas mais marcantes performances desde o Firebird Solo e o Tones II, criações de Arthur Mitchell, ao Balanchine, de Agon, do Glinka Pas de Trois e da Valse-Fantasie. Ou The Lark Ascending como solista convidada, pela Alvin Ailey's Company, e a atuação numa das turnês de Thiago Soares, no Romeo and Juliet (Kenneth MacMillan).

Cita suas atividades internacionais de ativista pelas causas afirmativas da negritude, inclusive como adida cultural dos Estados Unidos nestas abordagens político/sociais. Além de sua sensitiva participação como atriz-bailarina no filme brasileiro Maré, Nossa História de Amor, 2007, de Lúcia Murat e Karolina Specht. Sem nunca deixar de falar com orgulho da filha primogênita Laura, fruto de sua recente maternidade, atribuição que ela faz questão de estender, carinhosamente, à sua cachorrinha Frida.

E, em sensorial e metafórica correspondência a si mesma, ela revela o seu verdadeiro mister existencial no processo investigativo entre a reflexão e a corporeidade :

"Há muito mais que quero dizer a você, mas ouça, eu te amo e agradeço por nunca desistir de tudo aquilo em que acredita e que a vida te trouxe" ...

                                                 Wagner Corrêa de Araújo

Ingrid Silva com o livro A Sapatilha Que Mudou Meu Mundo, foto(2021)de capa por Talitha Ramos

O OLHAR NA DANÇA : O CORPO COREOGRÁFICO BRASILEIRO NO DESAFIO AO SURTO PANDÊMICO

Texto sobre o Gesto, por Márcia Milhazes, no livro O Olhar na Dança. Foto/Ana Clara Miranda. 

Um elucidativo livro, publicado durante este adverso tempo pandêmico, evoca um panorama particularizado da criação coreográfica em moldes brasileiros. Em caprichada edição, acompanhada de um DVD, ação do núcleo de pesquisa da cena pela Chang Produções, com sede em  Brasília.

O OLHAR NA DANÇA – traz a assinatura autoral de Juana Miranda, atriz, bailarina e produtora teatral que, através de extensa e profícua pesquisa, elaborou um quase completo dossiê da dança contemporânea do país.  Onde, através de um questionamento de assumida similaridade, dirigido a 30 coreógrafos com grupos, alcança em seu mapeamento as nossas cinco regiões territoriais.

A proposta básica foi a de acentuar a diversidade da dança nacional contemporânea, desde a sua conexão com o coloquialismo da tradição popular à identidade própria dos experimentos estéticos em torno do gestual e do movimento da corporeidade cênica, do palco aos espaços alternativos.

Significativa parte dos coreógrafos aqui focalizados surgiu a partir da eclosão de tendências da contemporaneidade, dos anos 80 em diante, especialmente na região Sudeste. Destacando-se, entre outros, Rodrigo Pederneiras (Grupo Corpo) em Minas Gerais e, no Rio de Janeiro, a Marcia Milhazes Cia de Dança ou a Focus de Alex Neoral, este último egresso do grupo da Deborah Colker. Por sinal, uma fundamental Cia que, inexplicavelmente, não foi incluída nesta listagem.


 Mauricio Maciel e sua Cia Ói Nóiz Aki. Único amapaense presente em O Olhar da Dança.  Foto/ Aline Maciel.

Mas aparecem também, aqui, nomes referenciais de outras regiões como é o caso de Henrique Rodovalho e a Quasar, na representatividade do Centro-Oeste. Ao lado de outros grupos de abrangência mais regionalizada, estes menos conhecidos do circuito Rio/São Paulo.

O que chama mais atenção no livro é o descortino de enfoques múltiplos, perceptível nas respostas dos coreógrafos através de particularizados processos de criação  assumidos por cada um deles.

O que, sobremaneira, faz com que O Olhar na Dança fique armado não só na perspectiva documental de um legado artístico mas também na abertura  de novas frentes investigativas.

Fator básico para este momento fora do normal, na crise  gerada pelo rompimento do elemento presencial à causa do surto pandêmico. Mas que, apesar dos pesares, revela, outrossim, a experimentação de novas saídas a partir das plataformas digitais.

Podendo levar, afinal, ao transcender os recursos tecno/artísticos habituais, e no convívio obrigatório mas antes de tudo interativo com outras linguagens como a cinético/virtual, a uma inventiva revitalização dos próprios conceituais estético/sociais da Dança Contemporânea.  

Valendo, ainda, ressaltar, a propósito, o incisivo dimensionamento poético/sensorial do depoimento textual de  Márcia Milhazes :

"Gestos são pássaros. Voam livres e interessados a alcançar o desconhecido e capaz de gerar dentro e fora de nós não um encontro do acaso, mas sim, um cúmplice de um manuscrito sobre o amor"...

