A NOIVA DO CONDUTOR : SINGULAR SINGELEZA MUSICAL

FOTO BY JANDERSON PIRES


Opereta foi um diminutivo utilizado, especialmente a partir do século XIX ,para diferenciar um gênero que apostava na leveza de um  divertimento musical sem o requinte e a solenidade da grande ópera.

Com a predominância de diálogos falados, intercalados entre as cenas propriamente musicais, valia-se da ingenuidade e do sotaque bem humorado de suas tramas , com a constância de seus “e foram felizes para sempre”.

A Noiva do Condutor é uma opereta  composta, em 1935,  por Noel Rosa , para dar continuidade ao seu projeto radiofônico, com o maestro Arnold Glückmann, de brincadeiras musicais operísticas , iniciado com “O Barbeiro de Niterói”. E está de volta, na comemorações dos seus oitenta anos, num  mágico tributo artístico/ afetivo ,sob o comando de Djalma Thürler.

No seu clima de desenganos amorosos, em meio às convenções sociais  e ao moralismo patriarcal dos anos trinta, narra a paixão , queda e renascimento do namoro de Helena(Izabella Bicalho) por Joaquim( Marcelo Nogueira) , sob a interferência policialesca e conservadora  do pai da jovem( Rodrigo Fagundes),em pleno  subúrbio carioca.

Na proximidade do alter ego  do compositor, o libreto revela , em seu sotaque confessional, suas costumeiras aventuras sentimentais, entre as mágoas das descobertas do amor, ao lado da caracterização,  de irônica crítica, do tempo e costumes de um Rio nostálgico.

O dinamismo dos ritmos populares da partitura tem seu equivalente nas divertidas  aliterações verbais das canções,enunciada na surpreendente direção e arranjos musicais de Glória Calvente. E ressaltada na competência dos instrumentistas Roberto Bahal( piano),Andrey Cruz(sopros) e Nilton Vilela(percussão).

Outros méritos da montagem estão na adequada sobriedade do quadro cenográfico(José Dias),na coerência dos figurinos (Carol Lobato) e na discrição das luzes( Aurélio De Simoni), a serviço de uma maior concentração  no gestual( Duda Maia) e na vocalização da trama dramatúrgica.

Sempre na intensificação  da performance vocal/cênica de um afinado elenco, capaz de expressar, com vibração emocional e inquietante  humor, o repertório musical  e o cotidiano existencial de Noel.

Neste  momento,  em que o musical brasileiro é vitima da redundância temática de biografias sem saídas inventivas, vale,assim,  ressaltar esta singular busca por novos códigos estéticos em A Noiva do Condutor.

Pela  simplicidade de um espetáculo, em que vozes, intenções , gestos  e música  ressoam num acertado dimensionamento emotivo, sem os equívocos da grande pretensão, e onde está reflexionada , enfim, a própria  filosofia musical  do Poeta da Vila:

“Ninguém aprende samba no colégio/Sambar é chorar de alegria/é  sorrir de nostalgia/dentro da melodia...”

(A NOIVA DO CONDUTOR  está em  cartaz no Centro Cultural Correios, de quinta a domingo, 19h. Até o dia 13/Dezembro)

SELFIE : NARCÍSICA VIRTUALIDADE



O mítico Narciso está de volta , presente , quase como elo propulsor inconsciente no universo da cibercultura, com a especular postagem , textual e visual ,de vidas privadas nas redes sociais.

Diante da solidão e da incomunicabilidade da realidade tecnológica contemporânea, enclausurados nos bunkers domésticos da mídia virtual, há uma catártico anseio destes "narcisos" serem identificados e admirados pela " beleza " de seus auto - retratos no cotidiano. Sempre compartilhados, sem limites e disfarces, entre seus iguais

Quando “Selfie”, o oportuno texto dramatúrgico de Daniela Ocampo, ironiza a memória humana armazenada em computadores, ao mesmo tempo, acerta ao aliar o riso ao questionamento filosófico deste traço da nossa contemporaneidade.

Impulsionado, ainda, pelo olhar armado da direção ( Marcos Caruso) no alcance do ponto exato de equilíbrio, entre o humor inteligente e a dimensão estética, direcionados à interatividade lúdica e reflexiva da platéia.

E é nesta realidade cibernética que Cláudio( Mateus Solano) encontra seu própria razão de existir, até o momento em que perde todo o seu referencial biográfico/social numa pane de seus computadores.

Sai, então, pela recomposição de seus dados, ao reencontro de onze personagens desconectados, todos protagonizados por um mesmo ator (Miguel Thiré).

Na intencional performance com nuances de pantomima, os dois atores se destacam pelo versátil uso de recursos óticos e auditivos, além da loquacidade verbal ideal. Ressaltados pela uniformidade dos figurinos(Sol Azulay ), pelo original score sonoro( Lincoln Vargas) e movimentação corporal(Arlindo Teixeira), além de uma iluminação quase cinema(Felipe Lourenço).

Falando ao olhos pela força mimética da dupla performance, na sua proximidade com o gestual burlesco, Selfie remete a um mix da linguagem chapliniana e do design fílmico de Jacques Tati.

Atingindo, enfim, a simbológica contradição das viagens internáuticas, no seu visível superficialismo virtual externo e no vazio vaidoso do “selfie” , capaz apenas de nos fazer apaixonar pela visualizante imagem de nós mesmos.


