EUFORIA: REVÉS E RESGATE DA SEXUALIDADE

FOTOS/RODRIGO TURAZZI

Há  momentos existenciais em que a sexualidade é colocada em choque , ora por uma causalidade corpórea  cronológica ora por um infortúnio do destino. Nas duas situações deixando um lastro de dor solitária,  no difícil dimensionamento psicológico da subjetividade diante da auto estima fissurada.

Numa sociedade que potencializa os atributos da fisicalidade e onde a “beleza é fundamental”, a valoração será sempre dos priorizados por estas atratividades no comportamento sexual. E  ai dos que em sua trajetória são afetados, subitamente, por  um acidente de percurso ou algum  mal que os torne, hora para outra, deficientes/insanos - portadores, enfim,  do senso da ‘’repulsiva” feiura.

Outrossim, quando a jovialidade é considerada o maior dos bens num meio social cada vez mais preenchido por “sobreviventes” da terceira idade, de visceral crueldade é a situação dos destinados de últimos anos ao abandono familiar e dos relegados às casas de repouso e asilos.

E neste situacionismo pior ainda é , nos albores da despedida da vida, quando um gay ancião tem que renegar sua identidade , ocultando dos outros residentes e de cuidadores o memorial dos afetos da diversidade. Aumentando os padecimentos geriátricos com mais silenciares da lubricidade que ,desde os anos da infância, trouxera-lhe  reprimendas , vergonha e  desprezo em seus convívios .

Partindo destes pressupostos, Julia Spadaccini alcança, em  sua escritura teatral no entremeio da poesia e do pânico, uma progressão textualizada em dois segmentos sequenciais, em tom de monólogo/confessional,  titulado Euforia . Em projeto de idealização coletiva junto ao ator Michel Blois  e numa tessitura cênica ,com incisivo élan sensorial, no resultado do artesanal comando diretor por Victor Garcia Peralta.

Inicializando com a narrativa dramática, ora em off ora ao vivo, sobre um idoso aos 87  que, em tom confessional e sob os cuidados de um enfermeiro, reflete sobre a descoberta de sua tendências homoeróticas nos primeiros anos da juventude.

E que, diante da inexorabilidade do tempo, enfrenta o desafio do disfarce sobre a verdade de seu passado lascivo, no seu contato dialogal com o cuidador  e suas falsas insinuações de que vivera aventuras eróticas com mulheres.

Seguindo-se, em sutil passagem cênica, com a trama de uma jovem paraplégica com perda das faculdades sensitivas após um acidente de carro e que, mesmo assim, entre o espanto da não aceitação e a confiança na superação , consume finalmente a retomada de sua libido por intermédio de seu acupunturista. Um embate menos doloroso, no seu resgate das perdas das voluptuosidades afetivas , que o vivenciado pelo oprimido personagem da primeira parte.

Com o protagonismo solo  de Michel Blois enquadrando-se, num conceitual de participação corporal, no oficio de marcenaria construtiva da minimalista estrutura cenográfica (Elza Romero),materializada na mobilidade alterativa de uma maca e uma cadeira de rodas. Ora numa indumentária básica(Ticiana Passos), ora quase desnudo sob recatada luz ambiental(Wagner Azevedo). 

Nestes  dois momentos de melancólica poética existencial, no seu confronto entre segregação e reinclusão social, na perda e na ocultação das práticas homoafetivas de um provecto octogenário e do medo de uma jovem cadeirante feminina  nunca mais ser desejada por um homem, Michel Blois sintoniza, com raro brilho, o clima da representação.

Com um presencial irrepreensível o ator, ao irradiar em cada gesto o sofrido desalento da personagem masculina e a transmutação do anseio sensual remissivo no papel feminino, torna cúmplice a pequena plateia na simplicidade funcional deste despretensioso mas inspirado inventário cênico.

                                             Wagner Corrêa de Araújo



EUFORIA está em cartaz no Teatro Café Pequeno, sexta e sábado, às 22h. 50 minutos. Até 28 de outubro.

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