CASA DE BARRO : RITUAL CÊNICO-COREOGRÁFICO PARA TEMPOS ABISSAIS

FOTOS/LEONARDO MIRANDA

No final dos anos 70, integrando a coordenação artística do Palácio das Artes (BH) testemunhei uma das mais viscerais performances plásticas já vistas em sua Grande Galeria, tendo como substrato material uma urna/ útero de barro de onde era gerado o corpo/feto da artista plástica Celeida Tostes.

Três décadas depois reencontro um referencial daquele momento de inventividade ímpar na proposta coreográfica do performer, coreógrafo e artista plástico Márcio Cunha – Casa de Barro.

“Cobri meu corpo de barro e fui / Entrei no bojo do escuro, ventre da terra/O tempo perdeu o sentido do tempo/Cheguei ao amorfo”...

Como nos versos que serviam de mote para a apresentação da ceramista carioca, Márcio Cunha realiza um ritual de celebração da corporeidade.Despojando-se numa imersão de fisicalidade, através do barro informe e cru, elemento geológico metaforizando o ser e o não ser, entre a ancestralidade e o tempo futuro.


Numa proposta sequencial do encontro da linguagem coreográfica com a criação plástica, desenvolvida com incisiva instintividade nas suas três últimas obras, em arrojada releitura gestual do icônico legado artístico de Frida Kahlo, Basquiat e Bispo do Rosário.

Na recorrência a uma paisagem plástica moldada num espaço cênico com elementos de barro e plástico circundada, frontal e lateralmente, por objetos fragmentários de cerâmica, como se reproduzisse um imaginário recorte arqueológico imemorial, de um tempo além do tempo.

Numa pulsão provocadora palco-plateia, artista-espectador, sustentada por certeiras sonoridades primitivo-tribais no entremeio de ecos da natureza, presenciais nos acordes afro-brasileiros de canções e fraseados indigenistas/religiosos (do repertório de Gilberto Gil e Virginia Rodrigues).

Que se estendem à espontaneidade com que Márcio Cunha imprime, em linguagem corporal seca e direta, com perceptível nuance introspectiva, a concentração dramático-coreográfica necessária para um artista múltiplo (bailarino, coreógrafo, performer, escultor) dar o seu recado estético-reflexivo.

De transes humanos entre a manipulação do barro e as pausas psicofísicas de silêncio, às vezes fazendo uso de histriônicas expressões faciais de surpresa, tensão e assombramento diante dos insondáveis mistérios de sua origem e destinação.

Com o olhar armado no seu instigante questionamento como artista e criador e no medo, como homem e ser político, diante da trajetória instável de certa Nação, aqui e agora, sendo moldada tal qual uma "casa de barro"...

                                             Wagner Corrêa de Araújo


CASA DE BARRO está em cartaz no Sesc Copacabana (Mezanino), de sexta a domingo, às 20h. 50 minutos. Até 24 de novembro.

LEMBRO TODO DIA DE VOCÊ : MANIFESTO MUSICAL CONTRA O PRECONCEITO E A EXCLUSÃO

FOTOS/GIOVANA CIRNE

Desde a impactante eclosão da epidemia da Aids, nos anos oitenta, a literatura, o cinema e o teatro se debruçaram sobre o tema com prevalência de um fatalismo quase melodramático na sua abordagem.

Onde a autocomiseração se tornou uma reiterativa tendência dessas narrativas que se valem de dramas cotidianos replicados desde a ambiência familiar. Fonte primeira do preconceito e da não aceitação do ser homossexual.

Ora manifestada em progressivos fatos cotidianos nas relações pais e filhos, extensíveis aos enfrentamentos dos surtos de bullyng no universo escolar. Ou pelos olhares de desconfiança cética na justificação adolescente de uma fingida atração entre sexos diferentes.

Aos assumidos casos ainda no armário, as fugas noturnas para as aventuras eróticas de mesma identidade e, enfim, a súbita descoberta, como soropositivo,  de um mal incurável. Acirrando a agressividade e o desprezo para um diagnóstico clínico (Aids) sinalizado ate hoje, por tacanho conservadorismo, como vergonha social e infâmia moral.

