CHAPLIN NA TEMPORADA PAULISTA : RECORTE MUSICAL DO CRIADOR E DA CRIATURA


PÁPRICA FOTOGRAFIAS

Há quase um século, desde o despertar cinematográfico, Charles Chaplin, imbatível misto de ator, comediante, acrobata, músico e dançarino, domina corações e mentes, fascina crianças e poetas:

O mito cresce, Chaplin, a nossos olhos feridos do pesadelo cotidiano”(Carlos Drummond de Andrade).

Inspirado numa idealização textual e criação dramatúrgica/vocal de Christopher Curtis, com libreto de Thomas Meehan, “Chaplin, O Musical“ estreou na Broadway em 2012, no entremeio de polemizada e controversa receptividade crítica.

A montagem brasileira retoma a visão cenográfica de Matt Kilney, sob  o comando diretor do argentino Mariano Detry, a direção musical de Marconi Araújo e a tradução e adaptação por Miguel Falabella.

Em sua trama dramático/musical de conduto linear/cronológico, apresenta, em seu primeiro ato, o East End de Londres, na virada do século XIX, com seus tipos de rua, onde o pequeno Charles tem com a égide materna (Naíma) um aprendizado de artes circenses e variedades.

Do ambiente music hall europeu, junto ao irmão Sidney (Juan Alba), Chaplin(Jarbas Homem de Mello), já na América, faz ali sua estreia, como ator de cinema mudo, nas comédias curtas de Mack Sennet (Paulo Goulart Filho).

E é, então, num crescendo, que o espetáculo tem propícia envolvência, em seu mix criativo de teatro/cinema e sua unificação de personagens/projeções fílmicas, com as intervenções do empresário Fred Karno, em adequada representação por Julio Assad.



De especial contextualização no mimético apropriar-se do personagem Carlitos e do potencial apelo estético na pantomímica coreografia, inspirada no múltiplo desdobrar-se da clássica figura imaginária do vagabundo, sua cartola e sua bengala.

No segundo ato, os conflitos pessoais/biográficos do cineasta/ator, em detrimento do aprofundar-se em torno da sua personalidade artística, ocasionam sensível perda da progressão narrativa, perceptível em charmosa  reiteração da fantasia e do lendário de um legado na inicialização da proposta cênica.

Há, assim, apenas um maior referencial em torno de O Grande Ditador, que conduz à difamação político/moral através do depoimento acusador da atriz Hedda Hooper(por Helga Nemeczyk). Com alterativo referencial ao relacionamento com a sua quarta mulher Oona O'Neill, na superlativa vocalização de Myra Ruiz configurando marcante passagem do espetáculo.

A trilha original(sob responsabilidade musical de Marconi Araújo), em sua fria convencionalidade melódica e de arranjos, faz sentir a ausência de alguns dos grandes temas do Chaplin compositor como “Smile”.

Mas o cuidadoso design cênico de época (Matt Kinley), extensivel aos figurinos (Fábio Namatame) e à coreografia(Alonso Barros), com segmentos de danças populares e da cena cabaret/vaudeville, traz uma acertada compensação, ressaltada também em apurado desenho de luzes ambientalistas (Drika Matheus).

Enquanto o elenco, coeso, mantem qualificativo equilíbrio, diante do exponencial favorecimento do personagem título em detrimento do significado minorizado, às vezes, até mesmo de alguns dos papéis coadjuvantes mas com caracteres primordiais na teatralização de uma trajetória com antológico sequencial de arte e de vida.

Capaz, sobremaneira, na convicta personificação de Jarbas Homem de Mello, com artesanal entrega ao protagonismo, no contraponto critico entre o sensorial e o estético, de fazer prevalecer o mítico Chaplin, na emocional e inventiva dicotomia do homem e do artista, do criador e da criatura.

                                         Wagner Corrêa de Araújo


CHAPLIN – O MUSICAL está em cartaz no Espaço Teatral/Complexo Cultural Ohtake/Pinheiros/SP, quinta e sexta, às 21h; sábado às 17 e às 21h; domingo, às 18h. 150 minutos. Até 16 de setembro.

