LEMBRO TODO DIA DE VOCÊ : MANIFESTO MUSICAL CONTRA O PRECONCEITO E A EXCLUSÃO

FOTOS/GIOVANA CIRNE

Desde a impactante eclosão da epidemia da Aids, nos anos oitenta, a literatura, o cinema e o teatro se debruçaram sobre o tema com prevalência de um fatalismo quase melodramático na sua abordagem.

Onde a autocomiseração se tornou uma reiterativa tendência dessas narrativas que se valem de dramas cotidianos replicados desde a ambiência familiar. Fonte primeira do preconceito e da não aceitação do ser homossexual.

Ora manifestada em progressivos fatos cotidianos nas relações pais e filhos, extensíveis aos enfrentamentos dos surtos de bullyng no universo escolar. Ou pelos olhares de desconfiança cética na justificação adolescente de uma fingida atração entre sexos diferentes.

Aos assumidos casos ainda no armário, as fugas noturnas para as aventuras eróticas de mesma identidade e, enfim, a súbita descoberta, como soropositivo,  de um mal incurável. Acirrando a agressividade e o desprezo para um diagnóstico clínico (Aids) sinalizado ate hoje, por tacanho conservadorismo, como vergonha social e infâmia moral.

Começando, exatamente aqui,  a trama dramatúrgica de Fernanda Maia - Lembro Todo Dia de Você, com valiosa parceria de Herbert Bianchi e Zé Henrique de Paula, este último responsável pela direção concepcional junto ao Núcleo Experimental. A partir do verismo de sintomáticos relatos confessionais, incluído o do compositor/ arranjador da partitura musical (Rafa Miranda).

Com sete atores, onde apenas Davi Tápias (como Thiago) atravessa toda a performance sob um mesmo personagem, contrapondo-se à duplicidade de papéis do elenco complementar (Anna Toledo, Fábio Redkowicz, Gabriel Malo, Lola Fanucchi, Rafael Pucca, Zé Henrique de Paula).

Ao descobrir-se portador do HIV, Thiago (Davi Tápias) dá partida a uma trajetória de auto-conhecimento desde o dolorido afastamento do último namorado Júlio (Gabriel Malo), também contaminado.


Passando ao reencontro memorial de sonho e delírio com os pais e uma amiga de adolescência, às consultas médicas e às transas masculinas. No presencial bem humorado de uma drag em pista clubber ao epílogo, de substrato psicanalítico, em decisivo acerto de contas.

Se em primeira constatação a história pareça não escapar da previsibilidade, igual a outras tantas de mesmo contexto, torna-se perceptível, por outro lado, a sua consistente textualidade (Fernanda Maia). Desdobrando-se em energizado jogo verbal/vocal, do coloquialismo ao poético, para imprimir, cenicamente, o assombramento do protagonista diante de sua tragédia pessoal.

Enquanto, nos bastidores, ouve-se inspirada trilha autoral live (Rafa Miranda) com recortes de disco music a acordes jazzísticos, incluídos lúdicos registros sonoros de video games. Por afinado quinteto instrumental de sopros, cordas, teclados e percussão (Flávio Rubens/Marco Rochael, Felipe Parisi Fernanda Maia, Clara Bastos/Pedro Macedo, Abner Paul).

Em paisagem cenográfica (Bruno Anselmo) com uso alterativo de concisos elementos (mesa, cadeiras e sofá) e indumentária básica (Zé Henrique de Paula), sob efeitos luminares (Fran Barros), ora vazados ora focais, com referencial estetoscópico nas cenas de discoteca.

Integralizando uma uniforme representação atoral sintonizada em compasso de teatro musical, com seguro e convicto dimensionamento, na circularidade em torno do protagonismo da verdade interior, irradiada no papel condutor do jovem Thiago. Destacando-se Davi Tápias no uso da necessária e exigente portabilidade de carisma para preencher a cena com vigorosa e cativante intepretação. 

Numa sutil e bem dosada exposição de sensitivo sotaque gay, longe dos estereótipos de uma tipicidade afetada. Em espetáculo de simplicidade funcional ecoando espontaneidade gestual (Gabriel Malo) e densidade psicológica na expressão do desalento frente ao preconceito.

Dramatizado com instintiva liberdade estética e certeza de autoridade cênica (Zé Henrique de Paula) na pulsão de um teatro sólido como proposta estética, na sua intencionalidade critica de corajoso esclarecimento e de brava denúncia para tempos sombrios...

                                            Wagner Corrêa de Araújo 



LEMBRO TODO DIA DE VOCÊ está em cartaz na Caixa Cultural (Teatro de Arena), de terça a sexta, às 19h., sábado e domingo, em sessão dupla, às 17 e às 20h. 120 minutos. Até 24 de novembro.

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