FOTOS BY SERGIO BAIA

( SELFIE está em cartaz no Teatro do Leblon, sexta e sábado, 21h; domingo, 20h. Até 01/Novembro)

NINE: UMA TRAVESSIA MUSICAL NO ONIRISMO FELLINIANO

FOTOS  BY MARCOS MESQUITA
  
“Eu queria contar num filme como nossos dias são multidimensionais, que o passado, o presente e o futuro se misturam ...Queria tratar a vida interior de um protagonista de uma forma tal que o consciente e o inconsciente se desenrolam como espirais de fumaça” .

Nesta conceitualização de seu filme “Oito e Meio”, Fellini mostra um homem cercado de mulheres sem nunca encontrar na mãe, na companheira, na musa, na amante, na prostituta, na produtora ,  a mulher idealizada. Enquanto mergulhado numa crise de criação como cineasta, num impasse que mistura desejos sexuais, frustrações artísticas e solidão existencial.

No refúgio de um spa , entre o real e o onírico, verdades e mentiras,melancolia e júbilo, Guido Contini(Nicola Lama)  duela e dialoga com  a presença feminina, na tentativa de se  sentir completo, como homem e artista, na busca de “sua mulher”.

Nesta versão brasileira do musical Nine houve uma sensível aproximação com o original de Arthur Kopit (texto) e Maury Yeston( compositor),em mais um notável equilíbrio estético e imaginativo , sem deslizes ou gratuidades, da dupla Charles Moeller/Cláudio Botelho.

Onde a  concepção cenográfica(Rogério Falcão), minimalista, é  capaz, também,  de acentuar a concentração numa vertente  temática de maior visibilidade e  materialização dos conflitos internos de uma mente delirante.

Assumindo, então, grande realce dentro desta proposta, a  sensualização fashion dos figurinos ( Lino Villaventura)  sob a adequada sobriedade da iluminação( Paulo César Medeiros) e a coerência gestual do aporte coreográfico(Alonso Barros). Sem grandes arroubos melódicos( exceto o tema “Ti Voglio Bene /Be Italian”), o score sonoro tem sua segura direção com  Paulo Nogueira e seus  competentes  músicos.

No elenco , destacam-se a irrepreensível protagonização de Nicola Lama , a habitual desenvoltura das atrizes/cantoras Totia Meireles e Malu Rodrigues , incluída,    também, a reveladora surpresa de Myra Ruiz.

 A consistência  enérgica  da  interpretação teatral de Carol Castro releva sua  limitada elaboração musical, enquanto Letícia Birkheuer esconde sua frágil performance na glamourização de modelo. Com distinção aparecem, ainda, Karen Junqueira e Sonia Clara, além das simpáticas intervenções do garoto Luiz Felipe Mello.

No período ,entre o  filme Oito e Meio (1963) à sua transição  para o  musical Nine(1982), o cineasta abandonou  sua  concepção radical contrária à transposição  tela/palco (“Cada obra de arte vive na dimensão em que foi concebida e na qual foi expressa”), demonstrando , a partir daí, seu interesse pela versão da Broadway.

E, se vivo fosse, certamente não deixaria de reverenciar , com seu sorriso de afetuosa ironia, este charmoso Nine brasileiro.




 ( NINE - UM MUSICAL FELLINIANO  está em cartaz no Teatro Clara Nunes, de quinta a sábado, 21h;domingo, às 19h. Até o dia 08/Novembro).

O NARRADOR: OS MORTOS E OS VIVOS

FOTO BY ANNA CLARA CARVALHO


Quando o filósofo alemão Walter Benjamin usou como estímulo a obra do escritor russo da segunda metade do século XIX, para seu ensaio “O Narrador-Considerações sobre a Obra de Nikolai Leskov”, estava, na verdade, mostrando seu espanto diante do progressivo definhamento da arte da narração.

Leskov, por intermédio de sua novela O Narrador, idealizava a narrativa como uma criação absolutamente artesanal: “Literatura para mim não é arte , mas um trabalho manual”. E mostrava assim sua firme crença no ofício tradicional dos contadores de histórias.

Estes,muitas vezes, velhos em seu leito de morte que deixavam,como sua marca, um legado ancestral das verdades humanas. A trajetória do cotidiano de suas vidas na comunidade, transmutada na sabedoria dos que partiam para os que ainda iriam viver.

Walter Benjamin então expunha, nas reflexões do seu livro de 1936, a amarga constatação de que a literatura tinha perdido este purismo épico, de aporte social, filosófico e moral, substituindo-o pelo egocêntrico brilho intelectual dos “narradores”.

E ainda lamentava ,no teatro, “o abismo que separa os atores do público , como os mortos são separados dos vivos” ou, a dúvida mesmo , de que algum ator fosse capaz de induzir na plateia qualquer sentimento de êxtase ou compaixão pela morte dos outros.

Num referencial de inventiva envolvencia, o ator/ dramaturgo Diogo Liberano transmuta estes aspectos estético / emotivos na proposta/performance “O Narrador”, com seu Teatro Inominável.Tendo a colaboração de seus integrantes Adassa Martins, Carolina Helena, Flávia Naves e Natassia Velo, além de João Pedro Madureira , responsáveis todos pela investigação gestual da performance.

Aqui, solitário num palco despojado, posicionado em uma cadeira com um figurino doméstico, acompanhado de um boneco de pelúcia como único objeto cenográfico.E onde vai liberando, vocalmente, um extenso solilóquio memorialista , na leitura de paginas atiradas uma a uma ao chão, em procedimento comum mas de singular efeito plástico/visual.