PIPPIN: LÚDICA RELEITURA DE UM MUSICAL ICÔNICO

FOTOS/DAN COELHO

Desde que estreou em outubro de 1972, Pippin ficou marcado  na história do teatro musical na Broadway por dar continuidade a uma nova e bem sucedida incursão do gênero no pop/rock, antecedido pela explosiva carreira do Jesus Chris Superstar e do Godspell, respectivamente da dupla Andrew Loyd Webber/Tim Rice e de Stephen Schwartz, este em dúplice ofício autoral.

Por outro lado, na sua abordagem temática, todos eles refletindo os anseios e as frustrações geracionais de uma juventude perdida entre os protestos à Guerra do Vietnam, o apelo libertário das viagens alucinógenas e do livre exercício da sexualidade (antes do pesadelo da Aids).

Presencial tanto nos musicais de substrato cristão/evangélico, como na tentativa de se afirmar a qualquer custo, na episódica  trajetória existencial, por quaisquer saídas e soluções. Como nesta criação seguinte de Stephen Schwartz, Pippin, a partir de um livro de Roger O.Hilrson, transubstanciada na inventiva versão coreográfica/direcional de Bob Fosse. E , agora retomada (a segunda vez em palcos brasileiros desde 1974) pela dupla Moeller/Botelho.

Com uma conotação atemporal de contemporaneidade, Pippin(Felipe de Carolis), no término dos estudos universitários, retorna à sua ambiência familiar medieval, a do rei Carlos Magno(no baritonal destaque de Jonas Bloch).  Onde não se identifica com os instintos bélicos de seu meio irmão (um desinibido Guilherme Logullo) apesar de, incitado por este e pela sua lúbrica madrasta(uma energizada Adriana Garambone), a ser o usurpador do trono paterno.

No entremeio desta sua aventura sequencial, o carismático cerimonialismo - gestual/vocal/narrativo - da personagem de Totia Meirelles, com rápida mas antológica intervenção cênica de Nicette Bruno( Berthe), como uma avançada e atrevida avó, em passagem culminante da performance, na emblemática canção A Vida é Uma Só. E, ainda, a espontânea atuação de Cristiana Pompeo como Catharina, a viúva, e seu menino, na irrepreensível interpretação infanto/juvenil de Luiz Felipe Mello.


A princípio Felipe de Carolis (Pippin) demonstra boa progressão dramática no delinear dos caracteres de um ansioso mas titubeante jovem que insiste nos seus enfrentamentos destinais. Mas deixa perder a intensidade deste exigente vocabulário psicológico em reiterativa representação, não resistível ao prevalente e coeso domínio emotivo/vocal do elenco protagonista.

Sabendo como equilibrar a nuance mais reflexiva da montagem original, de 1972,  com o sotaque burlesco/circense da americana de 2013, a prestigiada dupla concepcional e diretorial(Charles Moeller/Claudio Botelho, este na versão do libreto), trazem de volta um Pippin apurado nos mínimos detalhes.

Desde o pórtico cenográfico (Rogério Falcão) frontal, de teatro dentro do teatro de referencial épico-barroquista, à aquarelada indumentária(Luciana Buarque), de indução grotesco/erótica, potencializada nas mutações luminares  de Rogério Wiltgen.

Completada no rompante impulso coreográfico(Alonso de Barros), com arroubos pélvicos em evocativo tributo sensorial a Bob Fosse, e sob uma sempre empática condução musical de Jules Vandystadt.

Integralizando, enfim, mais um sólido investimento e uma generosa contribuição à releitura do musical da Broadway em palcos brasileiros.

                                             Wagner Corrêa de Araújo


PIPPIN está em cartaz no Teatro Clara Nunes, Shopping da Gávea, quinta às 17h; sexta e sábado, às 21h.; domingo, às 19h30. 130 minutos. Até 21 de outubro

THE AND : INVENTÁRIO BECKETTIANO SOB O DIFÍCIL SUPORTE DA CONDIÇÃO HUMANA

FOTOS /MAURÍCIO MAIA

Reflexão de Samuel Beckett numa de suas incursões ficcionais (O Inominável): “...desmoronando-me sob minha própria pele e osso, de verdade, estourando de solidão e de esquecimento, a ponto de duvidar de minha existência, e ainda, hoje, não creio nela nem um segundo”...

