NOSTALGIA E PROTESTO SOB COMPASSO FUTEBOLÍSTICO

Á SOMBRA DAS CHUTEIRAS IMORTAIS, de Nélson Rodrigues. Foto/Flávia Fafiães.

"A realização em 2014 da segunda Copa Mundial de Futebol no Brasil, depois da decepção de 1950, traz a lembrança de vitórias passadas e o protesto diante dos dramas atuais de um país, levando a diferentes reflexões cênicas.

O pensamento de Nélson Rodrigues, entre a criação dramatúrgica e a crônica esportiva, marca a primeira montagem, voltada para o clima futebolístico, nas semanas em que acontece a polêmica realização do campeonato, especialmente na cidade sede do Maracanã, com À Sombra das Chuteiras Imortais.

Inspirado no conto O Grande Dia de Otacílio e Odete e habilmente construído com outras passagens do escritor, na concepção e comando inventivo do diretor Henrique Tavares, o texto remete ao imaginário da amarga derrota da Copa de 1950 e da nostálgica lembrança da vitória oito anos depois.

Com um elenco equilibrado (Gláucio Gomes, Ingrid Conte, Anderson Cunha, Crica Rodrigues, Cesar Amorim) e uma original movimentação cênica, onde ainda se destaca a feliz escolha do cancioneiro popular, figurinos (Patrícia Muniz) e décor de época (José Dias) com desenho de luz de Aurelio de Simoni.

Onde peça leva ao envolvimento do público quando aborda dois temas eternos de Nélson Rodrigues, o ciúme obsessivo e o fanatismo da torcida dos gramados, no impulso das paixões humanas, entre o poético e o cruel, dentro da rodrigueana "complexidade shakespeariana".

De maior diversão das camadas populares, na sucessão de vitórias da Seleção em outras Copas, capaz até mesmo de ser utilizada como subterfúgio em anos negros pela truculência da ditadura militar, ao momento em que a disputa chega pela segunda vez ao país do futebol, entre trancos e barrancos, é que o Teatro Inominável de Diogo Liberano conduz a uma reflexão em Concreto Armado.

Diante da habitual prevalência do poder público sobre a vontade popular, da corrupta especulação financeira, do caos social e urbano quando uma reforma arquitetônica leva à elitização de um espaço das multidões, sete atores se movimentam diante da reconstituição de um Maracanã fissurado, com original referencial cenográfico (Elsa Romero) e indumentária cotidiana (Marina Dalgalarrondo), ambientado em sutis efeitos luminares de Renato Machado.

E é com contrapontos textuais que os personagens de  representação jovem (Adassa Martins, Andreas Gatto, Carolline Helena, Flávia Naves, Gunnar Borges, Laura Nielsen, Marina Vianna), embora por vezes caiam num gestual monótono e num sotaque quase panfletário, não deixam de aguçar a proposta analítica de não se aceitar mais o imponderável de tempos em que todo o conhecimento do Brasil só passava pelo futebol.


CONCRETO ARMADO, com o Teatro Inominável de Diogo Liberano. Foto/Paula Kossatz.

UM MUSICAL DE GOLEADAS

"Às vésperas de acontecer a polêmica da Copa do Mundo 2014 no Brasil, em meio aos protestos, contestações e greves, a então prevista esfriada nos ânimos teve sua contrapartida num musical, sob os ritos simbólicos do esporte das multidões fazendo de Samba Futebol Clube, a grande surpresa da temporada teatral carioca.

Através do gestual coreografado e da expressão verbal e musical deste espetáculo concebido e dirigido, com inventividade e esmero, por Gustavo Gasparani, é resgatada a sedutora magia desta quase ridícula e risível corrida de vinte dois homens atrás de uma bola. Mas que é capaz de desencadear, nada mais nada menos, que um curto circuito de emoções coletivas.

Aqui, cenicamente, a disputa é assumida por oito experientes jogadores-atores, dublês de cantores-dançarinos (Alan Rocha, Daniel Carneiro, Gabriel Manita, Jonas Hammar, Marcel Octavio, Pedro Lima, Rodrigo Lima e Sergio Dalcin) com espontâneo vigor nos dribles, nas táticas e nas cortadas, marcando, ao final, um vitorioso gol de placa .

Nesta partida aparecem as íntimas conexões do universo futebolístico com a música popular do samba ao rap, com a crônica e a poesia, além da arte nativista, através de um desafio gestual que o faz próximo da capoeira e da escultura. Afinal, os ritmados movimentos de cada jogador em suas mutações instantâneas não representariam, em suma, uma performance em formas plástico/visuais?

Nesta partida musical desfilam, em perfeita harmonia e completo molejo, as sonoridades do Pixinguinha anos 20 ao Rappin Hood 2010, passando por verdadeiros hinos das torcidas, de Lamartine Babo a João Bosco, a clássicos dos gramados de Jorge Benjor a Gonzaguinha. Completados com os textos do cronista esportivo mór Nélson Rodrigues mais as inspiradas representações de torcida poética, nas vozes poéticas de Carlos Drummond ou Ferreira Gullar.

Na concepção artística, destaque especial para o gingado contemporâneo imprimido pela coreografia de Renato Vieira e a verdadeira aquarela brasileira do figurino (Marcelo Olinto) e das luzes (Paulo Cesar Medeiros), sob a concepção cenográfica (Marcelo Lipiani), enriquecida pela antológica sequência de áudio e vídeos. Memória e história eternizando uma quase transcendente referência trazida pelo futebol ao cotidiano embate, entre perdas e ganhos, da condição humana.

No placar técnico, o múltiplo talento do elenco destaca-se, com absoluto equilíbrio, a partir do roteiro textual, entre o canto, a dança e a execução simultânea dos instrumentos musicais. Uma fórmula acertada onde seus outros saborosos ingredientes - inteligência, humor, nostalgia, comunicabilidade - conseguem transpor, do gramado para o palco, o clima de êxtase coletivo, em arrebatadora montagem que dá uma goleada no torneio do novo musical brasileiro.

                                          Wagner Corrêa de Araújo


SAMBA FUTEBOL CLUBE. Foto/Léo Aversa.

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