Começando, exatamente aqui,  a trama dramatúrgica de Fernanda Maia - Lembro Todo Dia de Você, com valiosa parceria de Herbert Bianchi e Zé Henrique de Paula, este último responsável pela direção concepcional junto ao Núcleo Experimental. A partir do verismo de sintomáticos relatos confessionais, incluído o do compositor/ arranjador da partitura musical (Rafa Miranda).

Com sete atores, onde apenas Davi Tápias (como Thiago) atravessa toda a performance sob um mesmo personagem, contrapondo-se à duplicidade de papéis do elenco complementar (Anna Toledo, Fábio Redkowicz, Gabriel Malo, Lola Fanucchi, Rafael Pucca, Zé Henrique de Paula).

Ao descobrir-se portador do HIV, Thiago (Davi Tápias) dá partida a uma trajetória de auto-conhecimento desde o dolorido afastamento do último namorado Júlio (Gabriel Malo), também contaminado.


Passando ao reencontro memorial de sonho e delírio com os pais e uma amiga de adolescência, às consultas médicas e às transas masculinas. No presencial bem humorado de uma drag em pista clubber ao epílogo, de substrato psicanalítico, em decisivo acerto de contas.

Se em primeira constatação a história pareça não escapar da previsibilidade, igual a outras tantas de mesmo contexto, torna-se perceptível, por outro lado, a sua consistente textualidade (Fernanda Maia). Desdobrando-se em energizado jogo verbal/vocal, do coloquialismo ao poético, para imprimir, cenicamente, o assombramento do protagonista diante de sua tragédia pessoal.

Enquanto, nos bastidores, ouve-se inspirada trilha autoral live (Rafa Miranda) com recortes de disco music a acordes jazzísticos, incluídos lúdicos registros sonoros de video games. Por afinado quinteto instrumental de sopros, cordas, teclados e percussão (Flávio Rubens/Marco Rochael, Felipe Parisi Fernanda Maia, Clara Bastos/Pedro Macedo, Abner Paul).

Em paisagem cenográfica (Bruno Anselmo) com uso alterativo de concisos elementos (mesa, cadeiras e sofá) e indumentária básica (Zé Henrique de Paula), sob efeitos luminares (Fran Barros), ora vazados ora focais, com referencial estetoscópico nas cenas de discoteca.

Integralizando uma uniforme representação atoral sintonizada em compasso de teatro musical, com seguro e convicto dimensionamento, na circularidade em torno do protagonismo da verdade interior, irradiada no papel condutor do jovem Thiago. Destacando-se Davi Tápias no uso da necessária e exigente portabilidade de carisma para preencher a cena com vigorosa e cativante intepretação. 

Numa sutil e bem dosada exposição de sensitivo sotaque gay, longe dos estereótipos de uma tipicidade afetada. Em espetáculo de simplicidade funcional ecoando espontaneidade gestual (Gabriel Malo) e densidade psicológica na expressão do desalento frente ao preconceito.

Dramatizado com instintiva liberdade estética e certeza de autoridade cênica (Zé Henrique de Paula) na pulsão de um teatro sólido como proposta estética, na sua intencionalidade critica de corajoso esclarecimento e de brava denúncia para tempos sombrios...

                                            Wagner Corrêa de Araújo 



LEMBRO TODO DIA DE VOCÊ está em cartaz na Caixa Cultural (Teatro de Arena), de terça a sexta, às 19h., sábado e domingo, em sessão dupla, às 17 e às 20h. 120 minutos. Até 24 de novembro.

OSB - TEMPORADA 2019 : PARCERIAS MUSICAIS DO TEATRO BRECHTIANO

FOTOS/ CÍCERO RODRIGUES

Dando prosseguimento à sua  temporada de concertos 2019 a Orquestra Sinfônica Brasileira faz um tributo especial aos 30 anos da queda do Muro de Berlim, através de um repertório referencial das colaborações musicais à práxis épico-dialética do teatro de Bertolt Brecht.

O próprio poeta e dramaturgo afirmara em um de seus ensaios críticos : “a música tornava possível algo que há muito deixávamos de dar por garantido, a saber, o teatro poético”. Reconhecendo, sobretudo, como eram incisivas ao seu processo de criação teatral as intervenções musicais no fluxo da narrativa dramática.