Quando a atriz, diretora e dramaturga Isabel Cavalcanti concebe mais uma de suas artesanais investigações, dos estudos ensaísticos à suas concepções cênicas a partir da obra beckettiana, abrem-se outras portas de percepção para decifrar o instigante universo deste mistificador mor do Teatro do Absurdo.

E, indo além, com referencial para a crise da contemporaneidade civilizatória, ainda que passado mais de meio século de suas teorizações filosófico/literárias aplicadas ao palco, com nítida aproximação inclusive da perplexidade diante do difícil estado de sobrevivência de significativa maioria dos cidadãos de um certo país do hemisfério sul.

Assim como foi composto este retrato em tempo de sangue e lágrimas do pós-guerra, tendo como pulsão a falência dos valores, após o susto do genocídio, da bomba atômica, do irrestrito fim das crenças espirituais e politicas e da impotência  frente a um destino adverso.

Mas que, também, acabou se transubstanciando no reflexionar ficcional e cênico, entre a poesia e o caos,  em memorial da desconstrução do espaço e do tempo, do silencio,  da solidão e da dissolução no vazio do existir, a partir do inventário criador e autocrítico de Samuel Beckett.

E que é retomado por Isabel Cavalcanti na peça The And (em dúplice realização diretorial com Claudio Gabriel), com outro parâmetro transformador da habitual desconexão, da proposital lacuna e do nonsense potencializados na escritura cênica do autor irlandês, num suporte de maior acessibilidade às significações do aprisionamento do homem contemporâneo.

Seja através do cruzamento de intertextos autorais da dramaturga nos recortes das novelas iniciais do dramaturgo, além de ousada inclusão de uma antológica passagem de Machado de Assis ( Memórias Póstumas  de Brás Cubas) capaz de se conectar com a angústia existencial do anti-herói e personagem, aqui contextualizado. No incisivo solilóquio da própria atriz/diretora(Isabel Cavalcanti), em convicto e comovente presencial dramático, energizada e sensorial fisicalidade(Cristina Amadeo).

Em concepção cenográfica(Fernando Mello da Costa)com viscerais sugestões de demolição/devastação, indumentária detonada (em outro oficio do duplo comando diretor) e sensitiva mobilidade luminar (Renato Machado), tudo sob um  compasso alegro ma non troppo da trilha de Marcelo Alonso Neves.

Na provocativa ambiguidade entre o verismo terminal do The End e a agoniada solução onírica para o enigma do após, do sequencial não ser no depois - na metafórica e significante transmutação, semântica e filosófica, do E em The And, em assumida releitura dramatúrgica de salvação.

Capaz de rastrear pegadas, nas entrelinhas da irracionalidade e na inutilidade da busca, sinalizando contrapartidas à condenação do “maior delito do homem - o de haver nascido”(Beckett). Ou no questionamento trágico da personagem: “Não tenho mais a proteção da Terra, mas quando foi que eu tive a proteção da Terra?”...

Nesta pergunta sem resposta, mesmo com uma até intencional performance lúdica, só há a absolvição pelo alcance da palavra teatral, mistificada na denúncia e no grito de rebeldia. E capaz de possibilitar, enfim, a libertação humana, ainda que temporária e condicional, do cárcere do niilismo, neste lugar nenhum do não ser e da não existência.

                                         Wagner Corrêa de Araújo



THE AND está em cartaz no Sesc/Copacabana( Mezanino) sexta e sábado, às 19h; domingo ,às 18h. 70 minutos. Até 26 de agosto.

HEISENBERG - A TEORIA DA INCERTEZA: RELACIONAMENTOS QUÂNTICOS

FOTOS/CAÍQUE CUNHA

No universo científico, mais especificamente no campo da chamada física quântica, “é possível medir a velocidade ou a posição das partículas subatômicas, mas nunca ao mesmo tempo”. Prevalecendo, assim, nesta teoria do físico alemão Werner Heisenberg, a impossibilidade de captação da simultaneidade das trajetórias de qualquer um destes microscópicos elétrons na matéria cósmica de um átomo.

