AUTO DA COMPADECIDA: OBRA EMBLEMÁTICA DA CULTURA NORDESTINA SOB UM META DIMENSIONAMENTO OPERÍSTICO


Auto da Compadecida. Ópera de Tim Rescala. Soprano Marilia Vargas como a Compadecida. Novembro/2022. Fotos/Raphael Garcia.


Desde sua criação nos anos 50 o Auto da Compadecida se tornou um signo emblemático na obra do escritor paraibano Ariano Suassuna. A partir de seu formato teatral, sustentado na autenticidade das tradições populares nordestinas, tem inspirado reconhecidas versões para o cinema, para a dança e para a ópera.

A começar pelo compositor José Siqueira que o apresentou como uma ópera integrando a temporada lírica 1961 do Teatro Municipal carioca com o titulo de A Compadecida. E agora é a hora e a vez de Tim Rescala resgatar o tema em meta concepção musical, classificando-a como uma opera buffa brasileira.

Contando para isto com o incentivo da Orquestra de Ouro Preto, por intermédio da competência investigativa de seu regente titular Rodrigo Toffollo (ele já estreou ali três óperas inéditas brasileiras), e a participação de renomados nomes da cena lírica mineira, carioca e paulista, tendo ainda o suporte valioso do artista plástico Manuel Dantas Suassuna, filho do escritor, na idealização indumentária.

Da sua origem nominal como autos medievais/barrocos, este formato alcançou especial identificação, em seu legado de brasilidade, com as narrativas escritas, cantadas e dançadas no entorno de um fabulário mítico nordestino. Ora sagrado, ora profano, em vigorosa conexão de lendas populares à literatura de cordel e à representação teatral/circense sob ritmos musicais,  exemplificados com clareza nas manifestações, entre outras, dos pastoris e do bumba-meu-boi.


Auto da Compadecida. Jabez Lima (João Grilo) e Rafael Siano (Chicó). Novembro/2022. Fotos/Raphael Garcia.

E toda esta química estética contribuiu para o brilho cênico deste Auto da Compadecida como uma “opera buffa” que, em seu envolvente substrato, reúne elementos do teatro popular, do circo, do musical, da comédia e do melodrama. Pela inspirada e inventiva escritura composicional de Tim Rescala que, desde o prólogo do primeiro ato, provoca uma carismática interação palco/plateia.

Onde há espaço para falas teatrais, ora em recitativos ora para a expressão do mais puro canto lírico, nas melodiosas árias da mezzo-soprano Carla Rizzi e da emotividade sacra que a soprano Marilia Vargas imprime aos cantares  etéreos da personagem titular.

Sem deixar de citar o luminoso alcance em compasso mais de teatro musical, das tessituras do tenor Fernando Portari e do barítono Marcelo Coutinho. E os bonitos sotaques líricos/cômicos nas dialetações burlesco/vocais de Jabez Lima (João Grilo), junto a Rafael Siano (Chicó), com direito a uma lúdica inserção de frase da ária mozartiana de Papageno e sua mágica flauta, alterativo com a bem humorada caracterização do cantor/ator como o  satânico Encourado.

Mais as convictas atuações atorais/lúdicas de Claudio Dias, Glicério do Rosário  e Mauricio Tizumba, este último depois de ser o intimidador Antônio de Moraes, adotando um linha mais irônica como um menos compassivo Filho de Deus, acólito rigoroso no julgamento celestial presidido pela sempre Compadecida (Marília Vargas).

O libreto, fiel ao original de Suassuna, é da lavra do maestro Rodrigo Toffolo em conluio com a partitura de Tim Rescala, este último a cada dia mostrando mais sua artesanal especificidade na conceituação estética de um sólido ideário composicional, seja através de uma opereta, uma ópera infantil ou adulta ou de uma peça teatral direcionada aos palcos musicais.

Alcançando um potencial resultado nesta proposta, em sua funcional conjugação do referencial cenográfico nordestino (na dúplice concepção de Camila Buzelin/Luiz Abreu) e pela energizada caracterização dos temas musicais dos personagens, sabendo como equilibrar climas risíveis e ambiências mais dramáticas, através de exemplar jogo cênico direcional assumido por Chico Pelúcio.

Além de manter a oportuna essencialidade de uma temática capaz de retratar os diferenciais naipes politico/sociais de um país de contrastes: pátria dos pobres ou dos mais afortunados, dos aproveitadores sempre ou de certos religiosos não lá muito santos, todos imbatíveis diante de suas ansiadas benesses.

Em metafórico sugestionar como recurso providencial, para estes explorados seres humanos diante dos infortúnios da sobrevivência, a recorrência à única e possível salvação pela misericórdia divina, sob a prevalente crença sertaneja no acolhimento excelso da Compadecida ainda que esta seja uma saída apenas post-mortem...

 

                                                 Wagner Corrêa de Araújo



Auto da Compadecida, a ópera, esteve em temporada paulista, carioca e mineira, de 5 de novembro a 10 de dezembro, respectivamente no Teatro Alfa, Cidade das Artes e Palácio das Artes.

2 comentários:

Anônimo disse...

Caro Wagner, eu como diretor da opera, responsável por traduzir em cena tudo que vc viu, da conceituaçao da opera nas manifestações do Cavalo Marinho pernanbucano ao diálogo entre figurino, cenario e iluminaçao mas também na orientação e condução das interpretacões, agradeço seu reconhecimento e sensibilidade. Talvez vc não tenha percebido isso já que no programa da opera isso também não é reconhecido.

Anônimo disse...

Cristina Avila. Texto excelente de um autor e dramaturgo que ainda não conhecia. Parabéns! Seu trabalho enriqueci a cultura brasileira.

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