                                           Wagner Corrêa de Araújo

                                                 

Juana Miranda , a  bailarina, atriz , pesquisadora da cena e autora do livro O Olhar na Dança.

TRÍPTICO COREOGRÁFICO SOB ESTÉTICA ESPECULAR PARA TEMPOS SOMBRIOS


    Quadros de uma Exposição. Coreografia de Alexei Ratmansky. Wiener Staatsoper. Setembro 2021. Fotos/Ashley Taylor.

Diante do desafio da volta à normalidade dos palcos, o Balé Estadual de Viena e a Orquestra da Wiener Staatsoper acabam de estrear uma potencializada performance reunindo, num mesmo programa, titulado como Dança-Imagem-Sinfonias, Mussorgski, Stravinsky e Shostakovich em versões coreográficas de Balanchine, Ratmansky e Schläpfer.

A belíssima Ópera de Viena, ainda atendendo às limitações de tempos de pandemia, aparece com um público limitado e máscaras obrigatórias entre os integrantes da orquestra, sob a conduta do maestro titular Robert Reimer. Numa plateia cheia de claros e camarotes vazios, no último dia 21 de setembro, com transmissão virtual liberada.

Uma visão estranha comparativa à minha primeira vez ali, em março de 1980, então superlotada para aplaudir uma concepção cênica (Filippo Sanjust) primorosa da ópera Falstaff, sob a batuta de Sir George Solti e contando no elenco nomes como os de Christa Ludwig e Pilar Lorengar.

Inicializando-se a presente apresentação com a Sinfonia em Três Movimentos, de 1972, uma das derradeiras incursões de George Balanchine pela obra de Igor Stravinsky, como um tributo póstumo à morte do compositor um ano antes, para o New York City Ballet. Com sua formatação neoclássica ainda assim foi considerada, na época, uma obra complexa demais de ser dançada por suas complicadas contagens.

Mantendo fidelidade ao original, o Wiener Staatsballets acompanha a sequencia sinfônica, pontuando com enérgico vigor e gestual atlético quase agressivo o primeiro e o terceiro movimento, através de 16 bailarinos em variações solistas e grupais, entremeadas por um extenso pas-de-deux marcado por  sensual apelo lírico.

A segunda criação coreográfica – Quadros de Uma Exposição (a partir de uma versão pianística da partitura de Modest Mussorgski) é da lavra do russo/americano Alexei Ratmansky e foi dedicada ao New York City Ballet, onde estreou em outubro de 2014.

Concebida para dez bailarinos sua performance acontece diante de projeções frontais de aquarelas de Wassily Kandinsky com detalhes, de esboços e cores, transmutados para a indumentária (Adeline André) dos bailarinos. Carregada de tonalidades poéticas e lúdicas vai revelando aos poucos, em caráter subliminar, um sotaque de melancolia e amargura, conectando vida e finitude.

Sinfonia em Três Movimentos. Coreografia de G. Balanchine. Wiener Staatsballets. Setembro 2021. Fotos/Ashley Taylor.

Seus movimentos pulsantes reproduzem o dinamismo gráfico das formas plásticas de Kandinsky. Sendo, sem dúvida,  um tocante experimento coreográfico de transito entre a dança e a pintura. Com uma referência mais que especial, motivo de orgulho para os brasileiros, na atuação impecável do bailarino paulista Marcos Menha, de sólida carreira europeia, desde 2003, sendo  hoje um dos principais solistas do Balé Estadual de Viena.

Completando o tríptico, em première mundial, a Sinfonie Nr 15, de Dmitri Shostakovich, em impactante transcrição coreográfica pelo suíço Martin Schläpfer. Que sustenta  o dimensionamento neoclássico alterativo com transgressivo gestual, ampliado pelas sonoridades soturnas de uma partitura composta em tempos repressivos da era soviética. 

Numa fisicalidade corpórea em ambiência sombria que também aproxima a obra de uma contemporaneidade de risco para a própria sobrevivência da condição humana, com extrema radicalização nas citações gestuais da solidão e do desespero diante de perspectivas cada vez mais sem respostas.

E que, segundo Schläpfer, o fez enfrentar um visceral processo criativo “rastejando misteriosamente, em toda parte e em lugar nenhum, distante, insondável, fugidio”...

                                            Wagner Corrêa de Araújo

Sinfonie NR 15. Coreografia de Martin Schläpfer. Estreia mundial - setembro 2021. Corps de Ballet des Wiener Staatsoper. Fotos/Ashley Taylor.