E como identificar estas notações físicas com o acaso de caminhos convergentes entre dois desconhecidos sob uma pulsão afetiva, súbita e, porque não, afortunada? E não seriam os elementos da surpresa e do inusitado, a partir dos fatores da incerteza quântica, causa do processo aproximativo à luz daquele comportamental cotidiano?

E que levariam, na velocidade de um elétron, ao despertar da atenção de uma mulher, desinibida e de  meia idade, pelo contraponto da timidez de um envelhecido senhor em postura estática, num banco de estação ferroviária.

Esta é a ação que inicializa a narrativa dramatúrgica, carregada  de estranheza por mais que transpareça habitualidade na sua imanente ambiência comunitária, em Heisenberg – A Teoria da Incerteza, do autor inglês Simon Stephens, aqui, sob um seguro comando diretorial de Guilherme Piva.

Este cruzamento aleatório de duas figuras humanas numa tarde ensolarada na praça de uma cidade qualquer e capaz de remeter às proposições conceituais da chamada Física Quântica, não é o primeiro no contexto da dramaturgia contemporânea. Já tivemos em nossos palcos a peça Constelações( Nick Payne) de enfoque similar em sua aplicação de uma teoria cientifica à temática de uma trama amorosa.

Em atrevida invencione existencial, é Sol(Bárbara Paz),em  tributo póstumo a Solange Badim como tradutora e idealizadora da montagem, que potencializa o jogo de tentativas aproximativas com Alex (Everaldo Pontes). Sem nenhum pejo no recorrer a um gestual(Márcia Rubin) quase obsceno, em narrativas entre a mentira e o imaginário, avançando o sinal vermelho e se atirando obsessivamente sobre ele.

O que detona investidas sequenciais após a rastreada descoberta dele na sua profissionalidade de exercício do ofício de açougueiro. Sem hesitações no encaminhamento do desejo, entre riscos e acertos, até às relações de fato, no domicílio deste respeitável senhor. Com lascívia imunidade a quaisquer diferenças físicas e cronológicas para os propósitos intencionais desta aventureira de sensorial corporeidade, nas suas três décadas a menos que a encolhida fisicalidade de um septuagenário. 

Através de um suporte cenográfico (Sérgio Marimba) condensado no frontalismo de um banco e de um painel e extensivo às suas  mutabilidades luminares(Beto Bruel) entre sombreamentos. Tornando dispensáveis as projeções legendadas indicativas de tempo e espaço, neste acentuar progressivo da ansiedade dos dois personagens em confronto. Com variantes dimensionalidades psicológicas na ocupação dos vazios da condição humana. E amplificado no envolvente score sonoro de Marcelo H.

Onde no contraste indumentário (Antonio Rabadan) entre o chamativo visual feminino e a nuance discricionária do figurino masculino, situa-se a plasticidade da dúplice performance. Na representação de Bárbara Paes sabendo explorar a linha extrovertida de seu personagem com artesanal domínio dramático e preencher, com  vibrante  espontaneidade, os contornos de seu personagem.

Enquanto seu partner Everaldo Pontes, em tom mais confessional e de interiorização, delega emotiva dignidade ao seu papel, especialmente no solilóquio em que é acompanhado por acordes de música barroca.

Transmutando ambos, enfim, sob a bem urdida conduta concepcional de Guilherme Piva, o desalento de seus personagens, em reflexiva remissão e alegre expansividade em  cena.   
                     
                                             Wagner Corrêa de Araújo


HEISENBERG – A Teoria da Incerteza está em cartaz no Teatro Poeira/Botafogo/RJ, de quinta a sábado, às 21h; domingo, às 19h. 80 minutos. Até 26 de agosto.

MOLIÈRE: UMA COMÉDIA MUSICAL SOB SOTAQUE BARROCO TROPICALISTA

FOTOS/PAULO URAS NETO

O que liga as intrigas políticas, artísticas e comportamentais da corte francesa de Luís XIV com o anárquico status presente em certo país, sem eira nem beira tentando reencontrar uma saída cívica para os desmandos e desvios do poder estatal, sob ameaça do retrocesso falso moralista e do obscurantismo artístico?...