Na viabilização do efeito de distanciamento e de provocação da apatia do espectador por um teatro de acionamento libertário e político sintonizado com a realidade e com a história da humanidade.

Onde a relação música/teatro foi fundamental à consecução da proposta estética do dramaturgo mor alemão e teve como seus mais íntimos colaboradores os compositores Kurt Weill, Hanns Eisler e, finalmente, Paul Dessau. 

Este último com maior presença na derradeira fase da vida do  teatrólogo, nas suas realizações frente ao Berliner Ensemble, no lado da então Alemanha Oriental, pós retorno de um longo exilio que se estendera de 1933 a 1947.

Tendo estas composições se inserido sob formatos e gêneros diversos nas suas encenações autorais, seja através de canções ora de caráter operístico ora de cabaré, ou simplesmente sintetizadas como teatro musical. Estendendo-se, ainda, em transcrições sinfônicas com expressiva parte delas integrando o repertório de orquestras ou servindo de trilhas cinematográficas.

Em antológica seleção que reúne desde a clássica Suíte Orquestral da Ópera dos Três Vinténs, de Kurt Weill à envolvência de momentos marcantes do legado musical para teatro de Hanns Eisler e  Paul Dessau, via canções e poemas musicados, com letras e versos de Brecht, sob cuidadosos arranjos de Paulo Aragão. 

Aqui interpretados por dois proeminentes nomes da atual cena lírica brasileira – a mezzo-soprano Carolina Faria e o barítono  Lício Bruno, com a  Orquestra Sinfônica Brasileira sob a batuta do maestro Tobias Volkmann.

Destacando-se os dois cantores por uma particularizada representação vocal unindo, em árias e duetos, a tessitura lírica às nuances populares e quase recitativas das baladas de cabaré. Alcançando sua mais apurada performance em três celebrizadas canções da Ópera dos Três Vinténs ao final da apresentação.

Precedidas por seleções cantantes de Paul Dessau e Hanns Eisler, estas menos populares e quase totalmente inéditas ou raras em nossas salas de concerto. Algumas fazendo parte do roteiro original de peças brechtianas, não rigorosamente fidelizadas nas versões para os palcos mas que o público brasileiro já viu, por exemplo, em O Senhor Puntila e Seu Criado Matti, Mãe Coragem, A Boa Alma de Setsuan.

Emblematicamente representativas, nestes Encontros musicais de Bertolt Brecht, através de acordes lúdicos ou densos, de um contraponto critico, ideológico e artístico, ao Muro de Berlim, na passagem do terceiro decênio após a sua queda. E conferindo, assim, uma mais valia à proposta concepcional deste programa idealizado por Tobias Volkmann junto à Orquestra Sinfônica Brasileira.

No apuro artesanal da conduta musical e de qualificado conjunto sinfônico, no entremeio de acordes lúdicos ou densos, presencial nas partituras do tríptico Weill-Eisler-Dessau sob a égide de Brecht, trazendo um referencial reflexivo capaz de ecoar, aqui e agora, as turbulências que fissuraram a unidade da nacionalidade alemã.

E conectando-se, assumidamente segundo Volkmann, por um ideário dramático e musical expressivo da triste paisagem divisória de uma Berlim humilhada, capaz de lembrar o desafio de um momento de incerteza política e retrocesso cultural por nós vivenciado. Sempre no iminente risco de se tornar um Brasil partido, da resistência ou da exclusão...
                                          
                                          Wagner Corrêa de Araújo



O concerto da OSB "EM MEMÓRIA DOS 30 ANOS DA QUEDA DO MURO DE BERLIM" aconteceu no Teatro Riachuelo/Cinelandia/RJ, na terça feira 19/11, às 20h.

FIM DE CASO : ENTRE O AMOR PASSIONAL E A CULPA CRISTÃ


                                                                                 FOTOS/ ALE CATAN 

Ao publicar seu romance Fim de Caso, em 1951, o escritor inglês Graham Greene completava seu quarteto ficcional inspirado por suas convictas crenças católico - romanas e, a partir daí, tomado pelo surto de um inesperado ceticismo religioso, inicia sua celebrada serie novelesca de suspense com substrato político.