Abrindo mão dos elementos puramente cênicos, faz da presença de sua própria figura humana um anti -personagem , no realismo documental de um narrador de vivencias pessoais.Na prevalência, inclusive, daquelas ligadas às perdas pela morte de familiares e amigos, usando as palavras como imagens na revelação de tristes memórias.

Cartas, poemas, e mails, recados e bilhetes, expostos em precioso tom intimista, ora numa nuance de voz mais melancólica, ora com um sotaque de aparente firmeza , desmontado em lágrimas reais, quando a coragem desaba diante do “belo horror da morte”, neste pensar próximo a Walter Benjamin.

Compartilhando esta transcendência artística que liga expressivamente Leskov, Benjamin e Liberano, meditativas sonoridades (Rodrigo Marçal) completam, enfim, o ato mágico deste "teatro inominável” - de contemplação da sutil reescrita das palavras lidas por um narrador.



(O NARRADOR está em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal, sábado e domingo, 19h. Até 01/Novembro.

A MENINA DAS NUVENS : UMA SENSÍVEL AVENTURA MUSICAL


Composta entre 1957/58,A Menina das Nuvens, de Villa-Lobos,   só estrearia um ano após a sua morte , exatamente em 1960, no  Municipal carioca. 

Deixada de lado, só foi retomada em 2009, numa bela iniciativa do Palácio das Artes(BH). É esta montagem que chega,  agora,  na íntegra de seus elementos cênicos e musicais, ao seu palco de origem, com mínimas variações no seu elenco . 

Do limitado repertório de criação operística do compositor, só mereceram encenações , em caráter póstumo,  Yerma e A Menina das Nuvens, além da opereta Magdalena, esta a única a que assistiu em  vida    (Los Angeles / 1948).

As duas óperas  foram inspiradas em textos teatrais de Garcia Lorca e Lucia Benedetti, respectivamente. Aqui respeitando na íntegra o original dramatúrgico, o que nestas obras específicas, criou uma certa incompatibilidade entre a sequência cênica e o desenvolvimento vocal.

 A preocupação de preservar , sem cortes e adaptações, a leitura teatral, levou –as a uma linha de quase permanente recitativo. E é esta rigorosa fraseologia vocalizada  ( especialmente no segundo ato de A Menina das Nuvens,) tornando-o menos fluído  que o primeiro e terceiro ato, o único desvio na envolvência palco/plateia (além de uma injustificável extensão dos intervalos).

É perceptível, sempre,  em toda a partitura,  a característica densidade sinfônica do compositor, com uma exponencial sonoridade entre os naipes das cordas , sopros e percussão, na apurada regência de Roberto Duarte. Incluindo-se, aí,  as sutis incidências de um coro, fora de cena, com sotaque impressionista.

O seu fantasioso enredo de uma menina criada nas nuvens e , subitamente , de volta à terra, é captado, com  radiante brilho e exímia desenvoltura, na concepção cênica de William Pereira.

E, ainda, há que se destacar a mágica engenhosidade dos cenários e a modulação dos figurinos de Rosa Magalhães, sob o realce de luzes   atmosféricas (Pedro Pederneiras). Onde a  precisa coreografia (Tíndaro Silvano),de  referencial neo-clássico e participação de dezesseis alunos da Escola de Dança Maria Olenewa,    ampliou  o clima feérico  necessário ao tema.

O elenco mesmo limitado, às vezes , em seu alcance vocal, pelo predominante fraseado orquestral, teve expressiva performance  na consistência  equilibrada,  canto/teatro ,da soprano protagonista Gabriella Pace, do baixo Lício Bruno (Tempo) e do barítono Inácio  De  Nonno (Corisco).

Merecendo ainda   atenção , a bela   tessitura lírica do tenor Giovanni Tristacci (Príncipe),  a sensitiva aparição de Adriana Clis ( Lua ) e a irônica  altivez do timbre de Regina Elena Mesquita (Rainha).

Sem  o dimensionamento grandioso das Bachianas, dos Choros, do Descobrimento do Brasil ou da Floresta Amazônica, este resultado  do epílogo criador de Villa-Lobos   tem, também,   sua representatividade estética  -  como uma variação singular  nas  suas raras incursões no gênero lírico. E o seu resgate vale, assim,  ser celebrado e conferido.


FOTO BY JULIA RÒNAI                                                          







( A MENINA DAS NUVENS está em cartaz no Theatro Municipal, RJ, dias 23,27,31, 20h; 25 e 28/outubro, 17h. Até o dia 01/novembro, 17h).








HAMLET OU MORTE! : SALVANDO-SE COM SHAKESPEARE

FOTO BY TÁSSIA LOPES


Diversos são os códigos teatrais adotados pela jovem e talentosa cia Os Trágicos em seu primeiro espetáculo profissional , depois de muitas travessias experimentais pelos espaços urbanos.

No entusiasmo da ideia inicial , ainda em tempos de formação acadêmica , de transposição do “pocket theater” do inglês Tom Stoppard- “Hamlet em 15 Minutos”, os cinco atores(Diogo Fujimura, Gabriel Canella, Mathias Wunder,Pedro Sarmento, Yuri Ribeiro) , optaram por uma criação coletiva, com orientação textual e seguro comando cênico de Adriana Maia.