Sem se ater a convencionalismos na elaboração de um retrato fidedigno da trajetória e do tempo monárquico de um mentor mor do teatro e da comédia clássica, a peça musical “Molière”,  da dramaturga mexicana Sabine Berman, acaba estabelecendo um contraponto critico entre a França setecentista e o Brasil contemporâneo.

Na pulsão do incisivo élan satírico/inventor de seu comando  diretor e concepcional, em multifacetado cruzamento de linguagens artísticas, por Diego Fortes. Em espetáculo que peca apenas pela falta de uma maior concisão na sua textualidade narrativa.

Com muita irreverência e espírito anárquico mas sem desconectar-se daquela histórica realidade biográfica e factual em torno de um  conflito entre os que mandam e os que devem obedecer, entre o pensar livre, a criação artística e a submissão, pelo favoritismo da Casa Real, aos parâmetros sociais/ regimentais estabelecidos.

Onde, atendendo aos caprichos absolutistas de um Rei Sol(Nilton Bicudo) e à manipuladora égide censora na figura do Arcebispo Péréfixe(Renato Borghi), a montagem usa e abusa do burlesco e do deboche, fazendo rir para provocar, através do questionamento, a reflexão libertária.

Ora exacerbando as contradições da prevalência, no gosto popular e no sucesso fácil, da comédia sobre a tragédia.Ora no postural irônico com que Molière(Matheus Nachtergale) contextualiza seu desmerecimento pelos  cânones do trágico em Phedra, de seu rival Jean Racine (Elcio Nogueira Seixas), com o prestígio da lúdica comicidade de seu Tartufo.

Em espetáculo de progressão narrativa não rigorosamente linearizada e acrescido de personagens mais ficcionais como Gonzago(Georgette Fadel) um intrigante acólito/bufão de Péréfixe. Aos quais se juntam, em compasso de potencializada luxúria caricatural, as cortesãs Madame Parnell (Regina França) e Mademoiselle Du Parc (Debora Madame Veneziani) .

Mais outras duas extravagantes estilizações, indumentárias (Karla Girotto) e aderecistas (Raphael Hubner), na artesania  atoral tanto de Jean de La Fontaine por Rafael Camargo como a do próprio Rei Sol( Nilton Bicudo), ambos  com suas perucas carnavalizadas com euforia barroco/tropicalista e toque fantasioso de seres fabulares com referencial das estórias encantadas do celebrado escritor francês.

Sem esquecer o exotismo alterativo na dupla personificação de Luciana Borghi, como a esposa de Molière e como a Rainha Mãe. Como também a intervenção de outro contemporâneo em Versalhes, o compositor  Jean Baptiste Lully , aqui representado pelo multitecladista (piano,cravo e órgão) Fábio Cardoso, um dos integrantes do staff sonoro sob a direção de Gilson Fukushima.

Havendo boas soluções musicais, com temas a capella e instrumentais, de Henry Salvador a Caetano, culminando no recitativo vocalizado de Coração Vagabundo por M. Nachtergaele. Com recato no arcabouço cênico (André Cortez/Carol Bucek) de um pequeno palco dentro de outro e estruturas móveis, o desenho luminar vazado não tem grandes avanços em suas modulações ambientais.

Na unicidade performática de um elenco dimensionado ao compasso da farsa e do circense, da comédia rasgada à chanchada, há que se destacar o convicto caráter burlesco que Matheus Nacthergaele atribui ao seu protagonismo titular, com irrestrita veia artística na versatilidade de seus mecanismos gestuais e vocais.

Acompanhado da veemência dramático/autoritária conferida por Renato Borghi à representação das sagazes artimanhas de seu papel, além da  indisfarçável verdade que Élcio Nogueira Seixas traz a um personagem de voraz ambiguidade na sua oblíqua escalada para ocupar o território teatral do opositor Jean-Baptiste Poquelin, vulgo Molière.

                                           Wagner Corrêa de Araújo                                         


MOLIÈRE está em cartaz no Teatro Adolpho Bloch/Glória/RJ, sexta e sábado, às 20h;domingo, às 18h. 120 minutos. Até 02 de setembro.