REVISTA BARROCO DIGITAL : NO PRECIOSO LASTRO POÉTICO/ARTÍSTICO DOS ÁVILA

O acesso à edição digital é pelo endereço www.revistabarroco.com.br

Reencontrar, ainda que numa versão digital, o singular legado da única publicação brasileira dedicada exclusivamente à estética barroca promove, sobremaneira, uma viagem às raízes da mineiridade e, particularmente, a meio século de afetivas lembranças familiares.

Tive o privilégio, em período juvenil, de acompanhar de perto o nascimento da publicação quando compartilhei meus anos do Curso Clássico, na Faculdade de Filosofia e Letras da UFMG, simultâneo ao convívio residencial com minha tia Laís Corrêa de Araújo e seu consorte Affonso Ávila.

Em plenos e tristes anos 60, já no período de ditadura militar, e que marcaram incisivamente a minha formação intelectual não só no desfrute cotidiano com este casal de ilustres poetas (que tanto me ensinou sobre vocação às letras e o apreço pelas coisas do universo artístico cultural) e, mais ainda, pelo testemunho vivo dos habituais encontros literários no celebrado endereço da Rua Cristina, 1300, em Belo Horizonte.

Foi a partir deste inestimável contato que me arrisquei a escrever meus primeiros textos, pequenos contos, poemas e resenhas críticas que vi serem publicados no prestigiado Suplemento Literário do Minas Gerais, cuja comissão editorial inicial trazia os nomes, entre outros, de Murilo Rubião e também da própria Laís Correa de Araújo.

Numa temporada de descobertas artístico/existenciais e de convívio de perto com nomes fundamentais da intelectualidade das Gerais, da velha e da mais nova geração. Quantos felizes alumbramentos memoriais (na saga da lição roseana do querer decifrar as coisas que são importantes), por intermédio de contatos, face a face, com personalidades culturais inesquecíveis, estendendo pontes entre gerações naquela mágica casa do bairro Santo Antônio.

Reunindo, sempre, gente do porte de Murilo Rubião, Lúcia Machado de Almeida, Henriqueta Lisboa, Fabio Lucas, Rui Mourão, Murilo Mendes e por aí vai, para chegar nos então ascendentes na ficção Luís Vilela e Sérgio Sant’Anna, ou Adão Ventura e Henri Correa de Araújo, os dois últimos através de Veredas, movimento de poesia de vanguarda.

Em meio aos inúmeros livros das bibliotecas da Laís e do Affonso, e sob os acordes beethovianos de Pour Elise (ora pelas mãos de Laís, ora por sua irmã escritora Maria Lysia) no piano da antessala. “Era uma casa muito democrática, com mesa posta de manhã, de tarde e de noite, como se fosse na fazenda”, nas palavras da historiadora e pesquisadora artística Cristina Ávila, uma das filhas do casal.

Pois é, para bem de todos e felicidade geral da cultura mineira e brasileira, a Revista Barroco está de volta com os temas que perenizaram a publicação, em mais de meio século de resistência, como poesia, romance e arte barroca, de ancestrais retábulos coloniais à evangelização mineira no Século XVIII, mas abrindo também  espaço a um olhar armado numa releitura sob o signo da contemporaneidade.

Em artigos selecionados por uma comissão de craques, de reconhecida representatividade por teses e doutorados entre o Brasil e universidades como a de  Lisboa, Paris e Kassel, mestres em  Filosofia, Artes, História, Linguística, Poesia e Literatura Comparada. 

Presidida pelo saber artístico e o refinado critério editorial de Cristina Ávila, em acurado projeto gráfico do designer e artista plástico Sérgio Luz, marido e pai do jovem Pedro Ávila, com  revelador talento na continuidade da trajetória de tradição literária da família Ávila, em artigo ali publicado.

Por outro lado, tive a honra de ter incluída nesta primeira edição, uma análise crítica da trans-historicidade estética do universo coreográfico de Vaslav Nijinsky, a partir de coreografia recente do alemão Marco Goecke, antenada com o múltiplo processo investigativo de formas corporais e do movimento, num aproximativo enfoque inventivo, de dimensionamento especular, com os criadores barrocos.

Em momento de tantas absurdidades da atual desgovernança politica, é mais que necessária e salutar uma publicação digital como esta Revista Barroco com livre acesso ao público leitor. Que, em contraponto ao retrocesso vivido, agora, pelo progressivo descaso à criação cultural brasileira, promove antes de tudo a valoração de nossos mais caros valores artísticos transmutados na tradição, na permanência e na reavaliação de um imortal acervo cultural barroco.

                                              Wagner Corrêa de Araújo

    Cristina Ávila e seu pai, o poeta Affonso Ávila, o idealizador e fundador da Revista Barroco.

                                (Acesso à edição digital da revista através do link  www.revistabarroco.com.br)

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