Surgiu, assim, HAMLET OU MORTE !, que ultrapassa o limite horário do dramaturgo inglês com a introdução de um longo preambulo autoral , transformando a proposta num espetáculo único , em original fusão e dinâmica artesania teatral.

A trama dramatúrgica se desenvolve ,assim, em duas dimensões, de um texto secundário a um texto principal. Partindo da prisão do grupo de vagabundos trapalhões, acusados de infringências sociais, entre roubos e dolos, e que para escaparem de uma condenação capital, buscam a salvação numa representação de Hamlet para a rainha.

Em sua concepção cenográfica minimalista com incidentais objetos e despojados figurinos (Adriano Ferreira), que funcionam bem como disfarces e travestimentos referenciais da época elisabetana, a montagem tem ainda um score musical de improvisos, ora num teclado, ora a capella em fanfarras labiais dos próprios atores.

Com suas peripécias cômicas e expressiva gestualidade num permanente clima de sátira, paródia e inteligente humor, o elenco alcança, em sua perceptível espontaneidade criativa , o equilíbrio ideal entre o caráter meramente lúdico e a entrega artística.

É este duelo virtuosístico, em que cada um deles revela uma personalista e singular performance no ato de assumir duplos personagens deste jogo do teatro dentro do teatro, que torna intenso e envolvente o dialogo com cada espectador.

E impulsiona, enfim,juntos cena e plateia, na sua risível adesão a esta “trágica comédia”, o pensar reflexivo do próprio Shakespeare de que “o mundo todo é um palco e todos os homens e mulheres não passam de atores”.

                                  Wagner Corrêa de Araújo




HAMLET OU MORTE , em nova temporada, no Teatro Net /Rio(Sala Paulo Pontes), sexta e sábado, às 19h;segunda ,às 16 e às 19h; terça, às 11 e às 14;domingo, às 20h. 85 minutos. Até 19 de setembro.

PROJETO BRASIL : UM PAÍS QUE É, E QUE PODERIA SER

FOTOS  BY MARCELO ALMEIDA

A cada dia  alimentamos o ódio e aumentamos os recalques   do conviver com tanta absurdidade.  No assistir, terrificados , às  contradições de um país, entregue a uma governança insana, qual pífia representação de bufonaria política.

É aí,  então,  mais que necessária, ainda que apenas pela força da criação artística, a deflagração de uma iniciativa, de tamanho acerto e ressonância, como o PROJETO bRASIL. Da Companhia Brasileira de Teatro , original de Curitiba, sob o comando de Márcio Abreu.

Na surpresa  do  minimalismo cênico(Fernando Marés), no despojamento do figurino(Ticiana Passos) e  na lucidez da  inventiva arquitetura   fragmentária de sua direção (Márcio de Abreu).  Entre pensamentos, ações, comportamentos, conduzidos, mimeticamente,   à concepção do espetáculo, após dois anos itinerantes pelos brasis afora.

Aqui, não existem limites entre as diversas linguagens artísticas, neste retrato, sem retoques  mas de  extremada afetividade, de pessoas, acontecimentos, relatos e posturas de vida, sem distinções entre a trivialidade e o majestático, entre o cotidiano e o imaginário.

Quando você se depara com duas atrizes( Giovana Soar/Nadja Naira) , um ator (Rodrigo Bolzan) e um músico (Felipe Storino), capazes de incendiar corações e mentes com  textos, corajosos e sensíveis, investindo na exploração documental/estética de um universo incômodo pela sua hipocrisia.

Ou quando os males de nossa triste contemporaneidade de nação, qual “gigante adormecido”, ecoam ,diante dos avanços civilizatórios, no cerrar os olhos pela jurisdicional igualdade do casamento entre os mesmos sexos . Na incisiva cena inicial , da coletivização de um  beijo atores/plateia, selando lábios sem preconceito.

Também na simbologia de um ator( Rodrigo Bolzan)  desvestido como veio ao mundo,  solenizando a verdade política e ética do ex-presidente José Mujica, unificando a regionalização latino americana no transubstanciamento reflexivo da palavra inteligente da Ministra francesa Christiane  Taubira.

Na culminância afetiva da reinterpretação em libras de Um Índio( Caetano Veloso) por Giovana Soar. Nas sonoridades  musicais( Felipe Storino) de reverberativa  retórica. Na gestualidade destemida(Márcia  Rubin), com um referencial “pinabauschiano” ,e na consonância das luzes(Nadja Naíra/Beto Bruel).

Ritualístico  e profano , fantasioso e denunciador, arquétipo e verdadeiro, violento e sensório. Entre performances plásticas e sonoras, incursões narrativas, dança e teatro,  na denúncia de um “bRASIL” que é,  na projeção de um  BRASIL  que poderia ser.

(PROJETO bRASIL está em cartaz no Espaço Sesc/Mezanino , Copacabana, de quinta a sábado, 21h;domingo, 20h. Sessões extras na quarta e no domingo. Até o dia 25/outubro)


EUGÊNIA : AMOR E PUNIÇÃO NA CORTE PORTUGUÊSA

FOTOS  / THIAGO SACRAMENTO

Na breve passagem que antecedeu a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil, começou a aventurosa trajetória amorosa,sujeita a muitos percalços, de “Eugênia”, de sobrenome José de Menezes e filha de um governador mineiro da colônia .

Em tempos de árida situação imposta à condição feminina, com a exclusão social e o preconceito contra as índias e as escravas e as duras regras domésticas dos valores patriarcais para as mulheres brancas, Eugênia , por trás dos panos, armou, em Lisboa, um perigoso jogo de amor e poder.

