DIÁRIOS DO ABISMO : ENTRE O CÉU E O INFERNO


FOTOS / FERNANDO YOUNG

Um anjo com vocação para demônio”, em suas próprias palavras, e que fez de Maura Lopes Cançado um enigmático fenômeno literário. Enquanto sua trajetória de vida e de mulher esteve entre o brilho e o pânico, do espírito libertário à opressão social.

Nascida em privilegiado ambiente familiar de substrato burguês no interior provinciano das Gerais, para ser mais exato pelos idos de 1929, conseguiu, entre trancos e barrancos, crises e êxitos, sobreviver até 1993.

Dos tempos de franca ascensão quando integrava a desbravadora equipe de autores e colaboradores do suplemento literário dominical do Jornal do Brasil, sob a égide de Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony, entre outros.

Para o avanço ficcional/documentário com dois livros publicados no entremeio de entradas e saídas hospitalares e experiências manicomiais, e ambos - Hospício é Deus e O Sofredor do Ver - contemplados, à época, pelo interesse do público leitor e no olhar da crítica especializada.

Significativos pelo teor ensimesmado de relatos eminentemente confessionais, não só sobre fases de internação e de denúncia dos métodos usados em doenças mentais, mas nos ecos de empoderamento do movimento feminista. Num tempo em que a corporeidade e o livre arbítrio de uma mulher ainda se confundiam com luxúria, lascívia e prostituição, das que escolhiam e afirmavam seu próprios desejos.

Em breve e esquecida obra, relegando ao ostracismo também a sua mentora, a jornalista e escritora mineira. E que, agora, por iniciativa conjunta da atriz Maria Padilha e do dramaturgo Pedro Bricio leva à adaptação para os palcos do Hospício de Deus como Diários do Abismo, sob o comando diretorial de Sérgio Módena.

No monólogo, Maria Padilha assume a personificação desta mulher cuja trajetória pelos caminhos da insanidade mental fora antecipada por surtos delirantes de menina e adolescente, dos assédios sexuais à prematura gravidez aos 15 anos. E que, após bem sucedidas incursões profissionais de reportagem literária no Jornal do Brasil, decide se submeter a tratamentos psiquiátricos dos quais não escapa mais.

Em paisagem cênica concisa (André Cortez) ocupada apenas por colchões que funcionam como frontispícios frontais, quais portas ou janelas de um claustrofóbico quarto de hospício, enquanto emolduram passagens da representação da intérprete.

Na prevalência de uma indumentária (Marcelo Pies) sugestionando uniformes de interna, com marcações luminares (Paulo César Medeiros) ambientais, ressaltadas nas incidências sonoras da trilha (Marcelo H), nas projeções textuais ( Batman Zavareze) e em energizado gestual quase coreográfico (Márcia Rubin).

No contraponto de acurado esforço da concepção cênica/diretorial (Sérgio Módena) para fazer impor maior impulsividade a uma progressão narrativa sob insistente risco de quedas monocórdicas.

Onde, apesar de uma convicta entrega de Maria Padilha à performance, com um envolvente presencial até maior que a da personagem real Maura Lopes Cançado (segundo os que a conheceram de perto, não era lá tão atrativa e capaz até de posturas desmedidas), a representação acaba não fluindo em sua integralidade.

Ficando, enfim, distanciada de uma maior identificação do espectador com o estado de emoção psíquica contextualizado. Sem aquela pulsão artaudiana para que o fundo do poço se torne visceralmente matéria de reflexão e não apenas outra teatralidade de mais um caso esquizofrênico.

                                              Wagner Corrêa de Araújo


DIÁRIOS DO ABISMO está em cartaz no Teatro 2 do CCBB/Centro/RJ, de sexta a segunda, às 19h30m. 60 minutos. Até 5 de novembro

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