Com traços estilísticos e literários que o aproximavam do drama romântico, característico da fase anterior de seus escritos, este específico enredo partiu de experiência pessoal do autor num tórrido caso de traição matrimonial com a mulher de um amigo, vizinho e colega de trabalho.

Cujos reflexos, como uma “paixão proibida” à luz dos princípios morais e cristãos, marcariam indelevelmente a trajetória existencial dos três personagens, com um perceptível traço especular de Graham  como o alterego de Maurice, também escritor, e no confronto do catolicismo dúbio de Sarah.

Que, indo além da mera envolvência de um triângulo amoroso, potencializa-se no questionamento personalista de um escritor diante da fé e da dúvida, contextualizado no desalento frente às fatídicas consequências e nos reflexos inimagináveis de uma guerra recém terminada, como fator da própria sobrevivência da condição humana.  

O que, em verdade, acaba por transcender-se metaforicamente na inclusão de um quarto e decisivo personagem invisível, representado pelo Deus cristão. Capaz de só redimir a culpa da obsessiva paixão física e do adultério pela renúncia espiritual, no papel feminino de Sarah submetendo-se à coerção divina.

Depois de sua dúplice transposição cinematográfica, no filme de Edward Dmytryk, de 1955, e na versão de Neil Jordan, realizada em 1999, Fim de Caso titula esta adaptação dramatúrgica de Thereza Falcão. Sob direção concepcional de Guilherme Piva para um elenco integrado por Vanessa Gerbelli e Isio Ghelman, fazendo o casal (Sarah e Henry), e Eriberto Leão na representação do escritor Maurice Bendrix.

No enfrentamento do sempre difícil desafio de não se tornar uma mera e fiel transcrição fílmica de uma obra literária, buscando imprimir-lhe um conceitual estético próprio. Conservando o teor nitidamente confessional, no entremeio de narrativa em primeira pessoa com prevalência de uma terceira em sotaque memorialista (através das anotações do diário feminino).

Na concentração exclusiva do tríplice protagonismo e da poética ambientação cenográfica (André Cortez), com transparências visuais e efeitos oníricos sob um suporte video mapping (pelos irmão Vilarouca, Renato e Rico).

E, ainda, no uso de elegante recato indumentário (Fábio Namatame) e das marcações focais de um belo desenho luminar (Maneco Quinderé). Ressaltados, sobretudo, pelo apurado gosto na seleção temática do score sonoro/musical (Sacha Amback).

Com maior destaque, de um lado, para Vanessa Gerbelli, com envolvente presencial no preenchimento dos contornos sensoriais e no dimensionamento psicológico de seu personagem. Complementado na assumida postura de um espontâneo acento discricionário em Isio Ghelman, como o consorte enganado mas, ao mesmo tempo, mostrando-se ironicamente frio e distanciado.

Enquanto, por outro lado, Eriberto Leão revela, na representação do escritor, um certo tom de descontrole entre a sobriedade e a tensão, sutilmente prejudicial ao melhor alcance do equilíbrio psicofísico de um personagem com mais implícita exigência reflexivo/intelectual.

Onde torna-se relevante o esforço direcional  (Guilherme Piva) para viabilizar uma dramatização longe da literalidade e da linguagem livresca, com bem sucedidos artifícios cênicos e uma performance afinada para torná-la um produto artístico de independente autenticidade.

E ainda que não atinja, em sua integralidade, a desejada provocação de um contraponto crítico no diálogo entre o inventario dramático e o legado literário, valendo esta travessia livro>palco, enfim, ser conferida por suas seguras soluções estéticas.

                                                 Wagner Corrêa de Araújo



FIM DE CASO está em cartaz no Oi Futuro, de quinta a domingo, às 20h. 75 minutos. Até 17 de novembro.

ESCOLA DO ROCK – O MUSICAL : LÚDICA INCITAÇÃO À REBELDIA

FOTOS/ JOÃO CALDAS FILHO

Não há como escapar da associação temática, num contexto de duas épocas distanciadas por quase meio século, do musical e do filme Escola do Rock com a versão cinematográfica e para os palcos de A Noviça Rebelde, a partir do referencial de um instrutor educativo inspirando crianças com lições musicais.