ROMEU E JULIETA / BALLET DE SANTIAGO : CONCEPÇÃO COREOGRÁFICA EM TEMPO DRAMATÚRGICO


FOTOS /EDSON ARAYA

Há uma identificação conceitual nas três versões coreográficas inspiradas na partitura sinfônica de Sergei Prokofiev para o balé Romeu e Julieta respeitando, como a música, a marca programática que conduz a linearidade da dramaturgia shakespeariana.  

Enquanto a de Leonid Lavrovsky, a original para o Bolshoi em 1940, e a de Kenneth MacMillan para o Royal Ballet em 1963, carregaram mais nas nuances psicodramáticas que antecipam a solução terminal, há um tratamento mais leve na concepção de John Cranko de 1962. Sem invalidar, é claro, o árido trajeto que conduz à tragicidade do suicídio dos jovens amantes.

A versão de Cranko é a que mais se insere, com assumida espontaneidade e bem humorado espírito, para reproduzir o cotidiano alegre de uma provincial Verona capaz, no entremeio à adversidade, de se divertir enquanto rola a insensata rivalidade no poder patriarcal.

Nas cenas de rua, há um clima de ludicidade circense, acentuado por aquarelados figurinos campônios e signos carnavalescos, de energizada mobilidade com  direito a saltos, piruetas e acrobacias. E onde os populares arremessam para o alto as frutas da feira diante das iminentes ameaças fratricidas nas classes dominantes.

Havendo, por outro lado, o contraponto de obscuro cerimonialismo aristocrático na indumentária pesada e nas almofadas de reverência do baile de máscaras dos Capuletos, na cena que mais se aproxima da versão soviética. E, comparada à de McMillan, com a exigência técnica não levada à prevalência do exibicionismo virtuosístico, o que torna simétrica e mais substancial a interpretação teatralizada nas cenas coletivas de lutas de rua.

Emmanuel Vázquez (Romeu) e Natalia Berríos (Julieta).

Acompanhando o ideário estético de Cranko, o artesanal e armado olhar de Márcia Haydée, para quem foi criado o papel protagonista em seu tempo estelar no Stuttgart Ballet, direciona seu comando artístico na reprodução a mais fidedigna possível da obra de seu mentor.

Nos figurinos de época e na cenografia realista, em dois planos, capaz de sugestionar tanto as cenas de amor no balcão, de onde Julieta desce pelos ombros de Romeu para o extasiante pas de deux de amor ou servindo de varanda para a procissão fúnebre do ato final. Extensiva a uma matizada iluminação, no contraste entre luzes solares a alterativos efeitos luminares, entre tessituras ambientais, ora romantizadas, ora sombrias.

Quanto à performance do Ballet de Santiago, integralizada numa estética de teatro coreográfico, há a perfeita sintonia de elementos técnico/artísticos com a potencial atuação do elenco sabendo, sobretudo, acentuar na fisicalidade e na mascaração, a carga de expressividade teatral que a coreografia propicia aos bailarinos.

Numa montagem de grande funcionalidade, pelo perceptível acerto dos elementos cenográficos e indumentários (Elisabeth Dalton) e pela entrega dos seus intérpretes, como atores/bailarinos, aos respectivos personagens viabilizando, assim, sua proposta de equilíbrio entre técnica e emoção, teatro e dança.

Alternando os papeis protagonistas da atual turnê brasileira, na noite de estreia, os solistas dos papéis titulares eram uma mais amadurecida Julieta (Natalia Berríos) com precisa leveza e flexibilidade para o papel e destacando-se mais em seu desempenho que um recatado Romeu (Emmanuel Vázquez), cronologicamente mais jovem e com menor dimensionamento artístico que sua partner.

Cumprindo suas funções de um gestual de prevalência mais hierática, foram dignas as atuações dos outros personagens, como uma envolvente ama (Francisca Montenegro) e um imponente Páris (Christopher Montenegro Fernandez).

Cabendo a Lucas Alárcon (Mercucio) com uma tipicidade longilínea, impressionável destreza técnica e cativante presencial facilitado por seu papel, o mais entusiasta aplauso na brilhante première da temporada da Cia chilena em palcos brasileiros.
                          
