ROMEU E JULIETA : RELEITURA VISCERAL EM COMPASSO PSICOFÍSICO

ROMEU E JULIETA, DE MATTHEW BOURNE. Cordelia Braithwaite e Paris Fitzpatrick. 2019. Foto/Johan Person.

 

A última versão coreográfica/cinética da mais popular das criações shakespearianas, pelo inglês Matthew Bourne, segue os mesmos passos provocadores e polêmicos das releituras de Mats Ek ou de Angelin Preljocaj. Sem nenhum lastro de fidelidade à clássica trama original, como as de Kenneth MacMillan para o Royal Ballet ou a de Franco Zeffirelli para o cinema.

Por sua ambientação nos esteios marginais das urbanidades periféricas contemporâneas está mais próxima das transposições fílmicas de Robert Wise (a partir da West Side Story, de L.Bernstein) ou, na de data mais recente, por Baz Luhrmann. Aqui o cenário é a de uma Verona pelo viés de um opressivo reformatório clínico para adolescentes prisioneiros acompanhados por frios métodos psicanalíticos, enfermeiros teleguiados ou insensatos e brutais guardas.

Onde só é permitida a alegria nas atitudes de acolhimento da Madre Laurence (com seu referencial no Frei Lourenço da peça), sempre pronta a defender os internos. Especialmente a Julieta, dos violentos assédios sexuais do guarda Tybalt, mesmo assim sendo este capaz de estuprar a frágil adolescente.  

A proposta de Matthew Bourne se alinha ao seu ideário estético de sempre provocar uma radical transmutação nos enredos originais. Como já havia feito com o seu Swan Lake onde os cisnes são masculinos e, por isto, afloram os desejos homoeróticos do Príncipe. Ou por intermédio de uma Bela Adormecida gótica mergulhada num universo vampiresco de sangue e delírios eróticos.

ROMEU E JULIETA. Cena do Baile. Cenografia de Lez Brotherston.

No tom transgressor deste Romeu e Julieta, Bourne indo mais longe ainda ao substituir os climas palacianos pela frieza sufocante de um instituto de recuperação psiquiátrica, dimensionado por uma varanda, escadas laterais, portas com grades, sob clínicos azulejos brancos, na concepção cênica de Lez Brotherston, acentuada nos efeitos luminares de Paule Constable.

E, também, outra vez tomando liberdade alterativa nas sequencias narrativas, embora metaforize, em outro contexto, momentos capitais como as cenas de brincadeiras e brigas de rua que levam aos assassinatos sequenciais e à tragédia final. Provocada pelo ódio preconceituoso de Tybalt contra o relacionamento gay de Mercutio por Balthasar e por suas investidas obsessivas de machismo dominador sobre Julieta.

O elenco predominantemente jovem, na faixa a partir de 16 anos, mostra  energizada performance sustentada no frescor juvenil, em ininterrupta pulsão sob clímax nervoso, para conduzir a conturbada trajetória mental deste grupo de  adolescentes encarcerados.

Onde a ingenuidade de um baile comandado pela Madre é transcendida, aos poucos, por uma explosão de desejos sexuais reprimidos. E, no desenrolar sucessivo de cenas sincopadas, pela equivalência a um thriller de sangue e violência com um inusitado epílogo.

Além da personificação de um brutamontes Tybalt (Dan Wright), com cínico comportamento de agressividade, destaca-se o casal protagonista. De um lado um Romeu, assumido com bravura pelo jovem ator/bailarino Paris Fitzpatrick, capaz de conectar, junto a Julieta de Cordelia Braithwaite, paixão sonhadora e vulnerabilidade emotiva.

Enfim, teatro e dança  numa performance  onde há que se relevar a jovialidade de um elenco semiprofissional recrutado, em boa parte por testes, sem malabarismos técnicos por estarem todos em período de formação. Mas, atendendo aos apelos da Cia New Adventures de Matthew Bourne, em processo revelador de talentos expressando-se com rara maturidade para super jovens atores/bailarinos.

Musicalmente, este Romeu e Julieta também é ousado ao condensar, através dos arranjos (por Terry Davies) para um grupo camerístico de 15 músicos, a partitura sinfônica de S.Prokofiev, sabendo conservar as harmonias básicas através de novas sonoridades, via solos e combinações instrumentais.

Se a alguns isto possa soar como uma afronta, os temas dos pas-de-deux do casal titular procuram conservar a pureza da obra original e são selados com a envolvência de um longo beijo de amor e com a crueza sanguinolenta da despedida fatal dos amantes, numa Verona claustrofóbica que remete aos tempos pandêmicos que estamos vivendo...

                                               Wagner Corrêa de Araújo

ROMEU E JULIETA, de Matthew Bourne, está disponível nas redes virtuais, via You tube,  através da Dell Arte Digital. Até 01/04/2021.

Um comentário:

CARLOS ROBERTO BRANDINO DE OLIVEIRA disse...

Critica que vem de encontro com a apresentação. Ouso crer que nada faltou. Pra mim foi um espetáculo harmonioso, talvez, apenas um talvez, a música, poderia repetir-se menos, pois é marcante, embora aconchegante. Amei. Gostaria que os streamings abordassem mais espetáculos como esse. Vi no My Family Cinema.

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