Grávida do Príncipe Regente D. João VI, ela transgrediu a ordem masculina da sucessão, enfureceu sua mulher Carlota Joaquina e trepidou as aparências morais e religiosas do palácio real . Atribuindo-se a outrem a paternidade do nascituro (uma menina), armou-se,então, o seu exílio para terras distantes.

Entre as suposições e a verdade histórica, a dramaturga Miriam Halfim, numa sucessão de cenas , parte sempre do referencial do não esquecimento do primeiro homem que desvendou para Eugenia os segredos da alcova amorosa.

Num texto ágil e anti- convencional onde as liberdades cronológicas ,ora comportamentais , ora gestuais, ora musicais induzem, isto sim, a uma envolvente atemporalidade de sua encenação.

Que, sob o dinâmico comando de Sidnei Cruz , é enriquecida sobremaneira, na mobilidade dos elementos cenográficos ( José Dias) ,com a sutil arquitetura plástica de suas instigantes caixas "de Pandora" , de surpresas e males secretos.

Completada na nuance aquarelista dos figurinos( Samuel Abrantes), na condução climática das luzes ( Aurelio de Simoni) e no sotaque galhofeiro do score sonoro( Beto Lemos).

Além, é claro, da sedutora expressividade corporal da atriz ( Gisela de Castro), aliada às suas instintivas modulações vocais, convergindo elementos da comédia , do teatro de revista, da chanchada, da bufonaria, sem cair nunca na tentação do riso fácil e dos clichês.

Pelo contrário, mesmo com sua estilização histórica , entre o circense e o fantasioso, conseguindo manter o refinamento reflexivo sobre a eterna condição da mulher.

Onde, evocando Balzac , “O texto da vida feminina será sempre igual ! Sentir, amar, sofrer e sacrificar-se!”




EUGÊNIA em nova temporada, no Espaço Cultural Sérgio Porto,Humaitá, sábado, domingo e segunda, às 20h. 55minutos. Até 25 de Julho.Entrada franca, mediante senha.



ELECTRA : VINGANÇA E LIBERDADE

FOTO BY RENATO MANGOLI

“Quando a cortina se abre. O futuro já é presente desde a eternidade” – emblemática reflexão de Lukács , em plena modernidade do  século XX. Que conceitualiza a pulsão irremediável da tragédia  clássica , na  impossibilidade  da condição humana em arquitetar seu próprio destino.

No confronto entre o terror e o orgulho, a vingança se realiza pela fatalidade, com a vitória alcançada na redenção pela liberdade. Na teoria  aristotélica,  a tragicidade acontece  na “imitação dos caracteres, das paixões e das ações humanas” e “provocando piedade e temor, opera a purgação de semelhantes emoções”.

“Electra” alcança , com tal notabilidade, o sentido mítico do herói trágico que foi capaz de incursionar ,ora como personagem  na trilogia Oréstia, de Ésquilo, ora  na protagonização titular  das tragédias homônimas de Eurípides e Sófocles.

Induzido pelas forças divinas, Agamenon sacrifica a primogênita Efigenia, gerando o ódio assassino de sua consorte Clitemnestra (Camilla Amado). Que , dividindo o trono usurpado  com seu amante Egisto(Alexandre Mofati), diante dos protestos da filha Electra(Rafaela Amado) , escraviza-a. Até que o retorno do irmão exilado Orestes( Ricardo Tozzi) concretiza a solução definitiva.

A degradante condição servil de Electra contrasta com os privilégios de sua irmã Crisótemis( Paula Sandroni), aparecendo ainda, na trama,  o Preceptor (Francisco Cuoco), e na individualização do coro, o ator Mário Borges.

Inspirada num adaptação de Antônio Abujamra(1965) que enfrentou, com irônico brio,  o censor com a ordem de prisão de Sófocles, esta “Electra” é dirigida com grandeza dramática por João Fonseca ,em solene e afetivo tributo estético  ao seu mestre Abú.

Ainda que não siga o texto original em sua integridade e no coro em solilóquio, é um trabalho sensível e convincente, tanto  no elenco de primeira linha, como no  funcional destaque da concepção cenográfica  (Nello Marrese), sob uma sóbria iluminação (Luiz Paulo Nenen) e na envolvência do score sonoro( João Bittencourt).

 Onde certas ressalvas  no figurino ( Marilia Carneiro/Reinaldo Elias) são compensadas pela elegante armadura de Tozzi  e a imponência do manto de Camila. E no exponencial dimensionamento da  altivez em Camilla, do orgulho ferido em Rafaela, da resignação em Paula, do heroísmo em Tozzi. Com interferências mais discretas de  Cuoco e Mofati.

E, enfim, no meticuloso resgate do coro com voz única ( Mário ) ,em performance de sutil modulação e rara filigrana vocal , capaz,assim,  de conduzir à reflexiva catarse palco/plateia no epílogo de Sófocles:

“Bravos filhos de Agamenon/ Quantos males suportastes /Por amor à liberdade! Ei-la enfim recuperada”.


( ELECTRA está em cartaz no Espaço Sesc -Teatro de Arena-Copacabana -De quinta a sábado, 20h30m;domingo,19h. Até o dia 25/outubro)

"THE PILLOWMAN" - FABULÁRIO DA CRUELDADE

FOTO  BY PAULO CALDAS

O instinto da maldade atravessa a trajetória humana e está presente, irremediavelmente, desde a  aparente ingenuidade das mentes na infância.