                                            Wagner Corrêa de Araújo


Romeu e Julieta(Ballet de Santiago) está em cartaz no Theatro Municipal RJ, sexta e sábado, às 20h;domingo, às 15h. 150 minutos. Até 12 de agosto. Seguindo para São Paulo e Curitiba.  

A NOVIÇA REBELDE: DE VOLTA A UM MUSICAL ENCANTADO

FOTOS/JOÃO CALDAS

“The Sound of Music” é o titulo original do musical popularizado como A Noviça Rebelde e que há mais de meio século vem encantando públicos de todas as idades, além de ser um dos melhores exemplares do gênero, tanto na sua versão teatral na Broadway(1959) como na cinematográfica(1965), com direção de Robert Wise e no insuperável protagonismo de Julie Andrews.

Na sequência de clássicos da era de ouro do musical americano como Oklahoma, South Pacific, Carousel e The King and I, The Sound of Music foi a derradeira obra desta parceria Richard Rodgers/Oscar Hammerstein, com a morte do segundo meses após a estreia. Tendo o libreto de sua autoria se inspirado tanto na autobiografia – The Trapp Family Singers - como numa adaptação fílmica germânica, do final dos anos 30.

Onde o score sonoro de Rodgers extrapolou a ideia inicial de utilização do repertório das canções da Família Trapp, tendo imortalizado alguns hits autorais do original da Broadway desde o tema titular às melódicas e assobiáveis canções como Do-Re-Mi, So Long Farewell, My Favorite Things, além das romantizadas Climb Ev’ry Mountain ou Edelweiss.

Campeão de prêmios, desde os Tony aos Oscars, resgatou inclusive a popularidade do musical cinematográfico anos 50, como um epígono ou uma volta ao formato que celebrizou o gênero, na sua adaptação às  telas em 1965. Com ecos também no Brasil fazendo do filme um fenômeno de público e eternizando sua trilha sonora.

Agora, dez anos depois, a dupla Claudio Botelho/Charles  Moeller retoma um de seus maiores êxitos, desta vez com uma mais arrojada concepção cênica e maior substrato dramatúrgico tanto na representação dos 45  atores e na contribuição de artistas e técnicos, como na valoração temática do feminino, a partir do protagonismo rebelde e irreverente de uma noviça em busca de novas perspectivas existenciais e amorosas.

Sem deixar de lado, outro primoroso staff musical, tanto no acerto vocal da maioria dos cantores/atores, como nos  arranjos e na orquestra sob o comando seguro do maestro Marcelo  Castro.Com grande cumplicidade e adesão emotiva da plateia para os solos e corais das sete crianças Trapp.

De destaque absoluto para Malú Rodrigues não só por suas preciosas tessituras vocais, como pelo potencial carisma com que praticamente conduz, como atriz/cantora, a progressão dramática da narrativa. Ao lado de experientes nomes do musical pátrio, como uma soberba Gottsha(Madre Superiora), uma energizada Alessandra Verney (Baronesa Elsa Schraeder) e na jovial performance de Diego Montez(no papel de carteiro) e Larissa Manoela como Liels,  a primogênita dos irmãos Trapp.

Com a participação, ainda, de exclusivos e  competentes intérpretes teatrais que não comprometem mas não convencem pela limitação como cantores, tanto Gabriel Braga Nunes num elegante Capitão Von Trapp, como Marcelo Serrado em humorizado Tio Max, este último com um tom burlesco acima para o seu personagem em caracterização excessivamente emprestada de um personagem televisivo.

Aliando tradicionalismo tanto nos figurinos (Simon Wells) como na cenografia(David Harris) à inovação técnica na modernidade dos recursos projecionais e luminares (Drika Matheus), com uma adequação à proposta mais recatada no gestual coreográfico(Alonso Barros). Audacioso, sobremaneira, na integralização do seu aporte estético de teatro total quase de referencial operístico, e da abrangente envolvência afetiva e sensorial do grande público.

Reafirmando, mais uma vez, o dúplice teor inventivo, na versão de Claudio Botelho e no comando diretorial de Charles Möeller, esta mágica volta da Noviça Rebelde dá credibilidade à transposição do musical que vem lá de cima, transcedendo na autenticidade identitária de seu conceitual criador e no seu alcance artístico de conquista abaixo da linha do equador.
                            