Sempre sob a égide da auto liberdade e da incitação afirmativa para que os pequenos aprendizes não se deixem sufocar pelo conformismo conservador e pela pulsão repressiva tanto da ambiência familiar como do meio escolar, extensivos às incomodas ingerências do modus vivendi sócio-político.

Onde, no caso, a racionalidade afetiva – professor/aluno - se sobrepõe à rigidez das regras morais domésticas e às limitações da didática acadêmica, através de uma sagaz mas bem urdida trama em torno da humorada e irreverente travessura do indisciplinado guitarrista Dewey Finn (Arthur Berges).

Que para acertar um aluguel atrasado, na casa do casal Ned Schneebly (Cleto Baccic) e Patty Di Marco (Thais Piza), atende a uma convocação fingindo ser o amigo e real destinatário e, assim, decide assumir a vaga como professor substituto de matemática.

Apresentando-se como tal diante da sisuda diretora de colégio secundário - Rosalie Mullies (Sara Sarres) - e promovendo, a seguir, uma revolução libertária entre os alunos com aulas da única coisa que realmente sabe ensinar - lições musicais de rock n roll. Transmutando-se num líder roqueiro com a missão de transformar as crianças em rock stars na disputa de uma próxima Batalha de Bandas.

Escola do Rock, recente musical da Broadway e da West London, partitura de Andrew Lloyd Weber e parceria dramatúrgica de Julian Fellowes e Glenn Slater, é inspirado no filme de Mike White, 2003, com mesma titularidade. Tendo como base sonora um eficaz groove do rock clássico anos setenta, indo de Jimmy Hendrix a Led Zeppelin, de Black Sabath a Ramones, com irônica incidência de acordes mozartianos.


Tendo, agora, sua primeira montagem em língua não inglesa, com direção de Mariano Detry, na versão brasileira de Mariana Elizabetsky e Victor Mületahler, com potencializado substrato tecno-artístico. Na  mobilidade do rico suporte cenográfico (Anna Louizos), do  design de luz (Mike Robertson) ao formalismo indumentário (Anna Louizos e Abby Hahn) na prevalência de trajes professorais e uniformes escolares.

E energizado movimento gestual (Philip Thomas) nos recortes coreográficos das 42 crianças (alternando-se em formações grupais durante a temporada) e que, sem dúvida, configuram a maior marca presencial-emotiva do espetáculo diante do público por seu caráter de revelador talento. Tanto na tipicidade variada de suas performances atorais como na autenticidade de intérpretes vocais e instrumentais, sem apoio em playback.

Sustentadas sempre pela segurança de uma afinada orquestra de nove integrantes, sob a batuta e com os arranjos envolventes de Daniel Rocha, tendo ainda a participação de 21 cantores/atores no elenco adulto.

Destacando-se os papéis de Sara Sarres, com sua tessitura de soprano brincando com as escalas coloratura da ária da rainha da noite da Flauta Mágica. Valendo, ainda, mencionar, em mais episódicas atuações, reconhecidos profissionais do gênero musical como Cleto Baccic e de uma convicta atriz/cantora Thais Piza.

Com irrestrito protagonismo de Arthur Berges numa representação versátil que converge na debochada caracterização de um aspirante nerd à carreira de astro pop star, com risível sotaque de ansiedade adolescente sob compasso hard rock.

Mas ao, mesmo tempo, capaz de imprimir perceptível personificação psicofísica da dedicação ao assumido oficio de mestre e animador musical das crianças desta Escola do Rock, direcionando-as, enfim, como substitutivo do aprendizado colegial, ao corajoso grand finale da batalha de bandas.

Em musical com os inescapáveis clichês das narrativas de relações afetivas e disciplinares professor-aluno no universo acadêmico. Mas capaz, sobretudo, de provar que o retrocesso às metodologias radicalmente ortodoxas e obscurantistas (como querem nossos atuais mandatários políticos) sempre perderá diante da espontânea alegria juvenil e do  poder redentor da livre criação artística.

                                         Wagner Corrêa de Araújo


ESCOLA DO ROCK está em cartaz no Teatro Santander/SP, quinta e sexta, às 20h30m; sábado e domingo, às 15h e às 18h30m. 120 minutos. Até 31 de dezembro.