Quando foi estabelecido o universo dos contos de fadas a proposta imediata era condicionar, pelo medo, diante das atrocidades cometidas por bruxas, madrastas, gigantes desalmados, o comportamento pueril, onde a redenção pelo bem só era possível após as transgressões pelo mal.

Ao lado dos patinhos feios e das cinderelas humilhadas, havia a vingança violenta das crianças/vítimas empurrando a bruxa na fogueira ( João e Maria) ou matando o gigante para ficar com  sua fortuna( Jack e o Pé de Feijão), lembrando apenas  dois exemplos clássicos.

O dramaturgo irlandês Martin McDonagh transmuta o  universo infantil na maledicência temática de “The Pillowman – O Homem Travesseiro”. Aqui as narrativas ficcionais de assassinatos dos pequeninos  pelo personagem/escritor Katurian(Flávio Tolenzani) provocam  seu torturante interrogatório pelos policiais Tupolski( Daniel Infantini) e Ariel ( Bruno Guida).

Suspeito pela incitação e prática criminal, Katurian aguarda o confronto/testemunho do irmão/alienado mental Michal( Bruno Autran),com interferência em papéis alternados , de menor relevância, do ator Wandré Gouvea,  num inquietante clima totalitário de desafio à liberdade de expressão.

Toda esta série narrativa de crimes , desgraças e disfuncionalidades familiares é desenvolvida em planos simultâneos de opressiva tragicidade, uma história dentro de outra história, ora no delírio subjetivista, ora na violentação exteriorizada.

Num sarcástico referencial ao Flautista de Hammerlin , a salvação da fatalidade está nos dedos amputados de uma criança. Ou na imitação de Cristo por uma menina, quando os pais levam a filha  ao martírio da crucificação. Enquanto o travesseiro titular é arma assassina capaz de livrar, pela morte,pais insensatos do circuito doméstico e filhos fragilizados  das tragédias futuras .

A assustadora arquitetura cênica (Ulisses Cohn) sob luzes sombrias(Aline Santini) e figurinos de soturno sugestionamento(Glória Coelho) , revela uma ambiência de grotesca bufonaria. Onde uma  enérgica direção (Bruno Guida/Dagoberto Feliz) impede qualquer hesitação de um convicto elenco,  desafiado pelas caracterizações de terrífica expressividade.

Entre vítimas e agressores, poucas vezes , com tanta crueza e verdade, é atingido, teatralmente,  o cerne conceitual dos meandros sinistros da tortura seguida pelo homicídio , de triste lembrança e clamores ainda recentes em nossa realidade.

Para seu autor: “Adoro escrever sobre coisas por mais terríveis que possam ser”.

E quão  elas ecoam,aqui,  dolorosas, cáusticas, destemidas sob o fio da navalha e à beira do abismo...


Sem fingir    boas intenções,  em sua incisiva estética, que “The Pillowman – O Homem Travesseiro” alcance em cada um de nós, na sua temível mensagem, os  necessários questionamentos e as  reflexivas ressonâncias.  

( THE PILLOWMAN - O HOMEM TRAVESSEIRO está em cartaz no Teatro Poeirinha, Botafogo, de quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Até 01/novembro.)

O PENA CARIOCA OU TUDO COMO ANTES

FOTOS BY PAULA KOSSATZ 

Sob a égide inspiradora de Gil Vicente, de Antônio José da Silva e de Molière aparece o iniciador da comédia de costumes brasileira – Martins Pena(1815-1848).

Na instantaneidade de sua trajetória teatral deixou uma  obra testemunhal que ainda incursiona por nossos palcos, já nos albores  do terceiro século completando , agora, o bicentenário de sua vinda ao mundo.

Sob a aparente ingenuidade de suas tramas rocambolescas destacou-se pela singularidade de  seu  mix ironizado das nuances predominantes  do teatro de então( ópera, comicidade burlesca, vaudeville, drama romântico e realista).

Onde  jamais abriu  mão da verdade crítica , de dizer o que não era para ser dito , de rir de sua época, ainda que lhe chamassem apoquentador  das práticas morais e sociais de seus contemporâneos. 

E , mesmo com seus jogos verbais de dúplice sentido e seu coloquialismo sem disfarces , ainda assim sofreu cortes censórios e advertências jurídicas na classificação de “impudentíssimo”.

Há que se destacar, outra vez,  o empenho mais que meritório do diretor Daniel Herz e suas maravilhosas "máquinas teatrais" -  os  “Atores  de Laura", na incisiva caracterização de máscaras (Diego Nardes) e trajes quase clownescos ( Antonio Guedes)visualizando, estética e dramaturgicamente,  "O Pena Carioca".

Na reunião de três exemplares  peças clássicas, sem a poeira do tempo  na exatidão de seu tempo cômico, quantas vitórias neste olhar independente, rísivel e amoroso   sobre as diversas camadas sociais. Presentes na rusticidade desafiante de “ A Família e a Festa na Roça”(1838), “O Caixeiro da Taverna”(1845) e “Judas no Sábado de Aleluia”(1846).

De largo alcance, ora na espontaneidade de um elenco afinadíssimo de unicidade performática indissociável ( Ana Paula Secco,Anderson Mello, Gabriela Rosas, Leandro Castilho, Luiz André Alvim, Márcio Fonseca, Paulo Hamilton) . Ora na precisa atemporalidade  da trilha ambiental (Leandro Castilho) e na funcional discrição das luzes ( Aurélio De Simoni) .

