O HUMOR DESCOMPROMISSADO DA COMÉDIA DE COSTUMES

O CACHORRO RIU MELHOR. Foto/Leo Aversa.

De volta a 2014...

Dois textos - um brasileiro e um do circuito nova-iorquino  - falam de relacionamentos amorosos, tendo como mote instintos felinos e caninos inseridos no universo de jovens casais, em irônicos jogos de paixão hétero ou gay.

Ambos conectados na linha do descompromisso risível da comédia de costumes, em histórias cada vez mais comuns na cena contemporânea, da vida real ao cinema, no palco e na televisão.

Originalmente concebido para o Festival de Teatro de Tribeca, Nova York, O Cachorro Riu Melhor, de Douglas Carter Beane, aborda o cotidiano de um ator (Júlio Rocha) com carreira ascendente, sob o cuidados de uma agente/ produtora GLS (Danielle Winits) que tudo faz para disfarçar as suas saídas do armário com um garoto de programa (Rainer Cadete) .

Um procedimento sexual então considerado prejudicial ao seu papel de ator galã conquistador de mulheres e, hoje,  um fato quase corriqueiro e já surpreendendo menos, no carismático universo popular midiático e televisivo made in Brazil, o que facilitou bastante a versão brasileira de Artur Xexéu.

Usando do ingrediente de astros protagonistas de recente novela, acrescido inclusive de insinuantes cenas de cama com direito a beijo gay, a montagem, mesmo com a cuidadosa direção de Cininha de Paula e o bom desempenho do elenco, não disfarça seu fácil apelo comercial, pegando carona na mídia novelesca, ao lado de certa superficialidade temática com previsível happy end.

Quanto ao já conhecido texto de Juca de Oliveira - Qualquer Gato Vira Lata Tem uma Vida Sexual Mais Sadia Que A Nossa, com uma trajetória de quase duas décadas, ainda mantém seu vigor e atualidade, quando trata de uma jovem iniciante nos jogos amorosos, no clássico embate entre dois pretendentes "gatos" - o professor intelectual e o garotão moderninho.

Com a sempre segura condução de Bibi Ferreira na exploração inteligente das surpresas narrativas, a montagem tem uma funcional iluminação (Daniela Sanchez), bons figurinos (Bruno Perlatto) e atraente aporte cenográfico (Natália Lana). Mas a boa presença cênica de Monique Alfradique supera o desempenho meio estereotipado de Marcos Nauer, tendo em Victor Frade, sem dúvida, o seu melhor intérprete. Constituindo-se, aqui, em clássico exemplar brasileiro do gênero teatral provocador do riso desopilador do fígado.

Numa fase de hegemonia do musical na cena teatral carioca, muitas tem sido as investidas por caminhos absolutamente diversificados com excepcionais resultados Desde a transposição fiel do modelo Broadway, em especial com a dupla Botelho/Moeller, destacando-se pelo profissionalismo e o esmero das montagens, até o crescente surgimento de uma tendência voltada para a música e a temática nacionais, que também tem revelado boas soluções em invenção e originalidade.


QUALQUER GATO VIRA LATA TEM UMA VIDA SEXUAL MAIS SADIA QUE A NOSSA. Foto/Fernando Filho.

Exemplos de que como pode dar certo o musical à brasileira não faltam, desde aqueles já clássicos como a Ópera do Malandro, até a recente transposição de um balé para a cena dramatúrgico/musical, em outra obra que leva a assinatura de Chico Buarque - O Grande Circo Místico.

Mas, por outro lado, a incursão biográfica nacional, praticamente iniciada com o consagrado exemplo de Somos Irmãs, texto de Sandra Louzada sobre a trajetória artístico/existencial das irmãs Linda e Dircinha Batista, vem crescendo a tendência de se inspirar na vida e obra de grandes nomes da MPB ou do nosso pop/rock. Com sucesso absoluto de público e de crítica, nas roteirizações dramático/musicais em torno de Tim Maia, Ellis Regina e Cazuza, entre outros ídolos do cancioneiro popular.

Recentemente, dentro desta mesma proposta, a partir de um repertório musical pré-existente, mas sem nenhum intenção de ilustrar a vida do autor (neste caso, Rita Lee), aventurou-se na utilização de suas canções, para dar um revestimento de musical à versão para o palco de dois filmes de grande bilheteria - Se Eu Fosse Você 1 e 2, ambos dirigidos por Daniel Filho.

Este foi o principal desacerto da comédia musical Se Eu Fosse Você, onde apesar da utilização da versão dramatúrgica de um profissional da qualidade de Flávio Marinho, tudo assumiu um toque forçado e artificial na inserção das letras originais prevalentes, além da própria sonoridade das canções de Rita Lee, no contexto textual e narrativo do espetáculo, com temática sustentada na troca das identidades sexuais de um casal.

Isto ainda agravado pela perda do "timing" humorístico dos filmes originais pela excessiva duração do espetáculo, apesar de todo apuro cenográfico e de produção e um indiscutível empenho de protagonistas de maturidade tanto como comediantes (Nelson Freitas) como intérpretes de teatro musical (Cláudia Netto), deixando ao final um clima de decepção e de "déjà vu".

Uma montagem, dirigida e coreografada por Alonso de Barros, mas que, infelizmente, também careceu de inventividade quando permitiu escapar aquilo que o público de musicais mais espera - as reviravoltas do envolvimento e o clímax, as grandes marcas deste gênero teatral.

No jogo cruel da luta de classes quatro legítimos representantes das misérias da realidade urbana contemporânea, usam quaisquer armas para serem alguém. Mesmo que para isto tenham que se valer das roupas sujas de uma decadente lavanderia, o ponto de encontro ou "castelo" onde, entrincheirados, tramam suas ridículas artimanhas guerrilheiras de ascensão social via sequestro, num perfeito paradigma de ironizados anti-heróis de nosso tempo.

São estas patéticas imagens comparativas da lavagem de roupas, manchadas com os suores humanos cotidianos, como única saída monetária para a auto-sobrevivência, que levaram o autor Fernando Ceylão a escrever a mordaz e inteligente comédia de costumes Como é Cruel Viver Assim. Nela, em perfeito equilíbrio, convive o humor sem apelações com a banalidade de seres humanos derrotados pela classificação social.

Personificações de indigentes para os quais nada importa moralmente, nunca medindo meios nem consequências, para ascender a um ilusório degrau com os possíveis ganhos do pós-resgate de um ex-patrão rico pela despudorada amiga Regina (Inês Vianna), apoiada na simplória auto-confiança do apelidado Primo (Alamo Facó). Completando o cast e a trama outro casal, integrado pelo ingênuo conformismo da dona da lavandeira Clívia (Letícia Isnard) e do desempregado/malandro Vladimir (Marcelo Valle) julgando-se sempre o tal .

Sob a ágil direção de Guilherme Piva este elenco acertado mantem um ritmo coeso entre a comédia e a farsa, com referenciais da estética cinematográfica pop/futurista de Tarantino ao brega/decadentista de Almodóvar.  Em  cenografia realista ressaltando o risível retrato sem retoques deste pequeno grande mundo que, em sua mesquinhez, está muito próximo das mazelas da hipócrisia  no universo político de uma "pobre nação rica" chamada Brasil.

                                             Wagner Corrêa de Araújo

COMO É CRUEL VIVER ASSIM, peça de Fernando Ceylão.

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