SÃO PAULO COMPANHIA DE DANÇA : RESISTÊNCIA E INVENTIVIDADE

ODISSEIA / Foto by CLARISSA LAMBERT

A temporada 2019 da São Paulo Companhia de Dança reafirma seu propósito estético, conectando virtuosismo técnico, qualidade artística e, antes de tudo, muita resistência e inventividade para vencer o desafio de um momento tortuoso da criação cultural em moldes brasileiros.

Tendo a SPCD iniciado o ano coreográfico já com o favorecimento da crítica francesa como melhor Companhia estrangeira a se apresentar ali na temporada 2018/2019, auspiciosa noticia paralela à abertura da saison no último mês de junho.

Para encerrar a programação 2019, a SPCD desenvolve dois programas variados e sequenciais, entre 31 de outubro e 10 de novembro. Alternando obras de seu repertório com estreias coreográficas em palcos brasileiros de outras criações, parte delas já apresentada em turnês internacionais.

Marcados por um original direcionamento temático de sua diretora artística Inês Bogéa, cada um deles procura reunir obras coreográficas que se interliguem, subjetivamente, por abordagens quase absolutamente comuns, sob uma generalizada e significante epígrafe "Sem Fronteiras". Num panorama coreográfico que, assumidamente, alia o entretenimento à reflexão.

No caso deste terceiro programa, através das diversas formas de relacionamentos afetivos, desde a ludicidade dos jogos amorosos em Ngali à diáspora dos laços político-sociais nos movimentos migratórios (Odisseia), a um futuro pós apocalíptico de questionamento da sobrevivencia da própria condição humana, presencial na terceira coreografia (Vai).

NGALI/ Foto  by WILIAN AGUIAR

Ngali, de Jomar Mesquita, a partir de uma expressão aborígine australiana (nós dois incluindo você) inspira-se na narrativa dramática da peça La Ronde, 1897, do austríaco Arthur Schnitzler e da versão fílmica anos cinquenta de Max Ophuls, com possíveis ecos do poema de Drummond (Quadrilha).

Onde a insinuação de um sucessivo movimento sensual do ir e vir, na troca de parceiros de um casal quando o terceiro interfere no jogo erótico, alcança versátil e energizada transposição coreográfica, com substrato estilístico da dança a dois de salão.

Em exercício exemplar de espontânea e autentica brasilidade, extensiva à base musical MPB, na concepção de Jomar Mesquita, sob vistosos figurinos (Fernanda Yamamoto) e sutis marcações luminares (Joyce Drummond), destacando-se nas turnês da SPCD, aqui e lá fora, desde sua estreia em 2016.

Da diversidade mais irônica e bem humorada desta obra brasileiríssima ao contraponto trágico-poético da problemática universal dos surtos migratórios forçados, sob o signo da dor pelo abandono das raízes pátrias. Na visão de um nome representativo da nova dança francesa - Jöelle Bouvier - com o simbólico referencial nominativo de Odisséia.

Desenvolvida sob a pulsão de recortes musicais da Paixão Segundo São Matheus (Bach) e das Bachianas de Villa-Lobos, com incidência de sonoridades marítimas, em evocativa paisagem cênica sugestionando naus e velas no entremeio de ondas revoltas, naufrágios e corpos estirados à beira mar.

Num movimentar-se expressivo do lugar nenhum da destinação melancólica de seres humanos sob insistente caminhar ao léu. No belo alcance de trajes (Fábio Namatame) para intempéries em processo de patético despojamento, com marcações de efusivo desenho de luzes entre sombras (Renaud Lagier).

Em remissivo ideário reflexivo da proposta coreográfica da temporada 2019 da SPCD – tornando mais visceral o Sem Fronteiras com o emblemático signo verbal gestualizado em Vai, do americano de ascendência judaica - Shamel Pitts.

Na transmutação imagético-corpórea de lirismo e caos, ele materializa, num inventário coreodramático, o irracional e o êxtase, através da técnica catártica pelo método Gaga. Com rompante irradiação sensorial dos transes humanos questionados pela perspectiva redentora ou insólita de um tempo futurista. 