Mas é   a arrojada envolvência da arquitetura cenográfica (Fernando Mello da Costa) na   tríade (manequins/figurinos/personagens),apoiada em  expressiva  gestualidade( Duda Maia) , que  revela ,   na surpresa inventiva da sua  marcação cênica (Daniel Herz) , a inteligente  evocação   da atualidade deste “ Pena Carioca”.

 Com seus pais e filhos, velhos e jovens, patrões e empregados, pobres e novos ricos, juízes e políticos, na dialética do poder e na retórica do suborno , enfim, igual a tudo como antes...




Fotos by PAULA KOSSATZ
                   ( O PENA CARIOCA está em cartaz no Teatro Poeira, Botafogo, quinta a sábado, 21h; domingo, 19h.)

BALLET DO THEATRO MUNICIPAL : APOTEOSE DA DANÇA

APOTEOSE DA DANÇA OU  A MÚSICA PARA SER VISTA


A clássica teorização do poeta Paul Valery – “la danse c’est une musique qu’on voit” – foi alcançada , com raro brilho, nas duas coreografias sinfônicas apresentadas  - “Age of Innocence” e Sétima Sinfonia , pelo Ballet do Theatro Municipal , agora sob a competência profissional de um   dúplice comando artístico - Ana Botafogo e Cecília Kerche.

Outro ponto convergencial do repertorio apresentado foi a herança estética dos dois coreógrafos. De trajetória artística ainda recente , Edwaard Liang com reveladores traços de sua passagem pelo NDT de J. Kylian.  E a marca inventiva e singular da breve obra testamentária  de Uwe Scholtz, sob o signo de sua formação com John Cranko.

E, ainda, um possivel teor referencial sobre o caráter narrativo ou abstrato dos dois balés, não muito elucidativa  na obra de Liang.
A proposta de Edwaard Liang em “Age of Innocence” é sugestionada por duas obras literárias , uma homônima de Edith Warthon e a outra de Jane Austen ( “Orgulho e Preconceito”),pretendendo falar sobre a difícil condição feminina no período vitoriano.

A pontual utilização alternada de temas de Philip Glass e de Thomas Newman,com um apelo mais sinfônico e ecos de score cinematográfico, torna evocativa ,mas sem muita clareza, a temática pretendida por "Age of Innocence”. Completada pelos sugestivos figurinos romantizados de saias longas e  corpetes masculinos, em precisa remontagem de Alexandra Dickson.

A arquitetura coreográfica é desenvolvida para 16 bailarinos com entradas e saídas em grupos, alternada por dois pas de deux de diferentes nuances expressivas, ora mais apaixonado ( Karen Mesquita/Cícero Gomes),ora mais melancólico ( Renata Tubarão/Filipe Moreira),com um mix de marcações neo-clássicas e um dinâmico gestual contemporâneo de formas circundantes.

Mas a envolvência absoluta acontece com o sotaque abstracionista da Sétima Sinfonia. Desde o seu primeiro movimento, com seus inebriantes temas rítmicos ascendentes, mostrando o apurado nível técnico dos bailarinos , com coeso e prevalente elo interpretativo até o poderoso Finale, na cuidadosa retomada por  Roser Muñoz.

Em presenças sempre  destacadas pela unicidade cênica, desde a exigente entrega emotiva nos acordes mais graves  à fisicalidade dos  joviais "arpejos"  dançantes, para terminar no triunfo solene e majestático do Allegro .

A união de uma orquestra afinada , sob a segura direção de Tobias Volkmann, e o refinamento amadurecido da mais importante Cia clássica do país, propiciam, assim,  um privilegiado encontro da música visível  na   dança pela dança, sem perder jamais  sua mais alta autonomia expressiva como linguagem artística.

Capaz, aqui, não só de justificar o título dado por Wagner  à composição de Beethoven como a “apoteose da dança”, mas extensivo, meritoriamente,  à integralidade desta exponencial  performance do Ballet do Theatro Municipal. 

                                          Wagner Corrêa de Araújo


FOTOS BY JULIA RÓNAI

"IN EXTREMIS" OU O DESTINO EM SUAS MÃOS

FOTO BY HEMERSON CELTIC

“Amo as superstições . Elas são a aquarela do pensamento e da imaginação. São as opositoras do bom senso. E o bom senso é inimigo da fantasia”.

Palavras esclarecedoras de Oscar Wilde que nunca escondeu seu fascínio pela paranormalidade, pelo sobrenatural e pelo misticismo. Numa de suas idas a uma cartomante em Paris foi surpreendido com uma estranha previsão “pela linha de sua vida, você morreu dois anos atrás”.

Na noite de 24 de março de 1895, há apenas uma semana dos fatos que o levariam à derrocada literária e existencial sob a acusação, do pai de seu jovem  amante  Lord Alfred Douglas, de  “ cometer atos imorais com diversos rapazes”, Wilde se encontra com Miss Robinson, uma quiromante famosa em Londres.

Não atendendo aos apelos de amigos e admiradores de que deveria imediatamente abandonar a Inglaterra, deixa se iludir pela leitura das linhas de suas mãos  - “um triunfo”. E é a partir deste fato que o conceituado dramaturgo  inglês Neil Bartlett traça o enredo simbolista de sua peça “In Extremis”.