                                                 Wagner Corrêa de Araújo


A NOVIÇA REBELDE está em cartaz na Cidade das Artes/Barra, quinta e sexta às 21h;sábado às 16 e às 21h;domingo às 15 e às 20h. 165 minutos. Até 2 de setembro.

ELZA: QUANDO UM MUSICAL É ATO POLÍTICO


FOTOS / LÉO AVERSA

Nos seus ecos contra o preconceito racista e da luta pela afirmação feminista, aos quais se juntam a opressão de uma árdua condição social num pulsão de passagens de fome, núpcias e maternidade prematuras, trágicas mortes familiares, conturbados casos de amor, entre outros muitos retratos de adversidade, pode-se sim atribuir à vida e à arte de Elza Soares o tônus de um manifesto político.

E não é por menos que o dramaturgo Vinicius Calderoni transforma em leimotiv uma fala que conduz a trama musical/biográfica em Elza – “Sobreviver é um ato político” – capaz ainda de repercutir na inventiva transposição para o palco por obra e graça  de outra surpreendente direção concepcional e coreográfica de Duda Maia.

Aqui, todos os caminhos levam à vontade de desconstruir a já tão gasta e engessada fórmula do musical biográfico brasileiro, com sua resistente e monocórdia nuance alterativa, entre canções e fatos de vida, concentrada na representação personalista de ídolos/signos na história da música popular brasileira.

Desta vez, a mitificação narrativa em torno da trajetória existencial/artística de  uma cantora brasileira é subvertida na plena criatividade do seu desdobramento em sete atrizes/cantoras, todas afinadas em ideário convergente ostentando o orgulho da potência vocal e corpórea simbolizada na cor e na raça negra.

Em artesanal e conscientizado substrato do feminino que se estende, inclusive, ao sexteto de incríveis e exímias mulheres instrumentistas (Antônia Adnet, Georgia Camara, Guta Menezes, Neila Kadhí, Marfa e  Priscilla Azevedo) sob o comando de um Pedro Luiz energizando clássicas sonoridades de prevalência sambista com tessituras de contemporaneidade.

Aos quais se juntam os acertos das  modulações luminares de Renato Machado e das variações tonais de uma indumentária(Kika Lopes e Rocio Moure), entre tons ocres e aquarelados, como um visual diversificado da vida e dos cantares de uma mulher símbolo de desafiantes rounds.

Num arrojado aporte cenográfico ( André Cortez ) encimado por uma placa aérea de metal e ampla ocupação do palco com latas d’água sugestionando bacias de lavadeiras que, em composições plástico/esculturais com a fisicalidade gestual das atrizes, chega, por vezes, a ter um sutil referencial das construções cênico/coreográficas de Oskar Schlemer  na Bauhaus.

E onde, em cena, destaca-se um sintonizado elenco composto das reveladoras intérpretes  musicais/teatrais - Janamô, Júlia Dias, Késia Estácio, Krysthal, Laís Lacôrte, Verônica Bonfim, com um destaque muito especial para Larissa Luz, a de maior identidade com o sotaque rascante e rouco da voz de Elza Soares.

Todas materializando-se cenicamente em convicta entrega ao dimensionamento psicológico e à compreensão do personagem, com apurada técnica e talento, e expandindo, sem os vícios e maneirismos dos arroubos virtuosísticos,  a força de um elenco jovem e quase estreante.

Longe da queda nas tentações dos estereótipos do novelesco e  melodramático nesta trajetória carregada de marginalizações e desafetos na busca da aceitação social e do sucesso artístico.

Em espetáculo com proposta estética de renovação do inventário dramático no musical brasileiro, direto e sensorial na sua busca da interatividade palco/plateia e de tarimbada gramática cênica com contraponto crítico / reflexivo.

                                        Wagner Corrêa de Araújo


ELZA está em cartaz no Teatro Riachuelo/Cinelândia, quinta às 19h;sexta e sábado, às 20h;domingo, às 18h. 120 minutos. Até 30 de setembro. 

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