Com uma multi trilha remix incidental (Ryoji Ikeda, Nina Simone, Metá Metá, Milton Nascimento) e figurinos cotidianos (Tushrik Fredericks) que se metamorfoseiam na pele de cada bailarino sob luzes focais psicodelizadas (Mirella Brandi).

Concretizando, enfim, mais uma envolvente realização cênica da SPCD, tanto no aspecto formal como na intenção critica, dando continuidade ao seu processo investigativo de uma criação coreográfica sempre sintonizada com a contemporaneidade.

                                         Wagner Corrêa de Araújo

VAI / Foto by Charles Lima

A Temporada 2019 da São Paulo Companhia de Dança no Teatro Sérgio Cardoso/ SP, prossegue, com seu último módulo, de 07 a 10 de novembro, em horários diversos.

KATAKLÒ DANCE THEATRE / EUREKA : FISICALIDADE ACROBÁTICA SEM AVANÇOS COREOGRÁFICOS

FOTOS/ CARLA FALCONETTI

Em cena há mais de duas décadas, a Kataklò Athletic Dance Theatre, apesar de se intitular uma cia de dança,  prioriza, na verdade, um espetáculo teatral-circense tendo como substrato básico a força física-acrobática de experimentados artistas, em sua maioria, originários da ginástica rítmica e das artes dos picadeiros.

Com seus cinco integrantes, aos quais se junta a participação episódica de cinco espectadores escolhidos aleatoriamente nas suas turnês. E que pela não exigência de atributos artístico-atléticos acabam apenas preenchendo o espaço cênico. Meros figurantes dos quais nada é destacável, a não ser a sua disponibilidade a serviço do espetáculo.

Na proposta do ideário estético desta Cia, inspirada no significado literal grego de Kataklò - “eu danço dobrando-me e contorcendo-me”. Extensível à titulação do programa - Eureka (Achei, na língua portuguesa). Aqui, tendo como referencial a trajetória investigativa através da conhecida exclamação do matemático grego Arquimedes ao tornar pública, pelas ruas de sua cidade, uma de suas descobertas.

Onde o intencional estilístico, segundo sua diretora artística Giulia Staccioli, é o de estabelecer uma cumplicidade interativa palco-plateia, simbolizada pelos cinco participantes-espectadores, através de uma pulsão comum de movimentos corporais de fácil comunicabilidade e imediata percepção. Sem quaisquer apelos a invenções gestuais que transmutem a espontânea plasticidade física em pretensiosa intelectualidade da concepção cênica.

Mas se fica patente o potencial acrobático e teatral dos cinco intérpretes  - os acrobatas e ginastas integrantes da cia (Matteo Battista, Giulio Crocetta, Carolina Cruciani,  Stefano Ruffato, Sara Palumbo e Eleonora Guerrieri, esta última sendo a única com formação de bailarina clássica),  o dimensionamento psicofísico da performance acaba se perdendo no contraponto de uma irregular progressão cênica.

Ora através de passagens mais energizadas de um seguro elenco original, sob funcionais recortes luminares de cores e sombras ressaltando um figurino básico.  E induzindo a uma envolvente paisagismo cênico com nuances exploratórias de uma corporeidade tecno-artistica, no entremeio de movimentos solares ou avanços espaciais.

Mas, por outro lado, recorrendo a efeitos quase simplórios capazes, sobretudo, de evocarem programas televisivos de auditório na sua imaginária ilusionista carregada de clichês ginásticos e exibicionismos atléticos. Sob um humor superficial e numa trilha sonora sustentada por desgastado apelo comercial.

Se nas turnês anteriores por nossos palcos, através dos espetáculos  Play e Puzzle,  esta cia. italiana foi melhor sucedida na sua proposta de um teatro coreográfico, físico e acrobático, desta vez com o “Eureka” acabou, afinal, foi encontrando uma pedra no meio do caminho...

E que tornou mais melancólico ainda o epílogo da temporada 2019, de tão escassos espetáculos coreográficos e de tamanha incerteza para escapar das brumas do que ainda pode estar vindo por aí...
                           
                                         Wagner Corrêa de Araújo


EUREKA/KATAKLÓ ATHLETIC DANCE THEATRE está em turnê nacional iniciada em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, seguindo para São Paulo, Curitiba e Salvador. 120 minutos. Até 12 de novembro.

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