Na sua concepção , mais ousada que o original britânico, o tradutor e diretor Bruno Guida subverte a caracterização masculina dos personagens, em instigante arquitetura cênica(Flávio Tolezani).

Onde a exorbitância de figurinos de brilho decadentista ( Daniel Infantini ) potencializa o clima grotesco,entre a narrativa fantasiosa e o humor negro. Acentuado com a luz entre sombras ( Aline Santini) e o sotaque gótico do score sonoro( Daniel Maia).

Mas o que é levado literalmente “ in extremis” é o confronto da exponencial performance próxima da bufonaria. Aqui   a impudência cínica da vidente Mrs Robinson( Daniel Infantini) se impõe, em ambiência fantasmagórica pós-tumular,  à vulnerabilidade solitária de Oscar Wilde ( Flavio Tolezani).

Enquanto  a cartomante (Infantini)assume um original histrionismo charlatanesco(extrapolado, às vezes, em sua histeria), a reflexiva introspecção do frio e amargurado personagem / escritor(Tolezani) aparece na citação de passagens literárias do próprio Wilde.

A condução cênica ( Bruno Guida) , com seu referencial de obscuridade e perversão, tem um envolvente apelo  tanto na proposital decrepitude de seu barroquismo, como na mordaz exposição da sabedoria e da loucura do hedonismo sob o fio da navalha.

Ou , talvez, pelas linhas amargas do "De Profundis" ,é  como se,  aqui,  estivéssemos mimetizando Oscar  Wilde nos seus encontros secretos e de risco:

“Era como estar numa festa com leopardos. O perigo era parte da excitação .Eles tinham para mim o brilho das serpentes douradas. E o veneno era parte de sua perfeição”.



( IN EXTREMIS está em cartaz no Teatro Poeirinha,Botafogo, terças e quartas, 21h. Até o dia 28/0utubro)




"AS MENINAS": AS PERPLEXIDADES DE UMA GERAÇÃO

Foto de Kelson Spalato

Quando Lygia Fagundes Telles publicou seu romance As Meninas ( 1973) vivia-se o apogeu da ditadura militar,  com todas as suas formas de opressão sobre as liberdades e as consciências individuais. Tais reflexos se faziam sentir especialmente sobre a juventude , criando um clima de perplexidades e indagação sobre as posturas comportamentais  e no próprio comedimento da expressão de um livre pensar filosófico, moral ou político.

Na época, o livro surpreendeu pela ousadia de tratamento de um tema quase considerado tabu pelos princípios que regiam o sistema político – o conflito em que foi mergulhada toda uma geração  de jovens diante do que acontecia ao seu redor, tanto nos circuitos familiares como no âmbito social.

Naquele momento  difícil, mais que nunca era fundamental o papel de conscientização exercido pela palavra literária , confirmado pela própria autora, Lygia Fagundes Telles  em fundamental depoimento:

“A função do escritor? Escrever por aqueles que não podem escrever. Falar por aqueles que muitas vezes esperam ouvir da nossa boca a palavra que gostariam de dizer. Comunicar-se com o próximo e, se possível, mesmo por caminhos ambíguos, ajudá-los no seu sofrimento e na sua esperança”.

Ambientada nos típicos pensionatos cristãos para moças de fino trato, instituições que perderiam posteriormente sua funcionalidade, a trama romanesca mantém esta característica na versão dramatúrgica de Maria Adelaide Amaral “As Meninas”, com sensível direção e concepção cênica de Yara de Novaes.

Lia ( Silvia Lourenço), estudante de ciências sociais  tornada ativista política, Lorena ( Clarissa Rockenbach), integrante de uma clã paulista quatrocentona, mas envolvida com um  homem casado, e Ana Clara( Luciana Brites) , de infância conturbada , idealizando o amante perfeito mas encontrando apenas um traficante que a faz  dependente da cocaína ,estas  são as três personagens protagonistas.

Mas a  cena é dividida, ainda,  com Clarisse Abujamra( mãe de Lorena) , Sandra Pera ( Irmã Priscila) e Daniel Alvim, alternando-se nos papéis masculinos. A ambientação cenográfica, com sóbrias cadeiras brancas e a discrição dos figurinos, tem a chancela de André Cortez , com precisas nuances da iluminação(Juliana Santos) e das incidências musicais( Dr. Morris).

A coesa performance do elenco favorece a transposição textual num linguajar mais direto , com acurada teatralização do tempo narrativo , mantendo a expressividade do romance  original , em  equilibradas passagens entre a dramaticidade e o irônico humor.

Méritos da superlativa condução de Yara de Novaes  na descoberta de fórmulas capazes de superar , criativamente, o estado fronteiriço ficção literária/ realismo teatral. Onde a  verdade de cada personagem é atingida plenamente  na paixão de Lorena, nas tensões de Lia , nas incertezas de Ana Clara, nas ilusões da freira e na segurança da mãe .

A excepcional adaptação de Maria Adelaide mimetiza, com dignidade, o plano  episódico onírico  em original foco cênico . Fazendo, assim,  ecoar na contemporaneidade,  a  proposta reflexiva de Lygia Fagundes Telles em torno daqueles  anos sombrios de censura e medo:

 “Para mim, a maior virtude humana é a coragem(...)Não qualquer coragem, mas o gesto aberto o desprendimento, a liberdade de dizer sim ou não”.


( AS MENINAS está em cartaz no Teatro Poeira, Botafogo, terças e quartas, 21h. Até o dia 28/0utubro)

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